UMA HISTÓRIA PARA CONTAR

Alice nunca contara a ninguém como seu gato morrera. Quando menstruou pela primeira vez, sentiu-se infeliz e passara o dia na cama. Seu gato aninhara-se ao seu corpo e a ela fizera companhia durante todo o dia, ronronando. Sua mãe lhe dera explicações e consolos; seu pai lhe dera um parabéns acanhado e a abraçara meio sem jeito e a beijara na testa, demonstrações de afeto pouco comum.

Aos poucos a infelicidade inicial transformara-se em raiva e ódio pelo ocorrido, de tal modo que a noite tivera insônia.

Em determinada hora morta ela procurou pelo gato, acariciou-lhe o pelo, e lhe apertara o pescoço com toda força e tempo que o ódio proporcionara. O gato esperneou, unhou as cobertas onde estava enrodilhado, defecou e morreu, sem dar um miado.

Depois Alice dormiu. No dia seguinte anunciou que o gato amanhecera morto e que sujara a coberta. Sentira vergonha de contar a verdade, que nunca ninguém soube.

Alice cresceu e cursou administração de empresas, mas nunca trabalhou. Na faculdade conheceu o seu marido, um sujeito nem feio e nem bonito, meio sem graça, provedor e mal amante. Tiveram dois filhos e levaram vida normal e tranqüila.

A história a seguir aconteceu já na menopausa de Alice, quando os filhos haviam saido de casa para seguirem vida própria e o casal já morava sozinho, e nada mais tinham a dizer um ao outro, e tampouco aos amigos, a não ser as banalidades de uma vida classe média vazia, tipo coisas como as empregadas estavam cada vez mais caras e incompetentes, como os homossexuais pervertem os jovens e o futuro, como racismo no Brasil era invenção de quem não tinha o que fazer, etc.

Na ocasião dos fatos, Haroldo, seu marido, tivera que viajar a negócios e ficaria alguns dias fora de casa. Antes, aconselhou-a convidar a empregada, (há anos com o casal), a dormir na casa, para fazer-lhe companhia, o que ela declinou por achar uma bobagem.

Alice passou a primeira noite bem... apenas esquecera de deixar algumas luzes acesas , para sinalizar que havia gente na casa.

Na noite seguinte ela assistira televisão até tarde, na companhia de Mel, sua cadelinha de estimação. Outra vez esquecera-se de acender luzes e nem se lembrou de trancar as portas da casa.

Dormiu de imediato, e algum tempo depois, acordou porque ouvira barulho na cozinha. Ao que lhe pareceu, uma gaveta cheia de talheres caíra no chão. Havia alguém dentro da casa.

Mel, a cadelinha, que dormia junto a ela, colocou-se de pé, alerta, e iniciara a latir assustada. Alice levantou-se da cama e encaminhou- se para a cozinha, levando o celular na mão para ligar à polícia e acendendo todas as luzes por onde passava.

Na cozinha, cuja luzes estavam acesas, deparou-se com um jovem, aparentemente com pouco mais de vinte anos, que tinha um saco de juta nas mãos no qual ia colocando tudo de valor que encontrava pela frente.

Ao vê-la, o rapaz disse despreocupado:

_____ Tia, vai me dando o seu celular e fique quieta. Sente-se naquela cadeira e não me atrapalhe.

Apoderou-se do celular, jogou-o dentro do saco e saiu em busca de outras coisas que ele considerava de valor, dizendo:

_____ Nem pense usar o telefone fixo... cortei os fios.

Mel, a cadelinha, avançou corajosa para o rapaz que deu-lhe um tremendo chute com o bico do sapato que a lançou até a parede. Granindo o animal fugiu para os fundos.

Na sala o rapaz depositou o saco no chão e se pôs a arrancar a televisão do rack, puxando-a fortemente e sem cuidado, arrancado os fios. Depois colocou o aparelho junto ao saco e disse:

_____ Tia, onde está o cofre... e o computador.

Deixou a televisão no chão e saiu com o saco cheio para fora da casa. No quintal Alice ouviu-o conversar com outra pessoa que perguntou:

_____ Com quem você está falando? Há alguém na casa?

O ladrão não respondeu e retornou para dentro:

_____ Tia, cadê o cofre e me passe o segredo.

E foi entrando da cozinha para a sala em direção aos quartos.

Foi quando Alice viu o banquinho de metal que a empregada usava para subir e pegar as coisas depositadas mais ao alto no armário.

Alice pegou o banquinho por uma das pernas com a mão direita, seguiu o rapaz que lhe dava as costas e bateu com ele na nuca do ladrão, depois mais algumas vezes, mesmo estando o infeliz imóvel no chão.

Alice ficou quieta, parada, de tocaia na porta da cozinha, para bater no outro ladrão assim que ele entrasse na casa. Mas nada aconteceu. O outro ladrão, desconfiado fugiu, levando as coisas que o primeiro lhe entregara.

Alice ficou sem se mexer um bom tempo. Depois saiu para a rua deserta e apertou a campainha da vizinha. Ao ser atendida, gritou pelo interfone que fora assaltada. Foi acolhida e ligaram para a polícia. Enquanto aguardavam, lhe deram um copo de água com açúcar, que ela achou horrível.

A policia militar chegou depressa, de giroflex ligado e sirene desligada devido o adiantado das horas. Alice explicou aos dois policiais que fora atacada e indicou qual era a sua casa. Quando os policiais já estavam no quintal ela lembrou de esclarecer:

_____ Tem um homem morto na cozinha...

Sua vizinha deu um pequeno grito e colocou a mão no coração. Até então nada a respeito fora dito. Os policiais levaram as mãos aos respectivos revólveres e indagaram:

_____ Como é?

_____ Eu matei um dos ladrões... usei um banquinho.

Os policiais entraram e colocaram as mãos no pescoço e pulso do defunto:

_____ Melhor chamar o delegado, a polícia técnica e o IML.

Um deles saiu para comunicar pelo rádio. O outro pediu licença à Alice para usar o fogão e fazer um café, justificando:

_____ Vai demorar...

O outro voltou na companhia do vizinho, serviram-se do cafezinho e ficaram a falar de futebol.

Alice começou a arrumar a bagunça deixada pelo bandido, mas o policial a dessuardiu:

_____ Melhor deixar tudo como está para não atrapalhar a polícia técnica.

Assim Alice, entediada, sentou-se à mesa junto a eles, abriu um pacote de biscoitos e ficou a ouvir a conversa.

O delegado e o investigador civil chegaram, levaram Alice para a sala e pediram a ela que contasse como tudo acontecera.

Depois de ouvirem e pedirem um ou outro esclarecimento, o delegado disse para ela ficar tranqüila:

_____ Amanhã as quinze horas a senhora passe pela delegacia para a gente pegar um depoimento formal. Mas não se preocupe, é só burocracia. Esses jovens estão cada vez mais ousados ao roubarem coisas para trocarem por drogas.

Os dois ainda ficaram um certo tempo vendo a técnica tirar fotos e procurar digitais. Depois o encarregado do rabecao recolheu o cadáver e o levou para o IML.

Os vizinhos foram dormir e Alice fechou a casa, apagou as luzes e também foi para a cama.

Não dormiu muito porque teve que abrir a casa para a empregada que se assustara ao ver tudo remexido:

_____ Clara, coloque de volta as coisas no lugar e depois lave a cozinha. Há sangue pelo chão... a noite matei um ladrão.

Clara pensou que a patroa estava brincando, mas ela confirmou contando os mínimos detalhes. Durante a narrativa lembrou-se de Mel; a cadelinha levou um chute do ladrão e sumiu. Saiu com a empregada a procurá-la e encontrou-a no quartinho das vassouras, enrodilhada no próprio corpo. Ela balançou o rabo ao vê-las e as duas a colocaram em uma caixa de papelão para levá-la ao veterinário.

Somente então lembrou-se do marido ausente. Ligou para ele explicando o acontecido, dizendo que não se preocupasse, pois estava tudo resolvido. Mesmo assim o marido prometeu chegar no próximo vôo. Não carecia avisar os filhos; mais tarde eles ficariam sabendo de qualquer forma.

Alice levou Mel ao veterinário, que constatou um costela quebrada; receitou anti-inflamatório e remédio para dor. Mel voltou para casa bem melhor e feliz.

A noite o marido voltou da viagem preocupado. Disse que ela precisaria de acompanhamento psicológico. Decisão compartilhada pelos filhos, que souberam do ocorrido pelo marido.

Durante a semana Alice recebeu muitas visitas das amigas, que lhe deram apoio e razão. O mesmo que lhe dissera o psicólogo. Este receitou alguns tranquilizantes e pílulas para dormir, que ela não comprou, pois não se sentia intranquila e estava a dormir muito bem.

Nunca ficara sabendo o nome do morto. Não perguntara e ninguém lhe dissera. Não sabia se tinha pai e mãe, irmãos, parentes ou amigos. Era alguém descartável. Tampouco recuperaram suas coisas, (que ela dizia ser "porcariadas sem valor"). Nunca mais a chamaram à polícia ou ao judiciário.

No sábado foi com o marido à uma reunião social da associação comercial e industrial. Sentaram-se à mesa em quatro casais, pouco conhecidos. Os homens falaram de negócios, e as mulheres sobre as tendências da moda e os infindáveis argumentos das dificuldades de encontrarem boas empregadas.

Alice ouviu tudo quase calada. Quando esgotaram-se os assuntos e caiu sobre a mesa um silêncio social, Alice disse em voz firme para todos à mesa ouvirem:

_____ Vocês souberam que matei um homem?

Haroldo, seu marido, estranhou a revelação. Alice sempre fora tão discreta. Mas a face de triunfo e superioridade da esposa não deixava dúvida... ela gostara do acontecido.

Alice passou então, a contar aos estupefatos membros da mesa, como matara um homem na sua cozinha.

E ainda acrescentou passagens e opiniões próprias que fizeram as demais mulheres rirem às gargalhadas.

Numa próxima reunião ela nem passou pela preliminares e foi logo perguntando:

_____ Ficaram sabendo que matei um homem na minha cozinha?

Com o tempo Haroldo percebeu que doravante esse seria o assunto preferido da esposa e que ele teria que conviver com o fato.

Porque ela, finalmente, encontrara uma história para contar e colocar-se em destaque sobre as demais pessoas.

......................Sajob - julho/2023................