Amor Fraternal

Meu pai tinha hábito de fumar na cama. Certa vez, ao retornar bêbado para casa, ele se deitou, acendeu um cigarro e dormiu. Despertamos com o apartamento em chamas, minha mãe com queimaduras de terceiro grau em 15% do corpo.

Desde então, tenho sono leve.

Por isto, ouvi nitidamente quando a porta da espelunca onde moro rangeu, e o sapato de salto alto se aproximou da minha cama. Eu não estava esperando ninguém, por instinto, deslizei minha mão para debaixo do travesseiro e encontrei meu revólver. Entreabri os olhos.

Uma mulher, vestida de preto, chapéu de largas abas, apontava um calibre 28 para minha cara, chorava.

— Posso ao menos saber por que vou morrer? — tive a presença de espírito de perguntar.

— Deixe de ser ridículo, Vico, existem milhares de razões para te quererem morto! Cada um daqueles que foram prejudicados por suas bisbilhotices.

Bem, estávamos chegando a algum lugar.

— E como eu te prejudiquei? — soergui a cabeça, mão sob o travesseiro.

— Não se lembra, seu escroto? — a mulher devolveu-me a questão, enfurecida — É claro que não! Para você, tudo se resume a dinheiro. Você cava os podres alheios, conclui sua investigação, e o resto que se exploda. Não espera para assistir os resultados.

— Acho que você não estaria aqui hoje se fosse uma virgem sem pecados, não é?

— Mentira, seu porco! Você arruinou minha vida! Fez meu marido se voltar contra mim, e tudo fundado numa mentira!

Porém, eu ainda não me lembrava deste caso.

— Você disse a meu marido que eu tinha um amante, mas você me fotografou com meu irmão.

Vago demais.

— Eu havia ido até o apartamento dele, ele precisava de dinheiro, meu marido não gostava dele e não podia saber que eu o estava ajudando. E você tirou fotos nossas nos abraçando, e disse a meu marido que éramos amantes.

Agora eu estava começando a me recordar. O marido tinha certeza de que ela tinha um caso: eles não transavam mais, porém, sempre havia manchas de porra nas saias e calcinhas dela. Ele jurava que a mataria quando confirmasse isto, pelo visto, não a matou.

— Vocês não eram irmãos, vocês se beijaram na boca. Eu estava num bom ângulo, pela janela, pude ver e fotografar tudo. Vocês se beijaram assim que entraram no apartamento, depois, ele abriu sua blusa e apalpou seus seios. A luz da sala se apagou e vocês foram para o quarto. Lá, ele também se despiu e a pegou por trás. Agora me lembro claramente. Vocês não eram irmãos.

— Não seja ridículo! Nós somos irmãos, você não sabe o que é amor fraternal!

Aquilo era grotesco, se eles fossem realmente irmão... Não, não dava para conceber isto!

— Eu sei bem o que fotografei, e aquilo não era nenhuma demonstração de amor fraternal — retruquei.

— Você com estes seus valores burgueses... É deprimente!

— Deprimente é uma vadia que trepa com o próprio irmão vir me falar de valores, ainda mais com uma arma apontada para mim.

Não sei o que se passava na minha cabeça quando eu disse isto, mas, com certeza, eu não esperava que isto a estimulasse a apertar o gatilho. Elas disparou duas vezes, o primeiro tiro desapareceu no colchão, o segundo atingiu meu braço, mas minha arma estava na outra mão, então, reagi e a acertei com quatro disparos, um na cabeça e os outros no torso. Aí está a diferença entre quem sabe o que faz.

A gritaria começou no corredor, gente vinha espiar o que estava acontecendo, a polícia foi chamada. Eu não tinha com que me preocupar, legítima defesa, eu estava no meu apartamento, ela atirou primeiro.

No entanto, minha mente não se acalmava. Eu nunca havia matado uma mulher antes, e isto é o tipo de coisa que não se esquece facilmente. Mas, mais do que isto, o bizarro relacionamento entre irmão e irmã me inquietava.

A polícia me interrogava, os peritos tiravam foto do cadáver, um paramédico fazia um curativo no meu braço, e meus pensamentos vagavam. Há tanto neste mundo, tantos comportamentos, tantas pessoas diferentes, tabus e transgressões.

Viverei, mas não verei tudo.

(Extraído do livro "O Covil dos Inocentes" - www.covildosinocentes.blogspot.com)