TRIUNFO

-Puta que pariu! Eu não acredito, no final do plantão!

-Deixa para lá, Odair! Vamos só parar e afugentar os dois.

-Não,;d

e repente a gente dá sorte e um dos dois tem uma boa capivara.

Saíram da esquina cantando pneu e pararam em frente a dois moradores de rua que brigavam. Um estava em cima do outro e o golpeava com um cano de metal. Às seis e meia da manhã no meio da Rua dos Gusmões. Duarte imaginou que deveriam ser da turma de viciados que ficam na esquina desta com a Rua do Triunfo durante a noite. Desceram com as armas em punho e dando voz de prisão aos dois.

Sendo Odair delegado titular da delegacia, passaram o caso na frente das outras ocorrências. Duarte, investigador, colheu pessoalmente as digitais e fez o interrogatório. O segundo foi o mais fácil, pois os dois não falaram absolutamente nada. O novo sistema digital de reconhecimento de digitais deu logo as fichas. O que apanhava não possuía antecedentes, mas o agressor... Um achado! Passagens por roubo e assassinato e ainda devia doze anos de prisão para a justiça. Já foi mentalmente formulando o texto do B.O. de agressão e o pedido de transferência para o CDP (Centro de Detenção Provisória). Como de costume saiu para a entrada da delegacia para fumar um cigarro e pensar melhor. Sem saber porque sua atenção se prendeu a uma senhora muito idosa que subia lentamente a Rua Aurora. Vestia roupas simples e desgastadas pelo tempo e era nítida a dificuldade que tinha para caminhar. Este interesse deve ter sido percebido por ela, pois veio direto na sua direção.

-Com licença, seu moço. Como eu faço para falar com o delegado?

-É só entrar e falar com o escrivão ali na recepção. Mas dependendo do que for vai demorar um bocado. A senhora não quer me adiantar o assunto? Eu sou um dos investigadores daqui, talvez possa te ajudar.

-Que bom.

-Vem comigo até lá dentro. Podemos sentar e conversar com mais calma.

Subiram a pequena escadaria e se sentaram em um banco de concreto no hall de entrada.

-Então minha senhora, qual o seu nome e qual é o caso?

- Meu nome é Firmina e é o seguinte, meu filho. Agora pouco eu estava umas quadras aqui para baixo e vi dois meninos serem presos e vim pedir para que eles fossem soltos.

O investigador não conseguiu segurar um sorriso.

-Mas o que a senhora fazia lá? Ali, neste horário, é um lugar perigoso.

-Eu sei, seu investigador. Mas aqueles jovens estão perdidos e eu sinto que Deus quer eu os ajude. Então sempre que eu posso eu levo um pouco de pão e chocolate quente para eles e falo da palavra do Senhor. O menino que estava apanhando não me conhecia e tentou me roubar. Acabou me empurrando e eu caí no chão. O outro viu de longe e veio me defender. Eu sei que se excedeu, mas ele é um bom rapaz. Eu não consegui falar com os policiais que os levaram porque meus óculos quebraram. Não enxergo mais nada sem eles. Uma das jovens dali me levou até em casa e eu peguei o reserva. Ela também me disse que eles provavelmente foram trazidos para cá.

-A senhora deseja prestar queixa contra o meliante que te agrediu?

-Não! De jeito nenhum. O coitado só está prisioneiro do seu vício. A gente tem que orar por ele e tentar ajudar.

O policial passou a mão pelo rosto. Era visível sua contrariedade. Respirou fundo e suspirou:

-Senhora, fique tranquila. Sou eu o responsável pelo caso e nenhum dos dois vai ficar preso. A gente só vai dar um susto neles para ver se acordam para a vida. Fique em paz, dona Firmina, vai dar tudo certo. Onde a senhora mora?

-Em um apartamento na Rua dos Bandeirantes, no Bom Retiro.

-Mas não tem ônibus dali para a Triunfo. São quase dois quilômetros.

-Ah não, meu filho. Eu sempre vou a pé.

-Aguarde um pouco aqui, por favor, dona Firmina.

Duarte foi até posto de gasolina ao lado do DP. Chegou até uma das viaturas da PM estacionada ali:

-Fala sargento Garcia! O que conta de novo?

-Sargento Garcia a gloriosa senhora sua mãe. O que é que você quer? Não, porque você só me procura para pedir favor. Não sei o que minha prima viu em um traste como você.

-Se quiser eu te mostro o que ela viu. Vou te dar a chance de fazer uma para Deus ver, ao invés de ficar fazendo volume em ocorrência que não é sua. Você pode levar uma idosa até o Bom Retiro para mim?

-Fazer o que, né? Manda ela vir até aqui.

-Valeu Gerson. Sabe que se você não fosse PM seria até uma boa pessoa.

-E você não prestaria nem se fosse monge.

Entrou novamente na delegacia e acompanhou a anciã até a viatura. Depois que ela saiu, entrou e foi direto para o banheiro. Molhou várias vezes o rosto. Olhou-se no espelho um bom tempo. Falou para sua imagem refletida:

-E o troféu de imbecil do ano vai para... Duarte! Infelizmente ele não pode vir receber pois está de férias no Presídio da Polícia Civil. Alguém se habilita a ir até a Avenida Zaki Narchi entregar para ele?

Saiu do banheiro e foi até a sala de interrogatório. Pegou o preso agressor, que estava algemado com as mãos para trás, e o foi conduzindo como se o estivesse levando para uma das celas. Pôs a boca bem perto do ouvido dele:

-Olha aqui filha da puta, eu acabei de colocar cinquenta reais no seu bolso e abri suas algemas. Você vai se virar, enfiar um soco com vontade em mim e correr como um louco. Se eu te ver aqui pelo Centro de novo te mato. Você entendeu? Agradeça a velhinha por isso.

O preso foi bem obediente.

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Duarte estava sentado em sua mesa com o rosto afundado entre as mãos. Levou uma bronca homérica do delegado. Ele deixou bem clara suas opções; uma investigação pela Corregedoria ou uma transferência para uma vaga em aberto na Zona Leste. Na verdade o lugar era tão longe que chegava a ser Zona Lost. Bem, melhor o desterro do que ser exonerado e ir preso por facilitação de fuga. Onde ele estava com a cabeça para ter feito aquilo?

-Investigador, o outro nóia da ocorrência está perguntando se já pode ir embora.

Ele sorriu.

-Pede para esperar um minuto que eu ainda quero falar com ele.

Levantou e começou a se alongar. Pensou em como ia levar o safado para o fundo da delegacia, onde ainda não haviam instalado nenhuma câmera. Sentia uma comichão nas mãos e nos bíceps. Um desejo de sangue.

-Nada como um bom exercício para espantar a tristeza...