O Inventariante

— Você já procurou a polícia? — perguntei a Isaac Rubinstein — Um roubo deste é algo muito grande.

O judeu ajeitou os óculos, pigarreou e respondeu:

— Entenda, Vico, aqueles diamantes valem cinco milhões... Não é o tipo de assunto que se pode pôr nas mãos de qualquer um.

Fiquei feliz, pelo menos, na mente deste sujeito, era não era qualquer um. De onde ele supunha que podia confiar em mim, não sei.

— Conte-me, então, como tudo aconteceu.

Rubinstein iniciou a narrativa do crime.

Havia sido um dia tranqüilo na joalheria. No fim do expediente, dois senhores bateram à porta e lhes foi concedida entrada. Alegavam possuir um raro diamante e queriam a avaliação de Isaac. Sentaram-se e Isaac pediu para ver a preciosidade. Um dos homens retirou do casaco uma pistola, dando voz de assalto. Isaac tentou fugir, mas foi detido pelos senhores, que o nocautearam. Quando despertou, eles haviam levado apenas um item do cofre da joalheria, uma caixa contendo centro e trinta e dois diamantes. Nada mais foi tocado.

— Há algo em especial no que foi roubado, Isaac, excetuando o valor?

O judeu hesitou.

— Não, detetive, nada que eu saiba.

Um crime desta magnitude não é realizado sem deixar rastros, antes e depois de sua execução. A primeira providência foi visitar a joalheira de Isaac e entender o sistema de segurança do estabelecimento. Tudo era muito rudimentar. A porta dianteira tinha duas folhas, uma grade de ferro que se abria para fora, quando autorizada a entrada, e uma de vidro para dentro. O local era pequeno, poucos metros quadrados, uma mesa e três cadeiras, onde Isaac vendia suas jóias e pedras preciosas e comprava artigos. Atrás, no fundo da saleta, uma porta, também de metal, fechada a cadeado.

— O que há atrás daquela porta, sr. Rubinstein? — indaguei.

— É onde fica o cofre.

— Havia algum sinal de arrombamento?

— Nenhum, nem no cadeado, nem no cofre.

Pedi para que ele abrisse a porta e me mostrasse o cofre.

— Alguém mais possui a combinação?

— Apenas minha filha, que trabalha comigo, às vezes.

Rebeca era uma moça linda, vinte e poucos anos, e, pelo que tudo indicava, um belo corpinho sob aquele vestido de judia recatada.

Respondeu-me com esquivas, e tive a impressão de que ela estava escondendo algo. Porém, o ar angelical da moça me convencia de que esta aura subterfugiosa era apenas um traço da personalidade dela.

Em seguida, passei a interrogar os lojistas vizinhos da joalheria. Poucos notaram algo anormal, inclusive no dia em que Isaac foi assaltado. Abraham, o dono do restaurante Kosher e amigo de Isaac há anos, foi quem achou estranho a demora do amigo em encerrar o expediente e bateu à porta da joalheira.

— Isaac é sempre muito pontual. As luzes da loja estavam acesas e já era tarde. Vi dois homens saindo — o restaurante de Abraham é em frente à joalheria —, mas não pensei que fossem assaltantes. Bem vestidos, loiros e olhos azuis. Isaac sempre recebe clientes da alta sociedade, pensei que fossem mais uns deles.

Esta informação, que já havia recebido de Isaac, mas reiterada por Abraham confirmou minha hipótese de que não se tratava dum bando de pé-rapado.

Bandidinho chulé briga por ponto de venda de drogas, por causa de território, rouba caminhão em beira de estrada, ou, no máximo de sofisticação, tenta assaltar um banco. Mas não é do feitio desta corja obter informação sobre diamantes que valem cinco milhões, guardados num cofre fajuto dum judeu qualquer nesta área da cidade.

Havia duas possibilidades: os bandidos tinham conhecimento prévio, por qualquer razão que fosse, de que o joalheiro guardava os diamantes, ou eles receberam esta informação de alguém de confiança de Isaac, ou, mais improvável, do próprio Isaac.

A família de Rubinstein era pequena, pois a maior parte dela havia morrido em Treblinka. Dos sobreviventes contávamos cinco, Isaac, Rebeca, o irmão Solomon, uma tia louca chamada Esther, e o sobrinho Jacob.

A princípio, poderíamos excluir Esther, enclausurada num quarto e na insanidade.

— Quem mais poderia saber dos diamantes?

— Minha filha e Solomon o sabiam, mas eles estão acima de qualquer suspeita.

— E seu sobrinho Jacob?

— Ele é um rapaz trabalhador. Não precisa roubar para vencer na vida.

Ou seja, de acordo com Isaac, apenas o irmão e a filha tinham ciência do que havia no cofre. Eles eram minhas principais suspeitas.

Dividi minha investigação em duas frentes. Como o tempo era escasso e, fatalmente, os diamantes desapareceriam em poucas semanas, tive de descobrir quais eram as rotinas de Solomon e Rebeca ao mesmo tempo.

A do primeiro era simples: Solomon era um rabino, acordava cedo, ia para a sinagoga, realizava casamentos e os serviços diários, à tarde, se dirigia a bairros pobres da cidade para trabalhos de caridade. Bastou-me seguí-lo durante três dias para descobrir que Solomon era um homem irreprochável.

Rebeca trabalhava, às vezes, com o pai na joalheria, porém, na maioria dos dias, ela permanecia em casa, perfazendo tarefas domésticas. Nada extraordinário também. Até que, numa manhã, um negrinho bateu à porta da casa de Isaac com um papel na mão. Rebeca atendeu e, escondendo um sorriso, apanhou o bilhete e deu uns trocados ao moleque.

Segui o mensageiro, que, em passo apressado, correu para a barbearia de Elijah, onde Jacob trabalhava. Pela vidraça, o menino fez um sinal de OK e desapareceu rua abaixo. Então, os olhos de Jacob se encontraram com os meus, ele fingiu que não havia me reconhecido.

Os dias seguintes redundaram em nada. O negrinho não trouxe mais bilhete algum, e Rebeca e Jacob (eu o havia incluído na lista dos suspeitos) não esboçaram comportamento estranho.

— Sr. Rubinstein, sinto ter de lhe dizer que não tenho pistas de quem roubou seus diamantes — disse a Isaac, diante de toda a família reunida na mesa de jantar — por isto, estou suspendendo as investigações. Sugiro que procure a polícia.

O desespero no semblante de Isaac Rubinstein não me comoveu, pois eu tinha razão.

O carro à minha frente rasgava o breu da noite. Dirigíamos há quase uma hora pela estrada, eu mantendo certa distância, para não levantar desconfiança. O automóvel deu sinal que viraria à direita e penetrou numa estrada de terra, segui-o. Apesar do risco de sair da estrada, achei melhor apagar os faróis e me aproximar do carro, tendo as vermelhas luzes traseiras dele como minha única orientação.

Por duas ou três vezes, tive medo de ter me perdido dele, pois a poeira quase ofuscava os faróis. Colado ao volante, como se fosse um míope, eu tentava me manter no encalço.

Avistei, mais adiante, outro automóvel, estacionado numa clareira na mata. Freei. O carro a minha frente continuou em direção à clareira e também parou. Manobrei e escondi meu automóvel entre árvores, depois, segui à pé até a clareira, oculto no matagal.

Iluminados pelos faróis estavam quatro pessoas, dois homens altos, loiros e com casacos de couro, passageiros do veículo que já estava aguardando neste local ermo, e Rebeca e Jacob, aqueles a quem eu estava seguindo pela estrada.

— Trouxeram o dinheiro? — um dos senhores loiros perguntou.

— Sim — Jacob se adiantou e pôs uma valise no chão — Está aqui.

O outro senhor se aproximou da valise e a apanhou, deixando uma outra maleta no local. Por sua vez, Rebeca correu e se apoderou dela.

— Então, está cumprido o nosso trato, nesta mala está uma parte dos diamantes, como o combinado.

Jacob e Rebeca já estavam se preparando para retornar ao carro, quando o senhor que estava em posse da valise gritou:

— Esperem! Este dinheiro é falso! — jogando para fora da maleta, aberta sobre o capô do carro, uma chuva de papel picado.

Possivelmente, este era o plano de Rebeca e Jacob, pois este se voltou e, com um revólver em mãos, disparou seis vezes, derrubando os dois senhores.

Rebeca se precipitou em direção aos cadáveres, apalpando-os, mas, não encontrando o que procurava, abriu a porta do carro dos mortos e retornou, saltitante, com uma sacola.

— Está tudo aqui, Jacob! — ela gritava.

Eles rumaram a um hotel de beira de estrada e se hospedaram no segundo andar. Aguardei algumas horas, subi e bati na porta.

— Tem alguém aí fora — ouvi Rebeca sussurrando.

— Não se preocupe, amor, ninguém sabe que estamos aqui — e, ao dizer isto, Jacob abriu uma fresta. Aproveitei e dei uma ombrada na porta, lançando o rapazola dois metros para trás, retirei a arma da cintura e nos tranquei no quarto.

Jacob, desesperado, se arrastou, braço estendido, tentando alcançar as calças (ele estava só de cuecas), onde jazia o revólver dele.

— Parado aí, guri, se não quiser levar chumbo na bunda! Eu vi o que vocês fizeram no mato, por isto, não hesitarei em te encher de bala — Jacob entendeu o recado, pois se virou e, aterrorizado, me fitava. Rebeca, assustada, tentava cobrir seus seios, também estava seminua, apenas vestindo uma calçola.

— Senta do lado dele — eu a agarrei pelos cabelos e a joguei no chão, para perto de Jacob. Puxei uma cadeira, onde me sentei, arma apontada para os dois.

— Podem começar a falar, porque não estou entendendo nada.

— Nós é que não estamos entendendo — Rebeca gaguejava — Você disse para papai que não iria mais investigar o roubo dos diamantes. Como nos encontrou?

— Cala a boca, sua vadia — meti a mão na cara de Rebeca — Quem quer explicações aqui sou eu!

A história que Rebeca e Jacob me contaram era das mais interessantes. Na verdade, o verdadeiro nome de Isaac Rubinstein era Isaac Cohen, judeu alemão, prisioneiro de guerra. Cohen era um industrial influente e, graças a seus contatos, conseguiu evitar que sua família fosse enviada para campos-de-concentração e, além disto, recebeu a honrosa ocupação de inventariar os bens confiscados dos judeus aprisionados. Posição que atraiu ódio entra a comunidade judaica — Cohen era um traidor de primeira categoria, o inventariante do mesmo regime que propunha a “solução final”, o completo extermínio da raça judaica do planeta.

No entanto, quando a guerra começou a ser perdida, nem mesmo os amigos influentes de Cohen evitaram que a ordem para execução dele e de sua família fosse expedida. Cohen subornou os guardas com jóias e ouro, que ele sorrateiramente havia acumulado nos anos como inventariante, e conseguiu a liberação de apenas duas pessoas, dele e de mais alguém. Que decisão difícil não deve ter sido para Isaac Cohen decidir quem escolher dentre seus familiares, seus pais, seus irmãos, sua esposa, seus dois filhos e a menina recém-nascida!

Sua esposa implorou:

— Isaac, salve Rebeca...

E foi o que ele fez, fugiu da Alemanha para a França livre e, de lá, quando a Guerra terminou, deixou a Europa, instalando-se como um humilde joalheiro nesta cidade imunda. Reencontrou os poucos parentes que sobreviveram, a irmã, a tia e o sobrinho, e tentou esconder o segredo que o assombrava todos estes anos. Os diamantes? Restos dos espólios do tempo de inventariante, relíquias do sangue da sua raça.

— Meu pai é um desgraçado! Um covarde! Deixou que minha mãe e meus irmãos morressem. Ele tinha todos estes diamantes com ele, e, ao invés de utilizá-los para comprar a liberdade dos outros, o ganancioso preferiu guardá-los, a custo da morte da mulher e filhos! É um verme! — berrava Rebeca enfurecida.

No fundo, eu entendia a indignação da jovem.

— Então, certo dia, dois senhores bateram à porta e conversaram comigo. Diziam conhecer meu pai e alegavam que ele tinha em seu poder um bem valiosíssimo e que eles o queriam de volta. Eram alemães, do alto comando nazista. Disseram-me que me venderiam uma parte por um ótimo preço e que eu ficaria rica, eu precisava apenas dar acesso a eles que o serviço seria realizado. Foram eles que me contaram a história de meu pai e o que ele fez durante o tempo de guerra.

Provavelmente, ela e o primo já estavam apaixonados, junto deliberaram como conseguir permitir o roubo os diamantes. Rebeca havia lhes entregado a chave do cadeado da saleta e a combinação do cofre, mas ela não tinha a chave da entrada, somente o pai possuía uma cópia e, por isto, os alemães tiveram de roubar os diamantes durante o expediente.

— A princípio, achei uma boa idéia. Todavia, eu e Jacob refletimos: por que ficar com uma pequena parte se nós podemos ficar com tudo? Corremos o risco. Combinamos um local para nos encontrarmos com os senhores alemães e levamos o dinheiro falso. Bem, você disse ter visto tudo, então, sabe qual foi o resultado.

— Você é incrível, detetive Vico, conseguiu recuperar meus diamantes! — Isaac ostentava um sorriso de orelha a orelha.

— Eu lhe disse que conseguiria.

— E minha filha e sobrinho estavam realmente envolvidos? — Isaac indagou, preocupado.

— Sim, mas eles foram enganados pelos nazistas. Não sabiam o que estavam fazendo. Os dois fugiram, com medo de qual seria sua reação.

— E os alemães?

— Mortos. Não mais o incomodarão.

Isaac se levantou e apertou minha mão.

— Serei eternamente grato, Vico. E, se um dia minha filha voltar, eu estarei de braços abertos. Um pai sempre perdoa.

Quarenta minutos depois, recebi um telefone no meu escritório, era Isaac:

— Vico, estão faltando dez diamantes!

— Não sei, não os contei — respondi secamente.

— Mas eu contei, estão faltando dez pedras!

— Esqueça, Isaac, se não estão aí, então você nunca os encontrará, os alemães devem tê-los escondido — e desliguei, não estava com saco para agüentar aporrinhação.

Fiz o cálculo mental, se todos os diamantes valiam cinco milhões, dez daquelas pedras eram estimadas em quase trezentos e oitenta mil pratas. Uma puta grana! Rebeca e Isaac poderiam viver muito tempo com este dinheiro, era só não fazer mais nenhuma merda.

(Extraído do livro "O Covil dos Inocentes" - www.covildosinocentes.blogspot.com)