LÁPIDE

Quando suas mãos tocaram aquele chão seco e frio, ele sentiu de novo uma sensação de algo que se assemelhava muito ao terror puro e simples (creio que por muito poucas vezes na vida chegamos a este sentimento tão forte e sobrenatural, é algo que passa pela perda de um filho, ou a ânsia da morte.Algo como o perder gradual da sanidade, o entrar num mundo subumano. Algo que nos toca poucas vezes, mas meu amigo, em algum momento de nossas vidas somos tocados pelo nosso pecado, somos fisgados por nossos medos e o que podemos esperar são dores e sofrimentos. Cada um de nós sempre tem uma caveira em sua vida e cedo ou tarde vai se encontrar com ela...) Seus olhos iam desesperadamente dos arbustos encravados naquela estranha formação rochosa a um pequeno filete de luz que teimava em aparecer por entre os galhos secos. Teve uma incrível sensação de dejavú, uma certeza de que um capítulo estranho de sua vida se repetia diante de seus olhos. Escorou numa árvore seca tentando se levantar. Sua cabeça latejava como se um coração pulsasse no seu interior, seus ossos todos ardiam, seus pensamentos se confundiam e uma gota de suor que escorreu por seu rosto o fez perceber o quanto aquele dia estava frio. Aos poucos conseguiu se levantar escorando aqui e ali. Deu alguns pequenos e dolorosos passos já visando àquela réstia de luz que agora aumentava um pouco a ponto dele perceber um descampado com algumas flores secas. Estava descalço e o rastro que seguia indicava que alguém havia caído ali no mesmo lugar onde ele estava. Percebeu que o caminho por entre o mato até o lugar de onde vinha a luz estava aberto, caminho este que agora era sua meta. Teve que se abaixar quando um bando de morcegos passou num rasante de dar medo, que lugar era aquele? Que merda de lugar era aquele de onde ele não se lembrava como havia ido, um lugar no nada, um lugar macabramente (se é que isto existe) conhecido . Este era o sentimento que mais o inquietava . Conhecia aquelas flores mal cuidadas, aquele bosque feio com aquele rústico caminho no meio do mato. Caminho que parecia ter sido aberto por alguém se arrastando ou talvez (este pensamento veio acompanhado de uma injeção de gelo no fim da espinha) arrastado... A luz aumentou um pouco à medida que ele caminhava, ora mancando, ora se escorando ofegante nas arvoras que circundavam aquele lugar. Parou um pouco para respirar, a boca sorvendo aquele ar frio que penetrava em seus pulmões como uma faca fria e afiada. Foi quando um pouco de luz bateu em seu corpo e ele percebeu estupefato a enorme mancha vermelha contrastando com sua camisa branca de escola. Tentou gritar, mais o que saiu foi um chiado fino e pobre (como nas noites frias de inverno em sua cama regada a antibióticos e rezas, bronquite e castigo...) Não tinha como não ser... Era sangue... Que agora também tingia seus olhos verdes. Tentou correr, queria uma explicação para aquela porra toda. Uma fina chuva começou a cair... A luz se aproximava, seus olhos fitavam a clareira aberta como a porta do céu. O cheiro era de terra molhada e suor, (o medo às vezes se apresenta das formas mais variadas). Seus pés rasgavam a vegetação como se escalasse uma montanha. Seu corpo todo agora era uma mistura de todos os eus que existem em cada um, cada parte dele tentando ser mais forte, cada célula tomando iniciativa própria, cada um com seu cada um. Enfim a luz cobriu seus olhos agora firmes, seus passos o levaram a um cemitério... ___Meu Deus! Foi o que pode pronunciar. Retirou a camisa e percebeu aliviado que não havia qualquer ferimento. Mas então, de onde vinha o sangue ainda molhado que empapara sua camisa? Não sabia, como não sabia também porque a marca que seguiu no mato continuava até dois pequenos túmulos encravados bem no meio do cemitério, (mas que merda... Odiava cemitérios, detestava velórios. Só conseguia se relacionar com a morte durante as leituras constantes de Stephen King, a quem devorava ferozmente livro após livro desde que tinha lido Christine, aos 12 aos de idade...) Decidiu que se estivesse num conto de terror seguiria até o fim, (não é assim que sempre acontece? Sempre sobra um no final... Talvez eu seja ele.) O pensamento fez com que desse um tímido sorriso, o primeiro, desde que tinha se dado fé daquela estranha manhã, ou seria tarde? Não tinha pensado nisto e sinceramente era o que menos o preocupava... Aqueles sentimentos confusos foram bons, pois o ajudaram a chegar até a cova que se encontrava aberta. Dois passos o separavam agora da visão do que estaria lá dentro... Foi o que fez com que parasse . Respirou pesadamente fitando o espaço que o envolvia agora,que era

uma grama verdinha e bem cuidada .Olhou para o lugar de onde veio e o que viu foi que aquele gramado sumia de vista. Fechou apertadamente os olhos como se faz quando não se quer acreditar no que vê, mas realmente era isto . Sumiu... Pensou resignado e agora um tanto quanto abatido emocionalmente (um leve torpor que faz com que o real se misture com o impensável de modo que nosso cérebro aceita como algo perfeitamente concebível devido ao alto grau de stress a que está acometido.) Caminhou como se caminha para a forca certo de que era o fim. Suas mãos tremiam e ele começou a chorar não um choro simples (se é que posso me referir assim, já que nenhum choro é simples...) Uma imagem começou a se formar na sua frente, como um retrato amassado pelo tempo. Uma mulher jazia deitada no fundo do buraco, por cima da terra mal ajeitada. E ao olhar para ela, bem dentro de seus olhos abertos e saltados, os pensamentos foram sendo jogados em sua cara. Partes dos dias foram vomitados na sua frente, e ele viu... Ele viu que o trazia ali.... Os gritos que dava se misturavam as imagens num balé inconcebívelo e l. Começou a arranhar o rosto com as unhas sujas ao mesmo tempo em que pulava para dentro da cova como um raio, sacudindo violentamente aquele corpo inerte. A chuva aumentava e ele se viu ali, segurando o corpo da mulher que havia matado há algum tempo atrás... O sangue ainda escorrendo da cabeça aberta como uma torneira mal fechada. A sua mulher... A sua mulher... A mãe de seus filhos, sua paz, seu amor... Caiu de joelhos com a cabeça dela pendendo em suas mãos. Então era isso que sujara sua camisa de sangue?Não. Agora ele sabia que não. O sangue era seu. Levantou um pouco mais seu corpo sem vida e percebeu o brilho metálico que lhe ofuscava os olhos. Agora se lembrava de tudo... Pegou a arma nas mãos e saltou para fora não sem antes se despedir pela milésima vez daquela que foi a sua vida e hoje repete a sua morte. Começou a se arrastar pensando nos filhos e na dor da perda. Devo ir, pensou resignado... E começou lentamente o caminho de volta aquele bosque que agora se desenhava de novo em sua frente. Deu um sorriso macabro e mancando se encaminhou para o lugar onde repetiria o gesto mais uma vez. Já são quantas? Não sabia, não tinha como saber... Uma gargalhada brotou de sua garganta suja de sangue enquanto se encaminhava para repetir o ritual por mais uma vez.