O imenso e o infinito

“Sete de abril de 19.....

É impressionante, Gilda. Como eu gostaria que você pudesse ver isso tudo. O telegrafista disse-me que a operação do instrumento que ele usa é muito simples. Mesmo assim, preferi apenas ditar a ele a mensagem para transmitir a você. Como não tenho muito tempo, e outras pessoas também desejam comunicar-se com o continente, despeço-me dizendo que estou muito bem. Seu. Sérgio.”

— Meu Deus, Gilda.

— Sim. – Gilda enxugou as lágrimas – Encontrei isso hoje na minha caixa de correio.

— Isso não pode ser sério. Ou poderia?

— Não sei, Gessi! Não Sei! Não acredito nessas coisas... Mas é uma carta, e é muito parecida com o jeito que o Sérgio escrevia. Esse “despeço-me dizendo que” é muito a cara dele.

— E como você sabe que isso não é falso? Sei lá, pode ser alguém brincando, alguma ex-namorada dele.

— Não faço a menor idéia. Olha... deixa isso aí. Quer um café?

— Aceito.

“Dez de abril de 19....

Minha doce Gilda. Não pude me comunicar nos últimos dias porque aportamos em uma ilha. Você não vai acreditar ao saber quem embarcou. Lembra-se do Peter, aquele moço canadense que ficou alguns meses na casa da Doutora Nélia? Ele mesmo. Eu o vi, até o cumprimentei, mas creio que ele não me reconheceu. Aliás, é uma coisa que tenho notado nas pessoas neste navio. Logo que sobem a bordo, parecem perdidos, apáticos, e isso dura por vários dias. De todo modo, estou aproveitando bastante. O mar está calmo e tenho-me ocupado em desvendar as alas desse gigante dos mares. Para minha satisfação, encontrei algo que você iria adorar se estivesse aqui: uma biblioteca. Assim que possível, volto a escrever-lhe. Sérgio.”

Gilda entregou o papel à irmã. Os caracteres eram impressos como em um mimeógrafo à graxa, e não havia remetente no envelope.

— Você devia levar isso para a polícia. Alguém se passando por seu marido está mandando “mensagens telegrafadas”. Se o Sérgio tivesse morrido, vá lá, que centros espíritas há aos montes por aí recebendo chamadas do além. Mas ele está em coma! Você não acredita nisso tudo, acredita?

— Quer saber? Não sei em que acreditar. Mas isso do Peter me deixou intrigada.

— Consultório médico, boa tarde.

— Alô. Boa tarde. É do consultório da Doutora Nélia?

— Sim. Deseja marcar uma consulta?

— Na verdade, não. Aqui é a Gilda Menezes, fui vizinha da doutora. Eu poderia falar com ela? É um assunto de família...

— Um momento, por favor.

[ ...ouve-se Pour Elise... ]

— Alô, Gilda?

— Oi, Doutura.

— Minha secretária disse que era um assunto de família. Aconteceu alguma coisa com o Seu Clóvis?

— Não, doutora, O papai está ótimo. Obrigada por perguntar. O caso é outro. A senhora se lembra

daquele rapaz canadense que se hospedou em sua casa?

— Sim, o coitado. Foi tão triste... como soube?

— Como soube de quê?

— Peter sofreu um acidente de carro. Permaneceu em coma por meses, mas acabou falecendo. Eu lembro até a data. Foi no dia dez de abril.

“Dezoito de abril de 19....

Estive uns dias sem comunicar-me porque o telegrafista do navio se ausentou. Não sei como, mas acredito que a tripulação deva ter seu próprio equipamento, já que é um instrumento importante em alto-mar. Mesmo assim, com a paciente ajuda de Peter, imagine só, aprendi a escrever em código Morse. Esta mensagem fui eu mesmo que redigi. E sabe que é bem fácil? Ontem enfrentamos nossa primeira situação realmente tensa a bordo. O Capitão, um homem inacessível cuja única imagem que tenho é uma silhueta negra que alguém disse “aquele é o capitão do navio”, esse Capitão anunciou estarmos retornando ao continente. O tempo piorou consideravelmente depois disso. Sinto muito sua falta. Espero que esteja bem. Afetuosamente. Sérgio”

— Estou começando a ficar com medo dessas cartas, Gilda.

— E eu, então. Sabe essa cena do capitão?

— Sim. O que tem?

— Há muitos anos, a primeira vez que saímos juntos, Sérgio me levou ao cinema, para vermos “Era uma vez na América”. Eu vi pela janelinha da sala de projeção a silhueta de um homem, e perguntei quem era. O Sérgio disse exatamente isso: “aquele é o capitão do navio”. Isso é assustador. Mas sabe... não é isso o que me assusta mais.

— Não? O que pode ser mais aterrorizante que isso?

— O quadro de saúde dele. O médico disse que o Sérgio está piorando. O organismo não reage mais ao tratamento, e as chances de óbito... Deus do céu... não gosto nem de pensar nisso. Ele estava se recuperando tão bem.

Gilda voltava do trabalho de ônibus. Em um sinal vermelho, cinco meninos atravessaram na faixa de pedestres. O menorzinho, que andava mais à frente, fez uma graça como um passo de dança. Abateu-se sobre Gilda um daqueles dejá vu, do pior tipo deles: os que dão certeza absoluta de “já vivido”, mas nenhuma lembrança de “tempo” nem “lugar”. Quando se aproximava de casa, um homenzinho exótico aguardava defronte ao seu portão. Vestia-se com uma formalidade um tanto cômica, de terno cor-de-canela e sapatos pretos.

— Tenho uma mensagem para a senhora. – disse o homemzinho entregando-lhe um envelope.

— Então é você que tem deixado essas cartas na minha casa! O que pensa que está fazendo? Eu vou denunciá-lo!

— Por favor, senhora. Não me interprete mal. Esse é o meu trabalho.

— Trabalho? É o seu trabalho importunar a família de pessoas doentes?

— Não, de forma alguma. Eu sou apenas um telegrafista.

Tendo dito isso, o homem virou de costas e desceu a rua sem olhar para trás. Gilda abriu o envelope ali mesmo.

“Vinte de junho de 19.....

Finalmente estamos retornando à terra firme. É curioso quando se está há algum tempo em alto mar, sobre um oceano tão estável e que inesperadamente está-se num turbilhão e uma tempestade de tão grandes proporções que mesmo eu, que sempre apreciei tanto o mar, quis muito voltar ao continente. Sei que essa será apenas uma breve parada de emergência. Por isso mesmo, gostaria muito de revê-la. Venha até o cais do porto, para que possamos nos despedir como devem ser as despedidas. Sérgio”

Gilda nem entrou em casa. Correu até a avenida e tomou um táxi.

— Hospital São Vicente. Rápido.

O trânsito, que era caótico àquele horário, ficou ainda pior. Uma passeata interrompeu as ruas do centro por três horas. Um mar de gente vestida de branco, com bandeiras e cartazes brancos, pedia “Paz”. A turba vinha na direção contrária à de Gilda, que desceu do táxi para percorrer o restante do trajeto a pé. Quanto mais tentava avançar, mais os caminhantes a empurravam de volta.

Muitos quarteirões à frente, um fumante despreocupado lançou o toco de cigarro ainda aceso na direção de um edifício antigo. A chama percorreu no ar o espaço da rua, do muro, do pátio, da pequeníssima janela do porão da fábrica abandonada de pães e biscoitos, onde uma nuvem de farinha e poeira levantou-se pela vibração de tantos milhares de pessoas em marcha. E poucos são os que sabem que uma nuvem de farinha, em tal ambiente como aquele porão, pode tornar-se uma bomba se uma chama, tal como aquela do cigarro, cair no meio dela. E foi o que aconteceu. O prédio todo explodiu, voando pelos ares. O mar de gente que caminhava tornou-se num instante em um mar furioso de gente que corria. E os prédios vizinhos à velha padaria explodiram junto, assim como muitos carros na rua, e até a motocicleta que entrega botijões de gás. E Gilda não pôde com as ondas de gente que se sobrepunham umas às outras.

Então ela tropeçou.

As ondas vieram sobre ela. E a arrastaram, e tornaram a submergi-la. E todo o peso do mar de gente caiu sobre Gilda. E todo o mundo, e o porto aonde ela queria chegar, que era apenas o hospital a trezentos metros de onde estava, tudo foi ficando distante, e mais distante, e mais, até sumir de vez.

Gilda.

Gilda.

Gilda abriu os olhos. Diante dela, o rosto tranqüilo de seu esposo, emoldurado por um céu tão limpo e tão azul como os que só viu no cinema. Sérgio sorriu.

— Ouve, meu amor. É o mar. O navio partiu, mas nós a resgatamos a tempo.

E era mesmo o mar. O mar imenso refletindo o céu infinito, esses que só parecem azuis e que na verdade não são. Finalmente, e juntos, Gilda e Sérgio estavam fazendo o tão adiado cruzeiro sem destino certo, mas que só muito raramente retorna ao porto de origem.