302-BENTO NEGREIROS-Serie Delegado Davanti

— Então, que temos aqui?

Ao adentrar-se pela delegacia de São Roque da Serra, Vitório D’Avanti está, como sempre, de bom humor, o que faz questão de mostrar aos seus ajudantes. Da porta, lança chapéu no cabide da chapeleira, acertando no pino.

— Na mosca! — O visitante tem um susto com a entrada inopinada e a agilidade do delegado. Mas recompõe-se logo. — Desculpe, Doutor D´Avanti. Bom dia! — Levantando-se, o rapaz que o aguardava sentado defronte à escrivaninha estende-lhe a mão.

— Bom dia, bom dia! Realmente, está um belo dia. — Responde, apertando com firmeza e cordialidade a mão do jovem. Antes mesmo de se sentar, indaga: — O senhor é...?

— Meu nome é Tom Valentim. Trabalho no Banco Mineiro. No departamento de cadastro. Vim lhe pedir algumas informações...

— Meu jovem, aqui quem pede informações sou eu! — O delegado exibe um sorriso de alvos dentes sob um bigode elegante, à la Clark Gable, muito em moda. — E nossas informações não são reveladas para o cadastro bancário. — Apesar da negativa, a resposta incisiva é dita em tom de quase brincadeira.

— O doutor me desculpe, mas é que este é meu trabalho. Tenho de obter o máximo que posso para organizar as fichas de nossos clientes.

— Bem, meu caro, mas que é mesmo que deseja saber?

A conversa delonga-se por boa hora e meia. D’Avanti nota certa familiaridade no rapaz. Nas maneiras, no porte e até na voz de Tom o delegado revê o soldado Capistrano, de seu grupo de combate, que perdera a vida num ato heróico, ao seu lado, nos campos de batalha da Itália. Enquanto escuta, as lembranças da guerra voltam à sua mente. A tomada de Monte Castelo tinha sido uma batalha na qual a coragem dos pracinhas fora colocada à prova. Muitos morreram, como Capistrano. Vitório recebeu no seu corpo alguns estilhaços da granada que explodira ao lado do amigo, matando-o. Nem todos os fragmentos foram extraídos e nas “mudanças de lua” Vitório ainda sentia algumas dores. Como este rapaz me lembra o Capistrano...

Ao final da entrevista o delegado, impressionado com a franqueza e as maneiras de Tom Valentim, lhe propõe:

— Valentim, você poderia me ajudar. Como sabe, também dependo muito de informações.Nas minhas inquirições, entretanto, as pessoas ficam reticentes, escondem coisas. Você, com seu modo de perguntar sem parecer bisbilhoteiro, de procurar detalhes, poderia me passar boas informações...

— O senhor quer dizer...alcagüetar?

— Não, não! Longe disso. Vamos dizer que poderíamos ser...parceiros? É isto aí! Parceiros. — O delegado gosta da palavra. — Eu lhe digo o que preciso saber e você, entre suas conversas, poderia ouvir coisas interessantes.

Tom Valentim sente-se desconfortável com a proposta do delegado. Onde ele quer chegar? Até onde esta sua proposta é honesta? Não posso passar informações sobre os clientes do banco, que obtenho em caráter confidencial.

— É claro que seria um serviço...vamos dizer...gratuito. Sem remuneração. Pois não dispomos de verbas. Você poderia me ajudar muito. — O delegado insiste.

Tom Valentim não sabe o que responder.

— Não sei, doutor, vou ter que pensar sobre o assunto. Me dê um prazo para lhe responder.

— Claro, claro. Compreendo. Mas tenho certeza de que você gostará de trabalhar comigo.

Não se passou sequer uma semana da proposta quando Tom Valentim foi chamado à delegacia. Vitório D’Avanti o recebe com intimidade.

— Hei, Tom, estou de saída para uma diligência. Você quer me acompanhar? Acho que você vai gostar.

— Não sei se ... — Tom começou a dizer. — Tenho de lhe falar...

— Não se preocupe. Não estou forçando você a nada. É só para ter uma pessoa com quem trocar idéias.

Tom sente uma certa empatia com o delegado. E porque não? Vai ser uma ocasião para saber o que ele quer realmente de mim.

— Do que se trata?

— No caminho te conto. Sobe aí no jipe, vamos lá. Já estou de saída.

— Encontraram uma ossada no Capão do Negreiro. — Assim que entram pela estrada empoeirada, o delegado começa a revelar a missão. — Vamos lá ver.

— Quem encontrou? — Pergunta Tom.

— Uns trabalhadores que estão serrando algumas árvores pra serraria Você conhece o local?

— Já ouvi falar. É um lugar misterioso. Parece que é mais do que um capão, é um mato fechado. — Espontaneamente, Tom vai revelando o que sabe. — Aliás, toda a região é cercada de mistério. Desaparecimento de gente. História muito antiga. Do tempo em que o Bento Negreiro herdou a fazenda do sogro.

— Coisa pra mais de cinqüenta anos.

— Dizem que ele se apossou de vários sítios e fazendas confrontantes com a fazenda. Terras de posseiros, sem registro em cartório. Com a morte do chefe da família era fácil apossar-se das propriedades, expulsando viúvas, filhos e parentes. .

— Diversos proprietários desapareceram, simplesmente. — O delegado diz, sem entrar em detalhes. Há alguns anos, quando começou a carreira, havia tratado de um assunto idêntico. Mas, então, fora obrigado a parar com as investigações por imposição do prefeito que o nomeara. Agora, investido da função de Delegado Especial pelo próprio Secretário da Segurança do Estado, ele podia ir a fundo nas investigações. E é o que vou fazer.

Depois de quarenta minutos pela estrada de buracos e muita poeira, chegam à entrada da Fazenda Negreiro. Passam ao lado do poste com uma placa velha, enegrecida pelo tempo, onde algumas letras pouco legíveis indicam o acesso à propriedade.

— O capão ou mata, seja lá o que for, fica bem dentro da fazenda. — Explica D’Avanti, guiando com segurança pela estrada ruim. — Antes, vamos passar pela sede.

Um pião da fazenda levou os dois até o local do trágico achado. Os ossos estão espalhados sob a copa de um frondoso pau-dalho. Ouvem o barulho de um córrego. Lugar sombrio, de o mato denso.

Bento Barbosa era um João-ninguém em São Roque da Serra. Vivia de expedientes, com uma mão atrás e outra na frente, sem um tostão no bolso. Por artes da sedução, casou-se com Dionilda, a filha única do Coronel Negreiro. Prestou total vassalagem ao sogro, herdando-lhe a fortuna e até o nome. Com o correr dos anos, Bento Barbosa passou a ser conhecido como Bento Negreiro. Agora, com noventa e dois anos, viúvo e pai de um único filho, está caquético: não sai de casa. Mora na cidade, com o filho, Valdomiro, mais interessado nos negócios de gado do que em cuidar da fazenda.

Tom Valentim já havia visitado o velho diversas vezes, à cata de informações para seu serviço bancário.

— Ultimamente, o velho não fala mais do presente. Deu em divagar e falar de coisas do passado. E suas informações de nada valem. Para ele, todos os vizinhos são desonestos.

— Deve ter muita coisa de que se recordar.

— Às vezes, fala de pendências que teve com os vizinhos. Mas acho que já está é caducando.

Vitório D'Avanti é meticuloso nas investigações. Pede a presença de um perito que vem da capital. Manda fotografar o local e a ossada, de diversos ângulos antes de autorizar a remoção para o cemitério. .

— Esta ossada ficou enterrada por mais de trinta anos. — O perito anota em seu relatório. — É uma ossada de homem, e morreu devido a um tiro que lhe atravessou a cabeça de lado a lado.

— Como é que apareceu assim, à flor da terra. depois de tanto tempo?.

— As enchentes do córrego. Veja aqui, esses sulcos por onde escorre a água, na direção do riacho, ali embaixo. Leva a terra da superfície, principalmente a terra mais mole.

— Epa! — grita Tom Valentim, rondando pela mata, nas proximidades do local — Aqui tem mais ossos!

Seis ossadas são descobertas pela equipe de D’Avanti , enterradas à ao longo da margem do córrego. Todas com perfurações nos crânios, feitas por balas de arma de fogo.

— Aparentemente de gente enterrada numa mesma época, com variação de poucos anos.Todas com sinais de terem sido assassinadas. — afirma o perito.

O delegado consulta os arquivos da delegacia e faz um levantamento, checando os desaparecimentos acontecidos na região, na época indicada pelo perito. Tom Valentim ajuda-o na tarefa.

— Confere com sitiantes e fazendeiros que tinham terras que divisavam com a fazenda de Negreiro. — Tom checa a lista mais uma vez. — Foram registradas, em seu nome, logo após cada desaparecimento.

— Vejo mais uma coincidência: Todos os registros das fazendas “anexadas” por Negreiro foram feitos no cartório do Lalau Barbosa. Ladislau Barbosa. Parente do Bento que, antes de se casar, era também Barbosa.

Valdomiro, filho de Bento, se sente incomodado pelas investigações policiais, quando já estão adiantadas. Sabe da colaboração de Tom Valentim e o procura.

— Parece que o delegado está fuçando em coisa muito antiga...Tem a ver com meu pai?

— É, já que as ossadas foram encontrados na fazenda de vocês.

— Se eu fosse o delegado, parava de mexer com essas coisas tão antigas.— Tom não entendeu se era uma ameaça ou um simples recado que Miro destinava ao delegado. Fingiu-se de sonso.

D’Avanti conclui o processo. “De acordo com os laudos técnicos, as ossadas são de pessoas assassinadas. Os crimes ocorreram a quarenta ou cinqüenta anos atrás. No período em que Bento Negreiro estava aumentando suas posses com a incorporação das propriedades dos desaparecidos. Tudo leva a crer que o velho foi o beneficiário direto dos desaparecimentos”. Em outro parágrafo, o delegado indicava claramente a ajuda dada pelo tabelião Ladislau Barbosa, no registro das terras apossadas pelo velho fazendeiro.

O velho Bento Negreiro morreu no dia em que D’Avanti entregou seu relatório ao juiz. Ao sair do Fórum, o delegado é abordado pelo doutor Ganimedes.

— O senhor sabe da morte do Bento Negreiro?

— É..Ouvi dizer, sim. Muito conveniente...

O médico foi direto.

— Quero que o sr. veja o corpo. Não foi morte natural, não. Tenho certeza de ele foi envenenado.

ANTONIO GOBBO =

BELO HORIZONTE, 2/SETEMBRO/2004

CONTO # 302 DA SÉRIE “MILISTÓRIAS”

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 15/07/2014
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