Chuva de emoções.

Naquele dia, o crepúsculo nos fazia crer que a vida estendia-se para além de nossas preces, nossos desejos. E desejo era realmente o que mais ele tinha naquele momento. Faltava-lhe o ímpeto condutor da ação que figurava somente nos escritos que arquivava em sua gaveta.A mesma gaveta onde guardava, por anos, os últimos fios de cabelo que lhe caíram. Era o crepúsculo de sua vida. O reflexo no espelho do longo arrastar-se dos anos. E não eram poucos que agora se cobriam de amargas lembranças daquele frio inverno em Roma. Abriu-se uma janela em sua alma e as lágrimas passavam através dela como a chuva passava agora em sua varanda. Sim, não havia como negar, toda sua vida fora pelo trabalho, pelas coisas casuais; com a aposentadoria vieram as rugas, a velhice e as dificuldades que a acompanham; estava agora cada vez mais longe de reencontrá-la, de contemplar seus olhos verdes, sempre parecendo sorrir de algo tão improvável quanto o fim daquele sonho!

Estava olhando a chuva forte que agora inundava a sua varanda, batia à sua porta na tentativa quase inútil de abri-la... Seria o passado trôpego pedindo perdão?

Levantou-se da antiga poltrona em frente à janela... Ligou o rádio empoeirado e as lembranças vinham como presente da memória que preservara os momentos que eternizavam pela doçura de ser poeta. Ao aproximar-se, um calafrio percorreu-lhe todo o corpo, já alquebrado. Um vulto parecia competir com a chuva na tentativa de aproximar-se!!! Mais perto... Mais... Tanto que jurava poder sentir-lhe a respiração! Sim, era ela, não havia mais dúvidas, mesmo sem os óculos, deixados na mesinha ao lado, podia vê-la com uma nitidez incomum àquela hora da noite. Era ela... Mas como? Pensava estar alucinado... Se as notícias lhe fugiram durante anos... Décadas... E seu nome não era mais pronunciado há tanto tempo. Não poderia ser ela que se afigurava diante de seus olhos!

Enquanto ardia em pensamentos, o vulto aproximava-se mais. Outro calafrio... a chuva já espancava sua janela...Ou seria apenas aquele lençol branco que esquecera no varal? Estava ficando tenso!!

Andou ligeiramente até a porta da sala, confuso, atônito e quase sem fôlego em busca de algum conhecido. Mas quem? Ele certamente era o único habitante daquela casa desde que ela havia decidido partir sem ao menos lhe dar o direito de saber por que, sem esboçar a menor compaixão a seus apelos desesperados e apaixonados! Não, não havia como chamar alguém àquela hora, naquela tempestade. Então, súbito, a porta se abre.

Eis que encontra aquela que silenciosamente encerrou seus dias de amor. Sua face transformada pelo tempo ainda trazia as antigas emoções, os esquecidos sofrimentos.

Lágrimas embargavam sua voz, tremia, mas não conseguia pronunciar nada. Foi ela então quem se aproximou,sorriu, tocou-lhe o rosto molhado com tamanha maciez que precisou fechar os olhos para conter a emoção. Então, ela, em um lindo vestido alvo como sua pele, abraçou-o e lentamente começou a explicar que não teve escolha ao partir, descobrira algo terrível acerca de sua saúde. Inevitável, sofreria sim, porém menos se pudesse ocultar dos próprios olhos o desgaste emocional de tão amado ser. Contudo, prometeu a si mesma voltar,em qualquer época, enxugar-lhe as lágrimas que por hora derramasse, pedir perdão fosse em qualquer dimensão e por todos os canais possíveis se fizesse ouvir. As palavras soavam feito o vento leve que agora bailava lá fora, quando a chuva fez-se pequenos fios prata a escorrer na vidraça! Abraçou-o novamente, beijou sua face,depois a boca e já nem tentava mais balbuciar qualquer coisa que pudesse estar sentindo... Os braços dela pareciam fluidos a atravessar-lhe todo o corpo, adormecendo os sentidos. Então, passou-lhe um prazer incomum, um torpor jamais experimentado... Sentiu-se o mais leve dos seres.

Abriu os olhos e buscou os dela, ainda tão incrivelmente verdes e contemplando aquele olhar mágico, entregou-se totalmente!

No dia seguinte, um velho amigo prestou-se a uma visita inesperada a fim de contar o que descobriu sobre aquela ausência tão sentida, incógnita e desesperada. Encontrou as portas da varanda abertas, entrou e chocou-se com a cena: O amigo jazia no chão, olhos voltados para fora, nos lábios um sorriso enigmático. Aproximou-se, tomou o pulso, percebeu um reles fio de vida, chamou-o e já ia começar a narrativa quando o velho moribundo em palavras derradeiras, apenas sussurrou: “Ela voltou”!

E se foi. Sobre seu corpo, apenas um velho lençol branco cobria-lhe o corpo nu.

AnjodeCristal

Cristiane Maria
Enviado por Cristiane Maria em 24/04/2009
Reeditado em 28/06/2012
Código do texto: T1558008
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