Soltos & Presos: um conto da pandemia

I – Soltos e Presos

O aviãozinho da federal pousou no Aeroporto de Congonhas. Era a segunda vez que viajavam de avião. A primeira vez aconteceu quando foram levados para o Paraná.

Quando a aeronave se aproximava de São Paulo, os irmãos se apertavam para olhar pela janela tentando reconhecer os locais. As mudanças eram tantas que não reconheceram nada.

Receberam os alvarás de soltura numa sala da PF no aeroporto, ainda vestiam calça caqui e chinelos de borracha. Enquanto caminhavam pelo aeroporto, perceberam que todos usavam máscaras. Também haviam recebido máscaras antes do embarque e avisados que não deveriam tirá-las durante o vôo. No desembarque pensaram em tirar, mas foram aconselhados a permanecer com o acessório. Fazia muito frio.

Uma vez libertos, procuraram a saída do saguão. Apesar de terem morado quase toda vida em frente ao Aeroporto de Congonhas, nunca tinham entrado ali.

Quando saíram, reconheceram a passarela para pedestres sobre a Avenida Rubem Berta. Subiram sem pressa na passarela para alcançar o sentido centro-bairro de onde pretendiam seguir para onde era a casa deles.

Perceberam que o Supermercado Extra estava todo modificado; seguiram andando e sentiram um imenso vazio ao ver que tudo estava destruído e abandonado. Entraram na Avenida Roberto Marinho, agora totalmente aberta e com nome novo. Não viram nenhum dos antigos moradores; na viela onde moravam não havia uma casa em pé, apenas as marcas das rodas dos tratores sobre os entulhos, ficaram desolados. A noite já estava chegando, precisavam de algum lugar para dormir; se acomodaram na marquise de um prédio abandonado nas proximidades, outras pessoas também estavam por lá.

O dia amanhecia, era domingo, um grupo de religiosos fornecia café da manhã aos moradores em situação de rua, tiveram a primeira refeição após chegarem a São Paulo. Comeram pra se fartar e voltaram ao terreno da antiga favela, esperavam encontrar alguém que lhes indicasse onde estava sua família.

Por volta das 10 horas, encontraram um ex-colega de escola que ainda vivia no que restou de sua casa enquanto construía três cômodos num terreno doado em Parelheiros. Ele informou que sua família tinha ido morar num prédio do CDHU no Jardim Silveira.

Com muita dificuldade conseguiram encontrar a mãe e o pai que moravam sozinhos num pequeno apartamento de dois quartos, os outros irmãos já tinham ido embora de casa.

Os pais ficaram contentes quando os gêmeos chegaram, apesar de se preocuparem com o aumento das despesas.

O pai ainda trabalhava como funileiro na região.

Eles ficaram admirados ao saber que não podiam sair de casa.

O país estava em quarentena por causa da pandemia do corona vírus.

Foram soltos, mas continuavam presos.

II - Os irmãos

Os gêmeos nasceram no inverno de 1987, a mãe Shirley Sew da Silva tinha uns 17 anos, o pai Antonino da Silva também. Ela era paulistana do Bairro da Lapa, ele mineiro de Guaxupé. Ela tinha pele morena e olhos azuis, cabelos castanhos encaracolados, quase totalmente crespos, ele negro retinto de pai e mãe.

Antonino foi de Minas Gerais para São Paulo com sua família quando ainda era pequeno, tinha uns dois anos ou menos. Foram morar na Favela do Buraco Quente, nas proximidades do Aeroporto de Congonhas.

Seu pai era carpinteiro na obra da Avenida 23 de Maio. A avenida famosa ficou pronta e ele foi ficando por ali mesmo trabalhando nas obras dos inúmeros prédios que eram construídos na região; já poderia ter mudado para um bairro, mas acomodou-se na favela graças à proximidade do trabalho. A mãe de Antonino ganhava seu dinheiro como diarista nas diversas casas e também nos apartamentos que iam surgindo na região, apesar de ter tido mais 5 filhos paulistanos depois do mineirinho Antonino, eram 6 ao todo. Antonino começou trabalhar aos 14 anos numa oficina de automóveis no Jardim Aeroporto. Estudava a noite numa Escola Estadual da Vila Alexandria. Shirley começou trabalhar, aos 14 anos, numa loja de artigos para festas, próxima da oficina onde Antonino trabalhava. Descobriram que estudavam na mesma escola e moravam perto, passaram a ir e voltar juntos todos os dias. Mal tinham terminado a 8ª série e já haviam feito um “puxadinho” na casa dos pais dele; um quarto e cozinha eram mais que suficiente “para nós dois”; logo foram morar juntos. A primeira gravidez foi a consequência imediata. No inverno de ´87 nasceram os gêmeos Adilson e Wilson.

Antonino aprendeu trabalhar com funilaria e pintura de carros enquanto Shirley trabalhou na loja de festas até o nascimento dos gêmeos quando parou e se tornou dona de casa.

Nesta época já se falava na abertura de uma avenida que rasgaria a favela ao meio; falava-se em indenização aos moradores e ou na construção de prédios populares ali mesmo, ou uma COHAB em Carapicuíba; como nada acontecia, tudo parecia mais um boato.

Depois dos gêmeos, Shirley teve mais três filhos. Na terceira gravidez ela tinha 22 anos e seu pai, muito preocupado, gastou a poupança para lhe pagar uma laqueadura, apesar da pouca idade já era mãe de 5 filhos, contando com os dois gêmeos.

Os pais de Antonino tiveram diversos desentendimentos com a nora, o filho e os netos morando naquele espaço minúsculo. Pra resolver a questão, compraram um terreno para os lados do Bororé no “fundão da zona sul”. Lá construíram uma casinha e deixaram o barraco da favela para o filho mais velho. Ali os meninos cresceram.

Antonino não era um marido ou pai violento, era trabalhador, mas bebia e jogava sinuca quase todos os dias depois do trabalho, por isso levava pouco dinheiro pra casa. Reclamações não surtiam efeito.

Os gêmeos eram idênticos e inseparáveis, a vida da família nunca foi fácil, não sobrava dinheiro pra nada, muito pelo contrário, sempre faltava. Os meninos perambulavam pela redondeza, principalmente nos dias de feira livre onde faturavam alguns trocados levando compras em carrinhos de madeira, que eles mesmos fizeram, para as moradoras. No fim das feiras semanais, recolhiam frutas e legumes que eram deixados pelos feirantes. Com os moleques mais velhos aprenderam a praticar pequenos furtos e, às vezes, fumar maconha.

Discriminados nas escolas do bairro classe media por morarem na favela, estudaram só até o sexto ano, quando a mãe não mais os convencia a ir para a escola, ao menos pra aproveitar a merenda. Tinham casa, mas viviam na rua por conta própria. Sempre levavam alguma coisa pra mãe, às vezes lhe davam dinheiro.

III – Amizades Coloridas

Steve Sew, (a pronuncia correta é “siu”, mas por aqui ficou “céu”) chegou ao Brasil, vindo da Inglaterra por volta de 1919, veio trabalhar numa famosa loja de departamentos de irmãos empresários ingleses. Trouxe esposa e um casal de filhos pequenos, no Brasil nasceram mais dois. Steve, apaixonado por futebol, trabalhava de segunda a sábado, mas no domingo pela manhã ia praticar seu esporte favorito nos campos de várzea do Bairro do Cambuci, onde morava. Aos domingos também ia assistir os jogos do seu time do coração, o Sport Club Corinthians Paulista. Na maioria das vezes levava a família em seu Ford Bigode; tornou-se sócio do clube do Parque São Jorge, nunca perdiam os bailes de carnaval.

No Brasil sentia-se livre do formalismo britânico, era amigo de portugueses, italianos, espanhóis, lituanos. Os árabes das fábricas de tecidos eram seus fornecedores na loja e as vezes almoçavam tabule juntos.

Jogando futebol de várzea, travou amizade com jornaleiros, lixeiros e leiteiros, brasileiros de todas as cores que viviam na Paulicéia. De vez em quando tomava umas cachaças enquanto degustava “vaca atolada” com amigos do Bairro da Lapa, muitos deles sambistas negros, aos sábados à tarde quando trabalhava meio expediente.

Por essa época, a Avenida Paulista era uma via residencial com casarões, casebres e cocheiras por onde circulavam carroças, carros e bondes; ia da rua Vergueiro até Cerqueira César. Além da casa dos Matarazzo, havia chácaras onde habitavam moradores sem a nobreza dos milionários.

Perto de onde é a Avenida Brigadeiro Luiz Antonio tinha uma chacrinha onde morava uma família de negros paulistanos, Sebastião Antonio da Silva e Quitéria. Ele era motorneiro e ela dona de casa; tinham 3 filhos e 3 filhas. Eles criavam patos e galinhas; dona Quitéria preparava uma galinha a cabidela que era famosa entre a família e amigos. A amizade de Steve Sew com Sebastião nasceu porque ambos gostavam de jogar futebol aos domingos e torciam pelo mesmo time. Não demorou e passaram a frequentar as casas um do outro aos domingos; quando não tinha jogo, vez ou outra almoçavam juntos.

Sempre que a família de Steve ia à casa do Sebastião, após o almoço, se sentavam embaixo das árvores onde conversavam, tomavam umas “pinguinhas” e jogavam cartas, as esposas ficaram amigas e conversavam sobre suas experiências de donas de casa numa varanda. Os filhos também ficaram amigos e brincavam sem preconceitos pelo quintal e na rua. Luiz, o filho mais velho de Sebastião e Quitéria, tinha vinte anos, e após concluir um curso de taquigrafia, conseguiu emprego nos Correios e Telégrafos. Anne Sew, primogênita dos ingleses com 19 anos, havia terminado o ensino médio, poderia ser professora, mas não arriscava por ser tímida e falar português com forte sotaque, trabalhava como tradutora numa editora na Praça da Sé. Os dois jovens começaram a se olhar diferente. Anne de baixa estatura, loura de rosto cheio, olhos azuis, rechonchuda como a mãe e Luiz, negro magro, 1,75 metros, alto para sua época, bom jogador de futebol como o pai, ganhou espaço no coração da inglesa que logo foi correspondida.

Quando os pais perceberam que os jovens estavam namorando, não houve espaço para o preconceito. Sua mãe se preocupou com o que os parentes ingleses iam pensar; logo apagaram essa preocupação. Desde que vieram para o Brasil, nunca foram visitados por eles que achavam o Brasil uma selva distante mais primitiva que a África. Ele também decidiu jamais ir lá uma vez que já veio debaixo de todo tipo de críticas para ser “book maker” no “fim do mundo”.

O casal colorido casou-se e foi morar no distante bairro de Pinheiros por volta dos anos 1940. Tiveram 4 filhos mestiços. Os filhos decidiram que iam jogar futebol, tentaram de tudo e conseguiram algum sucesso.

João Tadeu Sew da Silva, o mais velho, mulato esguio como o pai negro, dançava muito mais que jogava.

Enquanto jogava no Palestra, passou a frequentar os clubes da Lapa onde conheceu uma linda negra baiana que, como ele, era pé de valsa e se tornaram parceiros. Casaram-se no final dos anos ’60 e alugaram um pequeno apartamento na Lapa, logo nasceu sua filha Shirley Sew da Silva.

Largou o futebol quando quebrou a perna numa partida de várzea durante as férias e não havia tratamentos adequados na época, não teve atenção do clube porque deveria estar se preservando nas férias. Deixou a bola.

Foi trabalhar de porteiro num prédio em Moema, o salário era baixo, não dava pra pagar o apartamento da Lapa, acabou indo morar numa vila de casas no Brooklin Velho, o aluguel subiu demais e para se livrar do aluguel, acabou indo morar na incipiente Favela Comando.

Assim como João Tadeu, seus irmãos não deram muito certo nos esportes. Conforme foram deixando o futebol, iniciaram trabalhos com salários menores como porteiros e zeladores de prédios.

IV- O plantão

Os irmãos gêmeos Adilson Sew da Silva e Wilson Sew da Silva nunca tiveram uma festa de aniversário. Lembram-se bem de uma vez, há 15 anos, quando um grupo de policiais cantou “feliz aniversário” para eles.

Eles haviam sido presos por tráfico de drogas no dia anterior por volta do meio dia enquanto fumavam maconha numa praça da rua Gaivota. Às 8h00min do dia seguinte a mãe dos gêmeos chegou à delegacia com os únicos documentos que possuíam, suas certidões de nascimento, na esperança de livrá-los da prisão.

O escrivão, ao conferir as datas de nascimento, verificou que eles aniversariavam exatamente naquele dia. Estavam completando 18 anos e, portanto, seriam presos como adultos. A mãe argumentou que a prisão ocorrera no dia anterior, portanto na hora do flagrante, eram menores; de nada adiantou, enrolaram a pobre mulher com argumentos jurídicos incompreensíveis e ela se retirou resignada, aos prantos, certa de que estava errada. Os agentes acenderam uma vela e cantaram “parabéns” para eles.

Na verdade, aquela delegacia, que ficava lá pelas bandas de Moema, andava mal avaliada pelo sistema de controle e precisava de alguns flagrantes para subir no “ranking”.

Naquele fim de semana precisavam produzir a qualquer custo para não ficar fora do prêmio de produtividade, por isso faziam excursões diárias pela Favela do Buraco Quente e Comando, paravam todos os “suspeitos” que caminhavam pelas ruas quase desertas do Ibirapuera, Moema e Brooklin desde sábado a noite; o frio era cortante. A maioria dos “suspeitos” eram faxineiros dos condomínios ou dos Shoppings da região. Alguns eram pedreiros com seus ajudantes retornando de obras emergenciais nas casas e apartamentos.

Os “meganhas” andavam desanimados com a possibilidade de não alcançarem seus objetivos. Já era madrugada de domingo quando caiu no rádio a ocorrência de um assalto num boteco da Rua Jamaris. A viatura descaracterizada voou para lá para prender os meliantes. Os ladrões fugiram pela Alameda Jurupis alcançando a Barão de Jaceguai com um fiat uno também roubado. Uma viatura da PM cercou-os na Vieira de Moraes que sobe em direção ao Aeroporto de Congonhas, não houve reação porque os revolveres que usavam era de brinquedo.

Os bandidos já estavam rendidos quando a equipe da civil chegou, mas os relatórios informaram que houve “intensa perseguição” até o local de prisão da “perigosa quadrilha”; como mágica, armas de verdade com numerações raspadas foram apresentadas na abertura do inquérito e os assaltantes foram recolhidos ao xadrez aos bofetões onde aguardariam a remoção para o cadeião de Pinheiros.

Reanimados com o resultado voltaram pras ruas antes sol nascer. Desta feita foram rodar próxima da Marginal Pinheiros de olho em carros dirigidos por “suspeitos”. Pararam alguns, interrogaram, deram safanões, xingaram e nada. Eram homens, mulheres ou moleques da classe media retornando de baladas da região. Alguns estavam meio bêbados, outros portavam pequenas porções de maconha e até cocaína, pelos tipos de carros e roupas que usavam, sabiam que não arranjariam nada com a delegada. Ela havia avisado desde o inicio do plantão que “não levassem tranqueira só pra dar trabalho”. A equipe garimpava algo que desse “ibope”.

Pararam um opala antigo, botaram os ocupantes de pernas abertas e mãos no capô. Quando conferiram os documentos descobriram que se tratava de um conhecido empresário colecionador de carros antigos que estava a caminho de uma exposição no interior. Pediram mil desculpas e rezaram pra não ser denunciados já que o homem era influente.

O dia amanheceu, tomaram café com leite e pão com manteiga numa padaria na esquina da Avenida Bandeirantes. O movimento de carros aumentou, alguns iam para as compras do almoço de domingos, outros iam para as igrejas. Foram chamados de volta para a delegacia para serviços internos, mas, ainda tinham um longo período pela frente,

o plantão de 24 horas só terminaria às 19h00min.

Os irmãos presos não tinham dinheiro para os ‘combos’ na cadeia, por isso passaram a prestar serviços para bandidos melhores posicionados.

Lavavam roupa, levavam bilhetes, limpavam celas. Também ajudavam guardar e distribuir drogas no presídio.

Quando foram condenados a 7 anos de prisão foram transferidos para Presidente Venceslau onde continuavam prestando serviços para as facções.

Numa operação pente fino no presídio, encontraram uma grande quantidade de maconha. Os gêmeos não tinham a menor ideia de quem era a mercadoria que nem estava perto de suas celas.

Na hora de apurar responsabilidades, receberam ordem para assumir que eram os donos. Por isso tiveram as penas agravadas. Como traficantes contumazes foram enviados para um presídio de segurança máxima no Paraná. Por causa da pandemia tiveram as penas revisadas.

FIM