Dezembro Outonal

Dezembro Outonal

Nós nos encontrávamos nas tardes frescas de outono e no mar escaldante do verão. Éramos dois, tornados em Uno e ainda assim, a face de um bode se apossou de nosso leito.

Era dezembro... Meu pés vagavam nas areias das calçadas, perdido no tempo e na indiferença, do tédio sentia-me como um náufrago entre as folha laranjas, meus olhos se estendiam pelo horizonte triste e as sombras formavam figuras roxas e pálidas que se alastravam pela minha face de reflexão. Eu havia me tornado um vulto por debaixo do chapéu.

As pessoas de mim se aproximavam com sua expressão de falso interesse e amor. Meu nome oco saía de vossos lábios e eu apenas respondia com a crueldade de abril. Eu me apropriava das sombras e a figura que se formava era um universo desconhecido de plena e luminosa escuridão. Meu ser se dissipava.

Sentei-me no banco que contrapunha seu tom azul à negritude de meu ser, eu respirava tons amenos e desvelados enquanto ardia em mim a fúria celeste de uma tempestade. Eu todo era gris. E sentado naquele lugar, com aquelas vozes que de mecânicas faziam-se cósmicas, eu me entrepunha nas horas e nos meses, tornando-me alheio a mim mesmo e tendo em meus olhos apenas uma imagem refletida, o teu sonhar.

De meu instante fui tirado, com a brutalidade que se tira a vida do seio imortal. Eu era desprendido de mim, e ainda pior, de ti. Aquelas palavras ralhavam-me como vidro e aqueles tapas que de tão leves deslocavam-me os ombros, desintegravam todo o meu ser.

- Olha quem aqui se encontra!

Minhas pupilas por um instante dilatadas, puderam no seguinte, à penumbra, fixar o perturbador. Os cabelos que se assemelhavam à galhos secos e palhosos, os olhos belos e molhados como vitrais de cristal francês, e a pele, tal morena, tal banca, que tornava impossível uma definição. De meu paladar apossou-se um gosto amargo de ofensa que vinha direto do tamborim cujo o sangue me bombeava; Seu ritmo era feroz tal qual explosão solar... Ter lábios tão próximos às lágrimas e tão distantes ainda, o gosto do asfalto se impregnava em meus dentes.

- Diga-me...

Estas foram as únicas palavras que meus lábios souberam responder, aquele buraco negro havia me fulminado, e eu agora via a rua.

- Dizer o quê, se és tu que me aparece?

- Nem sempre presença quer dizer permanência...

Dizia eu com meus olhos de abismo enquanto caía bruscamente no cadafalso da memória e do esquecimento. Eu sentia nossas mãos se desenlaçarem e minha prata tornar-se ferrugem.

- Tem visto a S...?

(Por qual diabo, me dizeis vós leitores, um homem que sabe dos outros o pesar insiste em continuar a remoer-lhe as úlceras? Será sadismo? Ou será apenas a consciência humana forçando-lhes a auto-afirmação e a pseudo-solidariedade?! Eu juro que não os entendo...)

E com meu olhar tenebroso, respondi-lhe sorrindo:

- “E o corvo disse... Nunca mais!”

- Nossa, então ela ficou mesmo com raiva, einh?!

- E com razão, acima de tudo.

Seus olhos de floresta pálida encontravam-se com os meus tão raramente quanto meus lábios um bom vinho, e ao se estalarem no instante certeiro, bailavam em desigual, tal como dragões ancestrais que se encontram, e lutam sorvendo um do outro o sangue e ferindo-se mutuamente. Naquele instante, o corpo reagiu, e como se fosse espetado por um alfinete, levantei-me.

Seu olhar de pura incompreensão e malícia me seguiram por instantes, era como se caçasse em mim o deleite de sua peçonha. Meus lábios e minha alma que dispersavam-se em pranto suave e generosidade ressoaram.

- Adeus, que agora tenho de ir.

Ele não ousou me responder. Continuei a vagar com meus passos descompassados de ritmo exato e me guiei tal qual mariposa pelo brilho das vitrines. Eu estava perdido em devaneios memoriais enquanto era levado pela inércia da humanidade. Houve uma mudança em meu ser. Eu estive resguardando-me nas eras, como se evitasse uma explosão cautelosas de cóleras incautas e rubras, habitava em mim um fogo intangível que agora dera lugar a um mar tranqüilo e profundo. Eu não sou um homem prático. Eu fazia uma semiótica de mim, e em cada fragmento, eu flagrava mais meu semblante enobrecido pela tristeza. A sombra que se alastrava dos meus pés dava à calçada minha pigmentação e o sol negro e covarde daquela tarde abafada e sombria lustrava minha pele com uma chuva interna; O presságio da tempestade... Eu pervertia com notas de março o céu de dezembro. Eu lambia o gênero de Apolo com minha língua afiada e minhas presas de aço. Eu me dissolvia na torrente e escorria pelas ruas e esgotos, dando à terra meu odor de molhado e meu gosto de fera, enquanto meu Eu revindicava do corpo a posse e a liberdade. Volúvel, espalhei-me no entardecer.

Quando me recompus e meu olhar, que breu, tornou-se brasa acesa, incandescia a noite prematura. Sentia como se fosse um deus de desgraças que sem redenção encontrava-se cadente nas gotas de concreto. Rabiscos de ferro cortavam minhas costelas. As luzes recém acesas ascendiam meu espectro de tenebras. O semblante refletido de quem já foi lanterna. “Aquela que eu amo não precisa mais de mim”. Eu era simples e puramente azul, de um ultramarino inconfundível de dilacerações almáticas e prazeres mortos se orgasmo. Eu era uma caricatura macabra e desfigurada, meu céu exalava pavor e minha garganta arranha-céus esbranquiçados. Sob a tormenta, eu me atormentava, incessantemente caminhado.

Naquela época trabalhava numa produção, numa obra (artística) de término espetacular. Então, na viela sem mim avistei a última porta morna de meu pesar. E com molho fez-se chave, e da chave fez-se a navalha, e da lâmina suave o estio de meu paladar. Com a iris encostada na ventana, tal como ventosa, eu sentia o tempero-aroma de tua pele, e suspirava meu carpir multi-colorido, deixando em teu nariz pedaços de minha tez desconformada.

Ah, Sofia! Por que abandonaste teu tão cativo amigo? E logo na hora em que ele rastelava com o pincel sua tela...! Por quais demônios foste adentrar tão fundo na alma do condenado e tão gentil se pôs a desvendar e desnudar quem em si era pura “mestixistência”?! E agora, este barulho de estalar de maxilares, e biscoitos, e farinha que se quebram penetrantes por de trás de minha cabeça! A submissão e a miséria são diferentes, mas nada as impedem de que andem juntas, caminhando lado à lado na cascata da mediocridade!

Eu, no momento cujo minhas mãos trêmulas pretendiam abrir a maçaneta e surpreender-te com minha presença, senti o peso de uma espora descer-me as costas; resistentemente cabisbaixo infiltrei-me nas frestas, logo, quando tu houveras visto-me, assim, dissipando-se na névoa do meu pensar imponderável e, nos braços de outro, tornada carne.

Meu cachimbo apagou-se. Meu padecer transbordou langue num tom escarlate sobre a tela fria, escorrendo pelo cavalete, a fina e suave gota que alastravasse em um rastro de adrenalina e plasma que minha caixa toráxica fazia o favor de estourar. Com olhos sombrios e coração diafante, eu acabava de me aniquilar. Abaixo da pintura, com uma marca de estilete, minha última assinatura... Sua foto rompida e ensangüentada.

A embriaguez do sóbrio é a paz do infante. O fim têm de ser brusco e o meio aniquilado. A eternidade é apenas para as almas, nosso papel é morrer!

-Todos na rua brindavam o fim de Dezembro.

(Rafaela Duccini - 31/03/2009)

R Duccini
Enviado por R Duccini em 02/04/2009
Reeditado em 11/07/2009
Código do texto: T1519575