A mulher de vermelho II

O relógio da catedral soava as 00:00. O frio da madrugada invadia as ruas. Janelas fechadas. Silêncio. Um bairro tranqüilo, todos ocupados demais com suas vidas não sabiam quem morava ao lado. Talvez por isso, a viatura da polícia local assustasse com sua presença.

Ninguém vira ou ouvira nada, mas havia um corpo no chão. Uma mulher. “Ninguém sabia nada dela!”.

– Sim , morava sozinha!

– Eu não vi nada!

– Acordei com a sirene...

– Meu Deus! Um assassinato? Que horror! Como foi?

...

Todos assustados, não tinham muito a dizer. Os policiais olhavam o corpo e coçavam as próprias cabeças. “Como, diabos, isso foi acontecer?”

O detetive examinava o corpo agora. Mandara chamar a denunciante do caso. A mulher chegou, enrolada em um roupão atoalhado, cachecol no pescoço e bobes na cabeça. Uma típica cinquentona que sofre de insônia e de vez em quando dá aquela espiadela pela fresta da janela... O detetive conhecia bem esse tipo e agora, lá vinha ela, arrastando toda a sua auto-confiança e empáfia de quem era ali, um personagem muito importante e como tal deveria agir.

Ao se aproximar do detetive, ergueu-lhe os olhos azuis envelhecidos e assustados e foi logo dizendo:

– Seu guarda, eu estava me preparando para dormir e dei uma olhada na rua, sempre há algo para se ver e... mas não vá pensar que sou bisbilhoteira!

– Acalme-se, senhora! Não sou pago para pensar a respeito do que fazem os outros a hora de dormir... por favor continue... – E, virando-se para o policial que o assistia, disse, em tom imperativo:

– Vá buscar uma cadeira e um café para a senhora...

– Eyelesbarrow! – Respondeu com certa empáfia.

– Muito bem, Srª Eyelesbarrow. Por volta de que horas a senhora olhou para fora?

– Eram onze horas... ah! Obrigada, meu jovem! Que café gostoso! Minha mãe costumava...

O detetive pigarreou e a gorda senhora retomou seu relato, um tanto envergonhada pelo deslize.

– Bem, como já disse, eram onze horas da noite. Eu sempre olho a rua toda pela minha janela. Dá para se fazer isso olhando lá de cima, do meu quarto, mas esta noite, eu estava tricotando na sala e acabei cochilando. Um leve ruído me acordou. No início, achei que havia sonhado, mas fui recobrando a consciência e percebi que se tratava de um barulho como o de um motor.

– E... – O detetive a encorajava.

– E me dei conta de que não podia ser de um motor de carro, pois estava muito abafado, a não ser que viesse de longe... olhei o relógio da sala e eram exatamente 22:45. Fiquei quieta, esperando ouvir mais, mas ele logo parou, como se houvesse sumido... então fui espiar pela cortina e foi então que vi! Alguém ou algo embrulhado em um tecido cinza estava jogado em frente à casa da nova vizinha. Peguei meus óculos e pude ver melhor. Não tive dúvidas! Embrulhos não possuem pernas! Liguei para a polícia!

– Ok! A senhora conhecia a vitima?

– Oh, não! Ela era nova aqui! Pobrezinha, parecia ser tão jovem!

– Vinte e quatro anos...

– Que coisa horrível! E... já sabem que fez isto?

– Não, senhora! Estamos tentando descobrir!

– Não pode ter sido um tiro... todos nós teríamos ouvido...

– Não foi tiro...

– Então?

Mais uma vez, aqueles olhos envelhecidos e assustados da nobre senhora caíram sobre o detetive, mas este por conhecer nobres senhoras como aquela, resolveu dar por encerrada a questão, dando-lhe algo com que pudesse se contentar:

– Obrigado, senhora! Assim que tivermos mais informações, entraremos em contato! Pode ser que a chame outra vez para futuros esclarecimentos...

– Oh, detetive! Foi uma honra ajudar! Só cumpri com meu dever de cidadã! –Respondeu, orgulhosa de si mesma.

– O policial aqui a acompanhará até a sua casa... até logo!

– Oh! Até logo! – E saiu, ajeitando um bobe, muito cheia de si...

Assim que a senhora Eyelesbarrow afastou-se, o detetive pensou em voz alta: - Esta velha é bastante intrometida! – um policial ouvindo aquilo, sorriu em resposta.

Voltando-se para a casa da morta, o detetive recomeçou a examinar o cadáver. “A resposta só posso encontrar em você!” – Pensou. O que havia nele?

Uma mulher caída em frente à porta de sua casa. Lily era o nome gravado na chave encontrada em sua bolsa de cetim preto. Além da chave, um frasco de perfume sem rótulo e um batom vermelho. Não havia documentos e nem dinheiro. Apenas isto.

Ela trajava um vestido vermelho bem decotado. Estava bem maquiada. Um casaco cinza bastante pesado para a estação. Não fazia tanto frio assim. Não possuía marcas visíveis e, para ser sincero, nem parecia estar morta! Qualquer um diria que morreu dormindo, não fosse o local onde havia sido encontrada. E assim, não havendo nada mais urgente a se fazer no local, decidiu que o corpo deveria ser removido imediatamente.

***

No necrotério, John esperava o resultado da autópsia.

– Morreu entre 22:10 e 22:40! Motivo: parada cardiorrespiratória! Mas não sei o que escrever no atestado de óbito dessa aí! Parece que ela sofreu um tipo de falência nos pulmões e no coração ao mesmo tempo! Mas não consigo encontrar a causa! Não há sinais de violência nem fora, nem dentro da casa e muito menos no cadáver! Esse presunto é de tirar do sério! – Disse o legista, atirando os resultados dos exames feitos no corpo sobre o balcão.

– Bem, pelo menos a faixa de horário cabe exatamente no depoimento daquela senhora... Mas, e as marcas de pneus...? Um carro parou na frente da casa, alguém a viu morrer ou a matou e depois foi embora.

– Eram recentes também. Tudo indica que estavam limpos antes, pois não encontrei nenhum vestígio de solo que seja diferente do jardim.

– Havia pegadas, Mike? – perguntou John ao legista.

– Não, John, sem pegadas. Se alguém esteve lá, ficou tempo suficiente para deixar aquelas marcas e ver a garota morrer sem descer do carro. E olhe que foi por pouco tempo! Ela morreu quase que instantaneamente! Um tremendo colapso!

– Jovem demais para um infarto! Há tantos indícios e vestígios de assassinato e mesmo assim não parece assassinato...

– Parece que os dois nunca viram um caso de envenenamento antes!

O detetive e o legista viraram-se assustados com a voz repentina atrás deles. Era Melissa Harven, a “especialista” como era conhecida entre os policiais. Chegara de repente, como era seu costume e também como de costume solucionaria o caso sem pestanejar.

– Envenenamento?! Como? Se não há indícios de que nada tenha sido ingerido pela morta!

– Mike, querido, se fizer uma autópsia mais detalhada, descobrirá que ela morreu de infarto, causado pela alteração de íons potássio em seu metabolismo, o que pode ocorrer naturalmente...

– Mas, então...?

– Não, meu bem, ela não ingeriu potássio...

– Explique-se! – Ordenou John impaciente.

– O frasco de perfume. – Respondeu enigmática.

– Agente Harven poderia ser mais clara?

– Ainda não posso, detetive John. Preciso analisar o frasco de perfume. Pode me dar licença? – Pediu com um sorrisinho que fazia John querer matá-la.

– Á vontade! – Resmungou entre dentes, dando-lhe passagem.

Melissa calçou as luvas e pôs-se a analisar o frasco e seu conteúdo. Cinco minutos depois, ia falar com o detetive. Todos os policiais se reuniram à volta dela, com rostos apreensivos.

– Um frasco sem rótulo, o aroma é característico de fabricação artesanal. A julgar pelos gostos da morta, não era uma garota acostumada a luxos, e por isso, não poderia distinguir um perfume original de um fabricado no quintal de casa. Provavelmente, e de acordo com os testes preliminares, vários sais de potássio, incluindo o cianeto, foram misturados em concentrações diferentes que não causam lesões a epiderme, mas que ao penetrar a pele e cair na corrente sanguínea, fazem um grande estrago. Ela passou o perfume no andar de cima, no quarto, e quando desceu os últimos degraus, começou a sentir frio e suar intensamente, para disfarçar pôs o casaco. Mas, o casaco também tinha outra finalidade. Não era interessante chamar atenção para si, vestida daquele jeito. A escolha do local onde ela morava mostra isto. As pessoas que vivem ali são muito discretas. Tão discreta que vivia ali a quatro meses e ninguém sabia nada dela. Mas não acaba aí. – Avisou aos presentes.

– Prossiga então! – Pediu o detetive, incomodado por ela outra vez roubar-lhe o caso.

– Como queira, detetive! O homem com quem ela ia se encontrar furtivamente é casado, e ele querendo livrar-se da amante, que começava a exigir muito dele, resolve matá-la sem deixar pistas, porém, a maior pista que ele pôde deixar foi este perfume. Agindo premeditadamente, deu-lhe o perfume de presente, pedindo que o usasse em seu próximo encontro, provavelmente iludindo-a com alguma mentira... Então, foi até a casa dela como combinado, para certificar-se de que tudo ia correr bem. Ele queria ter certeza de que ela morreria. Com esse intuito, calculou o tempo de reação do cianeto e parou o carro na frente da casa dela e por um descuido, o fez sobre o jardim e não sobre a calçada. E, no exato momento em que ela havia acabado de trancar a porta e guardado a chave em sua bolsa, calculo eu, às 22:40, caiu morta. Ali, ele ficou por uns minutos, tentando ver se ela agonizava ou já estava morta mesmo. Preferiu não correr o risco de descer do carro e, em baixa velocidade, evitando ruídos do motor do veiculo, foi embora. – Neste ponto, Melissa baixou a cabeça e em tom quase inaudível, proferiu estas palavras:

– Ela o viu antes de cair morta... – E recuperando a presença de espírito e em tom inquiridor, virou-se para John, perguntando:

– Quem mais nesta região poderia manipular sais tão caros e perigosos? Quem mais teria aparelhagens delicadas o suficiente para destilar este perfume? Quem mais poderia, enfim, fabricá-lo sem levantar suspeitas sobre si?

Um pesado silêncio de segundos recaiu entre os dois. John a fitava com desespero até que a luz veio à sua mente:

– Oras! Mas isto é... O chefe do laboratório da universidade! – Bradou John, dando um salto da cadeira.

– Mas como pode ter certeza que é ele? – Perguntou Mike subitamente.

– Elementar, meu caro Mike! É o único homem casado que trabalha lá. – Melissa respondeu sorrindo, triunfante.

***