369-JUSTIÇA CEGA-surda e muda

Tarde de calor, o trânsito emperrado e os carros rodando lentamente. Numa esquina da avenida do Contorno, na Savassi, o sinal fecha para os carros. Carlos pisa no freio, quase avançando a faixa listrada para pedestres. Mantém o carro com marcha engatada, um costume ao dirigir. Afrouxa o colarinho e esfrega o rosto suado. Meu próximo carro vai ter ar condicionado, pensa. O vidro abaixado pouco contribui para minimizar o calor interno.

Com o rabo dos olhos, nota, tarde demais para qualquer reação, a aproximação do pivete com um caco de vidro na mão, apontando ameaçadoramente para seu pescoço.

— Tio, me dá o dinheiro, celular e carteira. Rápido!

Carlos já ia entregando a carteira com documentos, quando o sinal abriu. Sem pensar no que estava fazendo, tomba o corpo para a direita, ao mesmo tempo em que pisa fundo no acelerador. O carro salta para a frente, atingindo em cheio o comparsa do assaltante, que pulara defronte o carro. Carlos se livra do pivete com o caco de vidro, que foge correndo do local, mas acaba por atropelar o sócio no assalto.

A confusão se estabelece. Carlos não pode sair do local, esperando a ambulância e a polícia. O marginal atropelado é levado para o hospital e Carlos para a delegacia. Enquanto presta depoimento, chega a notícia da morte do rapaz que atropelara.

Segue-se o processo judicial, no final do qual Carlos é condenado a pagar multa com pena de reclusão. Esta foi transformada na doação de 50 cestas básicas, as quais deverão ser distribuídas pessoalmente pelo réu na favela do Morro da Fumaça, local presumido da morada do atropelado, na qual não constava ter família.

Marcada a data para a entrega das cestas básicas, Carlos solicita ao juiz uma escolta policial, pois teme represálias dos moradores. Aluga uma Kombi, que enche com as caixas de alimentos.

No dia aprazado, Carlos e Rodrigo, o proprietário da Kombi, sobem à favela, seguidos por uma viatura policial com dois soldados. Estacionam numa pequena área que funciona como pracinha e onde terão espaço para fazer a distribuição.

A notícia da distribuição voa pela favela, e logo uma pequena multidão se aglomera ao redor da Kombi e do carro da polícia. Rodrigo abre a porta traseira da Kombi e vai entregando, aleatoriamente, as caixas aos favelados. Os dois policiais estão fora da viatura, atentos à movimentação. Carlos permanece dentro da Kombi, assentado no banco da frente e não se dá conta da aproximação de um garoto.

— Tio! — O garoto chama. Carlos se vira e vê o mesmo menino que o ameaçara com o caco de vidro na tarde em que o pesadelo começara. Agora, o garoto esconde na mão direita um pequeno revólver, que dispara duas vezes à queima-roupa.

O tumulto se estabelece quando a multidão corre. O garoto some no meio da disparada. Os policiais não vêem o autor dos disparos, enquanto Rodrigo permanece estático, com uma caixa nas mãos.

O corpo de Carlos jaz sobre o banco dianteiro, os olhos vidrados dirigidos para o teto da Kombi, a cabeça cercada por uma grande mancha de sangue que aumenta rapidamente, escorrendo da carótida perfurada.

ANTONIO GOBBO – BELO HTE., 28/OUT.2005

Conto # 369 da Série MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/08/2014
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