O último sequestro - Episódio 1 - Identificação

Logo que desliguei o telefone, peguei meu blazer na cadeira e sai correndo pelos corredores da divisão de homicídios - ótima maneira de começar o dia. – passei pelo saguão, desci as escadas e entrei no sedan preto estacionado no pátio do DHPP, onde meu assistente Tony Ryler já me aguardava.

- Não quero ser pessimista doutor - expressou Tony olhando para mim -, mas hoje tem tudo para ser um dia ruim.

- E porque pensa assim? – perguntei enquanto ajustava a trava do cinto de segurança.

- Minha mãe... Ela me viu saindo de casa hoje pela manhã. – nada contra, mas é impressionante que homens como Tony com quase quarenta anos nunca houvesse se casado, e ainda por cima morasse com a mãe.

- E daí! Qual a relação disso com um dia ruim? - perguntei

- Ela me observou enquanto terminava de dobrar as mangas da camisa parado na porta da frente logo que a atravessei, por isso mencionou minha atitude como sinal para um dia ruim.

- Você não acreditou nisso. Acreditou?

- O pior é que acreditei.

- É superstição cara. Esquece isso.

- Há! Não é não.

- Como não! Muitas pessoas fazem isso e, acredite, não acontece nada de diferente no seu dia. O chefe continua sendo o mesmo, as contas não param de chegar e em nosso caso, tem sempre um bandido em algum lugar para que possamos prendê-lo. Relaxa, as coisas não mudam porque se dobra uma manga de camisa logo que se atravessa uma porta.

- É, mas eu continuo não duvidando... – notei que Tony levava aquilo bem a sério, e parecia ter se esquecido de sua prioridade imediata, girar a chave no tambor de ignição.

- Certa vez - continuou ele -, esqueci-me de amarrar o sapato esquerdo e ela disse que eu deveria tomar cuidado com aquele dia que algo ruim poderia me acontecer, sabe o que houve? Tivemos aquele incidente, onde o traficante Taylor da Leste me acertou de raspão no ombro esquerdo. Se você não tivesse aparecido por lá, não sei o que seria de mim... Bem, na verdade eu até sei. Não estaria aqui fazendo esse comentário nauseante.

Risos.

- Ossos do ofício meu caro. – balancei a mão no ar a altura da orelha esquerda, como se faz para afugentar uma mosca inconveniente. – Agora, gire essa chave e vamos nessa.

- Que tal configurar essa engenhoca para o nosso endereço? – Tony queria dizer G.P.S.

- Quando eles substituírem essa engenhoca, talvez eu faça isso. – respondi olhando aquela coisa quebrada no painel.

- Ah! Já havia me esquecido desse detalhe, na verdade eu nunca botei muita fé nessas coisas moderninhas demais, ainda prefiro os mapas gráficos. – disse Tony acionando o sistema sonoro, tentando abrir caminho naquele transito insuportável no começo da manhã. Mesmo com todo o respeito que essas sirenes estabelecem; transitar naquele formigueiro de latas não foi uma tarefa nada fácil.

Quando chegamos, os agentes da divisão anti-sequestro já estavam lá, feito moscas sobre a merda. Área isolada, luzes flamejando para todos os lados, homens fortemente armados e atiradores de elite espalhados por janelas e telhados. - Essa falta de discrição da policia sempre fora um convite para curiosos, que a essa altura já se aglomeravam no local, a fim de assistirem a mais um episódio da saga humana em seu teatro de insanidade.

- É melhor manterem a distancia! Isso garante a segurança de todos! – gritava Lincoln, um policial pançudo com voz forte e grave.

Nem foi preciso apresentar nossos distintivos, ele apenas maneou a cabeça num cumprimento e ergueu aquela faixa listrada que demarcava o limite de segurança. A tradicional forma de evitar a aproximação de curiosos e repórteres que não parava de chegar. Tony e eu nos dirigimos até os homens de uniformes pretos, posicionados em linha. Ao perceber nossa aproximação, o mais alto deles rapidamente veio ao nosso encontro. Passei ao lado de uma poça de lama, é claro, depois de quase ter afundado meu mocassim em um monte de barro úmido e macio. Imaginei que isso poderia ser uma espécie de castigo por eu detestar sapatos sujos.

- Bom dia professor Yoshi! – não sei por que, mas essa coisa de professor me cheirava a sarcasmo. Um dia ainda iria perguntar ao Franklin o porquê disso. Mas esse dia não era hoje. Pensei.

- Espero de verdade que ele seja bom. – respondi olhando para Tony, que por sua vez respirou fundo. - Pra ser sincero, acho que ele vai ser ótimo, assim que eu remover a lama dos meus sapatos. – completei.

Franklin sorriu, enquanto sua mão esquerda repousava sobre um dos meus ombros.

- Relaxa doutor – disse ele. – vai precisar de um mente calma, se quiser acabar logo com isso. Olha só! Este é o seu equipamento.

Um policial com a estrutura antagônica a de Lincoln - policial que cuidava dos curiosos e repórteres -, aproximou-se e me entregou o colete de proteção contra armas de médio calibre. Não era o momento, mas eu gostaria de compreender porque homens com estruturas extremistas como a deles conseguiam ingressar na policia. Mas aquela equação teria que ficar para outro momento, não havia ligação alguma com o que fui fazer ali.

- Quando começou tudo isso? – questionei.

- A chamada anônima se deu por volta das sete e dez dessa manhã. – comentou Franklin - Como havia uma patrulha nas proximidades, logo o carro da vitima foi localizado. Os policiais tentaram uma abordagem, mas o condutor se evadiu começando assim uma perseguição até aqui. Iniciamos uma possível negociação, mas, não conseguimos nada além de exigências por parte desse maluco. Uma delas foi trazer você até aqui – Franklin não ia deixar essa passar, por isso completou. - Está ficando famoso hein delegado!

Ignorei essa última parte.

- E quanto à refém, quem é a mulher?

- levantamos a placa e, se essas informações estiverem corretas... – Franklin arqueou as sobrancelhas e me olhou fixo. Eu abri os braços inclinando a cabeça levemente para frente. Ele compreendeu o meu gesto como “diga lá o que está esperando?”.

- Um furo de imprensa. – ele disse.

- O que isso quer dizer? – questionei.

- Que a mulher é nada mais, nada menos que... Gleice Loyola.

- Tá, mas... Porque esse suspense? Quem é Gleice?

- A filha do secretário de imprensa do governo do Estado.

- Merda! – não costumo pronunciar tal palavra, mas não consegui evitar, não dessa vez.

- Uma latrina para ser mais preciso. – comentou Franklin.

- E o que ela faz na cidade?

- Ela é dentista, dona de uma clínica em um dos bairros nobres da capital.

- E a imprensa, o que já sabe sobre isso?

- Parece não saber de nada. Por enquanto. Até o momento só estão falando sobre o fato, nenhuma citação direta quanto aos nomes dos envolvidos. – nomes, esse era o bacon da farofa.

- Tony! – falei repassando a ele meu Smartphone programado para executar chamadas por comando de voz. - Providencie para que nenhum dos funcionários da clínica saiba que sua chefa é a refém nesse sequestro. Isso não pode vazar daqui, até que tudo termine. Fale com nosso departamento de comunicação, peça que localizem o secretário e diga a ele que tudo está sobre controle, e que para continuar assim ele precisa manter a imprensa longe. Há! Não se esqueça de repassar essa placa ao DETRAN, cuide para que eles não forneçam nenhuma informação sobre ela a ninguém nas próximas horas. Franklin me ajude com isso.

Franklin e eu pegamos um tapume e colocamos atrás do veículo Honda da dentista ocultando sua placa.

- Ei! O que eles estão fazendo? – perguntou um curioso a um dos soldados que estava no cordão de isolamento junto a Lincoln.

- Vão ter que esperar para descobrir. – respondeu o soldado depois de uma baforada de fumaça, originaria de um cigarro barato.

- Deve fazer parte de algum plano, como nos filmes. – comentou outro curioso ao lado na multidão.

- E o sequestrador. Ele tem um nome? – perguntei ao Franklin.

- Ainda estamos analisando as filmagens de um celular feitas por um pedestre que viu como tudo aconteceu. Mas quanto a informações precisas, elas devem sair em alguns instantes. Pedi uma análise das digitais colhidas em um frasco de energético atirado na rua durante a perseguição.

- Posso ver essas imagens?

- Claro. Venha comigo.

O furgão do grupamento tático encontrava-se estacionado em uma área mais pouco afastada dos homens de Franklin, fora da visão do sequestrador. Tratava-se de um verdadeiro laboratório sobre rodas. Podia-se levantar: comparações de imagens, digitais, compatibilidades sanguínea e até níveis de riscos envolvendo explosivos abandonados. Tudo em tempo recorde. Contudo, não foi necessário o resultado das analises para que eu identificasse o suspeito. – apesar de ele ter acabado de ficar pronto. - O corte em v no braço esquerdo provocado por um acidente capturado com nitidez pela câmera do celular, não deixava dúvida quanto a identidade do suspeito.

- Rashid Al Elsabá!

Eu e o tenente Álisson, pronunciamos quase ao mesmo tempo aqueles nomes. Ele terminou antes de mim.

- Mais conhecido como “pinguim”. – complementei. - Fugiu da prisão há dois anos, um homem frio, apesar de sua aparência dócil.

- Você o conhece? – Franklin me fez a pergunta com cara de quem fora pego de surpresa.

- Eu o apreendi por assalto a mão armada há cerca de cinco anos, quando ele ainda era menor com apenas dezessete. Dez dias depois, escapou da instituição socioeducativa aproveitando de um motim liderado por outro menor que traficava na região central. Foi recapturado dois dias depois de completar dezoito anos com um agravante de sequestro relâmpago. Cumpriu parte da pena e foi beneficiado com um indulto de natal e nunca mais voltou a casa detenção. Um ano depois ele voltou a ser noticia, e sabe o que estava praticando quando fugiu de nosso cerco?

- Sequestro, eu suponho. - respondeu Franklin.

- Acertou. Desde então, desapareceu e nunca mais foi recapturado até aparecer para um showzinho nesta manhã.

Franklin olhou para o tenente. Este por sua, vez levantou os braços exibindo as palmas das mãos antes de responder:

- Ele disse tudo senhor.

- Cara, que mundo pequeno esse! – exclamou Franklin.

- Ele é redondo, e gira. Agora me diga onde estão seus homens? Pode me dar suas posições? – eu não podia perder mais tempo.

- É claro. Temos um a leste, a duzentos metros atrás de nós; outro ao norte no segundo andar do Landeiro – um dos prédios mais bonitos que já vi. - a duzentos e trina metros daqui, e um terceiro, bem posicionado no prédio de espelhos a nossa direita, a queima roupa eu diria, cento e dezoito metros. Abrimos todas as janelas do primeiro ao quinto andar, ele não tem noção de onde meu homem vai pega-lo. Estamos com o sol a nosso favor.

- Não Franklin, seu atirador não vai pega-lo. – afirmei enquanto segurava o colete a prova de balas.

- O que está dizendo doutor?

- Que precisa tirar a maior parte de seus homens daqui. – eu disse, atirando o colete de volta para ele.

- Está de brincadeira. – Esse era o Franklin que eu conhecia, difícil de lidar, assim como eu.

- Não estou não capitão. É assim que tem que ser aqui, é preciso que faça isso, essa quantidade de homens está chamando a atenção mais do que deveria.

- Isso é ridículo! – o tom de voz de Franklin agora era áspero. - Ele disparou contra nossa equipe! Veja as marcas no Honda prata de portas abertas sobre a calçada do prédio onde ele se encontra agora. Esse é o carro da vítima, que agora tem uma arma apontada para a cabeça. Esse meliante não está brincando.

- Nem eu vim aqui para isso. Está esquecendo de uma coisa importante Franklin. Ele é um cara frio. Seu ataque é sua defesa. Agora... tire seus homens, está me impedindo de começar.

- Isso não é coerente Yoshida.

- Não se preocupe. Tony! Conte a ele. – Tony nesse momento aguardava novo retorno da central de homicídios.

- Se deseja um final feliz - disse meu assistente –, tanto para a moça quanto para a sua corporação, é melhor fazer o que ele está pedindo Franklin. Esse árabe é extremamente perigoso. Quando foi cercado pela primeira vez por militares armados, na época em que foi preso pelo doutor Bruno, ele ficou paranoico vendo todas aquelas armas apontadas para ele. Por esta razão, feriu sua vítima no pescoço com um golpe de faca e depois, simplesmente abriu os braços esperando ser alvejado. Não acho que melhorou muito. E. certamente o próximo tiro não terá a sua equipe como alvo – Tony fez uma pausa. - O doutor Bruno sabe com quem está lidando. Não tente mudar as coisas Franklin! Deixe ele salvar essa mulher.

Tony e Noemi, minha irmã eram os únicos que me chamavam pelo meu primeiro nome, algo que eu gostava de ouvir.

Franklin apertou o colete com força entre os dedos, olhou para mim balançando a cabeça na horizontal - penso que me esganaria se pudesse –, depois se dirigiu aos homens posicionados sobre os capôs das viaturas e passou algumas coordenadas pelo radio. Em seguida, meia dúzia daqueles automóveis macabros deu meia volta, atravessaram a faixa de isolamento e se afastaram do perímetro.

- O que está havendo soldado? - questionou um repórter - Pode nos adiantar alguma coisa? Porque algumas viaturas estão se retirando?

- Sim. Posso adiantar alguma coisa.

Dezenas de microfones, rádios gravadores e celulares foram empilhados diante de Lincoln.

- Não estou autorizado a dar entrevista – ele disse. - Isso não consta na minha cartilha de conduta, mas fiquem tranquilos, quando isso terminar o agente Yoshi com certeza fará todos vocês felizes, ele é bom com a imprensa. Pronto, adiantei.

Alguns repórteres afastaram-se irritados.

- Ele já está à frente das negociações com esse sequestrador? – insistiu outro repórter, um dos poucos que não parecia tão aborrecido. Lincoln porem não respondeu apenas afastou-se, ajeitou o coldre sobre a cintura, cuspiu o chiclete que mascava em uma caçamba de entulho voltando às costas para a imprensa.

Do outro lado, Tony contatava o departamento de comunicação na divisão de homicídios, enquanto eu me preparava para ir ao encontro do sequestrador. Estranhamente, sentia-me seguro e ao mesmo tempo incomodado com algo que não sabia explicar.

(Leia o episódio 2, disponível)

Sidel
Enviado por Sidel em 02/07/2015
Reeditado em 10/07/2015
Código do texto: T5296673
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.