A mulher do vizinho

O vizinho que mora ao lado arrumou uma namorada. Era tudo que os pais de João precisavam para continuar apertando a mente do filho. Se antes eles diziam “todo mundo aqui no beco tem namorada, menos você e o cara que mora aí do lado”, agora eles dizem “todo mundo aqui no beco tem namorada, agora é todo mundo mesmo, menos você”. Homem bonito, ele poderia conquistar a mulher que quisesse. Muitos caras fariam qualquer coisa para ser como ele. Entretanto, ele não dá muita importância a isso. Só que agora a pressão estava ficando insuportável. Precisava fazer alguns telefonemas. Telefonemas que, em outro contexto, serviriam para conseguir sexo sem compromisso.

“João?”

“Isso, Lúcia. Precisamos conversar.”

“Claro, querido. Sabe onde me encontrar.”

Encontraram-se em um bar vagabundo na orla soteropolitana.

“O quê? Você deve tá brincando! Isso não é sério!”, disse Lúcia.

“É sério”, respondeu João.

“Cara, você é um gato. Pode arrumar uma namorada fácil fácil”

“Não estou afim de relacionamento sério. Entenda isso!”

“Você quer que eu finja que sou sua namorada por quatro semanas? Só para impressionar seus pais… gente… E se algum conhecido que já pagou por um programa me reconhecer lá em seu bairro?”

“Isso não vai rolar. Você é uma puta de luxo, atende em Horto Florestal, Alphaville I, parte nobre de Ondina e Barra, Campo Grande e Vitória. No meu bairro só tem fudido e desdentado que não poderia pagar pelos seus serviços nem se trabalhassem cinquenta anos.”

“Nossa. É isso que você pensa de seus vizinhos e conhecidos? Não me surpreende que você seja misantropo”

“Olha aí. Você falou “misantropo”. É uma puta culta. E, mais importante, você é gostosa. Quero deixar gente com inveja”.

“Como eu disse, você poderia arrumar namorada sem precisar pagar um centavo. Você é estranho, mas ok”.

“Quanto você cobra?”

“É o seguinte. Eu sei que você já fez alguns serviços…”

“Eita, porra.”

“Se me fizer um favor, eu te ajudo sem cobrar nada”

“Fale”.

Duas semanas se passaram. João não queria executar o plano de imediato. Ficaria óbvio demais. Então, esperou alguns dias. Foi num sábado que ele levou a beldade para apresentar em casa e para desfilar pela rua. Vizinhos ficaram olhando, ele tinha razão. A “namorada” era mais gostosa que as namoradas dos vizinhos. E, claro, os pais ficaram impressionados. O plano está sendo perfeito.

“Pai, mãe, Lúcia. Lúcia, pai e mãe”.

Não ficaram embasbacados apenas por causa da beleza da moça. Ela sabia fazer tudo. Era prestativa e demonstrava inteligência e sagacidade.

“Você é uma moça incrível. Tomara que case com meu filho”, disse o pai. “Qual a sua profissão?”

“A profissão dela é a mais antiga do mundo, pai”.

Lúcia ficou pasma, mas soube disfarçar.

“E qual a profissão mais antiga do mundo, João?”

“Li recentemente numa revista de jornalismo científico que a profissão de cozinheiro é a mais antiga do mundo. A reportagem é baseada num estudo da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. A função de arrumar comida e cozinhar é anterior a qualquer outra função. Há dois milhões de anos que a humanidade cozinha”, disse João.

“Temos um filho culto e uma possível nora culta. Imagina o filho de vocês”, disse a mãe, aos risos.

Alguns dias depois, festinha no beco. Senhores da Rua, todos convidados, quem seria doido de não convidar? De maneira inevitável, a beldade foi assunto. Nenhum favelado jamais sonhou em ter uma mulher daquela. Um bonitinho entre os fodidos vai lá e consegue. Todos querem aprender com o cara, o novo ídolo da vizinhança. Fausto IV, um dos senhores, disse que um antepassado, Fausto II, conseguiu levar para casa uma loira que morava no Corredor da Vitória. Aliás, o rapper Mag teria escrito uma música com base nessa história, que ninguém acredita, fique claro. A Dinastia dos Fausto é rodeada de especulações, folclores, histórias impressionantes, entre outras maluquices.

“Os serviços que você fez para nós deram fruto, né, João? Você acumulou dinheiro, o que faz parecer que você tenha algum status. Você joga alguma roupa de marca nas boates. Você tem vida dupla, seu safado, foi assim que você conquistou ela”, disse Fausto IV.

“Enterrei alguém para ela”.

“Sério?”

“Sério”.

“Eu queria usar do meu cano para conquistar mulheres. Funciona, mas só para mulher feia”.

“Basta demonstrar que você pode qualquer coisa”.

“Cara, não fica por aí expondo seus serviços. E se ela te entregar?”

“Não vai acontecer”.

“Se acontecer, sabe que vamos entrar em ação, né?”

“Com certeza”.

“E cara, o que achou da revista de jornalismo que te dei?”

“Muito boa. Estou até citando reportagens em conversas. Parecendo uma pessoa culta. Eu impressionei ela assim, tá ligado?”

“Tô ligado haha. O que você gostou mais?”

“Uma reportagem sobre a era do secularismo. Nos EUA, a cada ano vão se fechando mais e mais igrejas católicas. No Brasil, ocorre o oposto. Igrejas são construídas. Próximo do Aeroporto de Salvador há uma igreja católica sendo construída. Era do secularismo levará milênios para chegar aqui”.

“Oxe, cara, isso aí não é minha praia não”

Na verdade, João ainda não havia feito o serviço. Naquele dia, no bar, Lúcia disse o que queria em troca. João estava para executar o favor naquela mesma noite, depois da festinha. Dias antes, no bar onde foi acertado a troca de favores:

“Se me fizer um favor, eu te ajudo sem cobrar nada”

“Fale”.

“Tem um ex-cliente que está me enchendo o saco”.

“Quem ele é? E o que quer que eu faça?”

“Um homem de bem. Pai de família. Católico devoto. Pagou por alguns programas. Se apaixonou e agora não me deixa em paz. Ciumento, ataca e arrebenta homens que contratam meu serviço. Isso está atrapalhando meus negócios. Quero que você pratique aquilo que é sua especialidade”.

“Entendi. Tem foto dele?”.

Cara de almofadinha. Branco, quarenta anos, parece menos com a cara gordinha, como se fosse um menino mimado com tamanho adulto e terno.

“Onde posso achá-lo?”

“Ele provavelmente está nos espiando agora. Quando você sair, ele pode ir para cima de você.”

“Mas não vou… você sabe… Hoje.”

“Eu sei. Mas pelo menos dê uma surra nele. Um aperitivo”.

Na saída do bar, dito e certo. O cara veio para cima. A mesma cara de mauricinho, usando uma jaqueta preta. Ele se acha o Fonzie católico.

“Fique longe dela”, ele ordena.

Ele usa um pé de cabra para bater. João o desarma fácil e o surra, principalmente na cara.

“A cara arrebentada é para você parecer mais macho”, disse João. “Nos vemos daqui a um mês e alguns dias”.

Um mês e alguns dias depois. Lúcia cumpriu a parte do acordo. Está na hora de João cumprir a dele. O Católico não deixou Lúcia em paz. Ficou dias sem incomodar, por causa da surra, mas logo voltou a encher o saco. Ele não sabe que isso o tornará uma vítima fácil. Porém, será ele ou Lúcia. Todo mundo sabe o desfecho: cedo ou tarde ele vai matá-la e talvez não queira parar nela. Pode se tornar um serial-killer. Livrar-se dele é um dever cívico, talvez João esteja salvando vidas ao fazer isso.

João pegou o pé de cabra e saiu do carro. João gosta de justiça poética: o verme tentou agredi-lo com o mesmo tipo de arma. Agora ele será agredido da mesma maneira que gosta de agredir. João gosta de bater na têmpora. Na altura dos olhos. Foi apenas uma. O Católico o viu antes de ser atingido. Foi tudo muito rápido.

No outro dia de manhã, João foi de carro até a casa de Lúcia. Ela apareceu da porta.

“Entra no carro”, ele disse.

Ela se arrumou e foi ao carro dele.

“Para onde está me levando, João?”

“Surpresa”.

Passaram pela avenida Paralela até chegar próximo ao aeroporto. Igreja em construção. Muito cedo. Não havia trabalhadores. João para o carro. Os dois saem. João abre o porta-malas. O Católico está amarrado e desmaiado. João o carrega até uma parte da igreja onde há cimento fresco cobrindo o chão. Ele tira todo o cimento, depois tira paralelepípedos até abrir uma cova quadrada certinha. Serrando e martelando madeira, João forma um caixão. Lúcia fica espantada com a velocidade dele.

“É meu talento. Faço isso há anos”.

João enterra pessoas. Vivas. Faz trabalho para o tráfico e bandidos grã-finos. Lúcia sabia disso.

O Católico é colocado dentro do caixão. Ele acorda e começa a se debater. Não pode gritar, está com a boca amarrada. João permite que ele fale e grite.

“Socorro”, ele grita.

“Ninguém vai te ouvir”.

João vai fechar o caixão.

“Pelo amor de Deus, Lúcia!”, disse o Católico.

“Sim. Pelo amor de Deus!”, disse Lúcia.

João fecha o caixão e o coloca na cova. Depois ele cobre o caixão com os paralelepípedos que encaixam perfeitamente. Ainda sobra espaço para o cimento, que João usa para cobrir. Tudo está como antes, nem parece que alguém esteve ali.

João leva os paralelepípedos que sobraram para o carro. Quando os dois voltam para o veículo, João percebe que Lúcia treme.

“Assustada?”

“Em êxtase. Nunca mais esse bosta vai me perturbar”.

“Fico feliz. Foi muito bom fazer negócio contigo”.

Cinquenta anos se passam. A igreja é um sucesso. A era do secularismo ainda não chegou em Salvador. Uma idosa Lúcia passa de carro na frente da igreja, junto com sua filha adulta. Ela pede para sua filha parar o carro.

“O que há?”, pergunta a filha.

“Nada demais”, disse Lúcia. “Me lembrei de algo. Só isso”.

Lúcia achou impressionante ter passado todo aquele tempo e ninguém ter percebido que havia uma pessoa enterrada ali debaixo. João era mesmo competente.

Requiescat in pace.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 02/06/2023
Reeditado em 05/07/2023
Código do texto: T7803554
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