A INUTILIDADE DO PENSAMENTO
 
Subi as escadas sentindo o peso da tristeza em minhas costas. Os degraus que me levavam ao sétimo andar estavam frios e os meus pés descalços acusavam o ardor na parte mais fina e sensível de sua base. Levantei a cabeça e olhei um pouco mais para cima. Só vi os degraus para serem vencidos. Desta vez, eu não quis contá-los, como sempre fazia. Nem multiplicá-los, porque o meu estado eufórico não me permitia brincar com a matemática. Minhas costas ardiam, as pernas pesavam, a cabeça doía e o pensamento só atinava para encontrar uma solução para o meu problema. Aliás, o meu problema, dentre os problemas existentes na vida de um ser humano, era o melhor. Bem, pelo menos eu sofria, mais gozava... a vida. Continuei a subir os benditos degraus. Um por um. Devagar. Primeiro andar... Segundo andar... Terceiro andar... Os corredores estavam frios e úmidos. Faltava neles o calor humano ou, até mesmo, passagem de mais gente transitando pelos labirintos, de um andar para o outro. No quarto andar, a luz do corredor estava apagada. Olhei para o interruptor. Pesadamente, levantei o braço esquerdo e toquei-o com a ponta do dedo indicador. Ao ouvir o clique, a luz acendeu-se: clareou-se aquele pedaço de ambiente externo, naturalmente sombrio e deserto. Mais um degrau, um empenho a mais para transpor cada obstáculo. De repente, parei. E pensei: cada degrau daquele equivalia a um empecilho na vida, por isso era tão trabalhoso, fadigoso, espinhoso superá-lo. Era preciso persistência, obstinação e até a própria competência para galgar cada piso acima do outro. Não quis contar, como dissera antes, quantos degraus existiam até o apartamento 77, do sétimo andar. Sabia que eram muitos, e todos eles eram iguais. Senti um ardor, acompanhado de uma fisgada, na perna esquerda. Pus a mão em cima para fazer uma alavanca e, com isso, me ajudar a subir sem ter que redobrar os esforços que estava fazendo até então. Lembrei-me da última noite. Tinha sido uma linda noite de amor. Uma coisa era certa: o total do meu cansaço e desânimo, numa proporção de dez para dez, tinha sido causado pela noite anterior. Minto. Pela noite anterior, uma ova! Eu já tinha tido noites anteriores e em nenhuma delas eu havia sofrido tanto, me desgastado tanto. Então, a culpa, ou melhor, a façanha tinha nome: a minha vizinha Ellen. Ela, linda como sempre, veio bater na porta do meu apartamento. Queria uma xícara de açúcar. Ao vê-la, meu coração disparou. Convidei-a a entrar. Ela aceitou. Conversa vai, conversa vem, o desejo, o fogo da paixão e, para "os finalmentes", foi um pulo. Finalmentes, vírgula. Para as ditas preliminares. Ela estava, displicentemente, convidativa. Desta vez fui eu quem aceitou o convite de suas pernas entreabertas, a meia abertura de seus lábios carnudos e sensuais, o palpitar de seu busto em descompasso, o olhar que me dizia “vem” e o calor candente de sua pele em quase contato com a minha vontade de possuí-la. O sofá se entregou, sem cerimônias, para que nós o usássemos e abusássemos de sua maciez e consistência de lugar, quase tão bom e apropriado, para um bom começo de amor. Talvez, por isso, subir aquelas escadas estivesse sendo tão incomodativo para o meu corpo. Claro! Ele ainda não havia se recuperado do esforço, do dispêndio de energia natural que, naquela altura, do ir subindo os degraus, faltava ânimo para cada passada. O que não faltava era a companhia do gemido. Triste sina, pensei. O gemido faz parte dos bons e dos péssimos momentos, dos momentos prazerosos – em forma de clímax –, dos momentos sofridos – quando o gemido é para acusar o golpe. Além de tudo, continuei a pensar, tinha sido a noite inteira em claro e, ainda por cima, sem praticamente ter um pequeno descanso. Ela não tinha dado intervalo, nem havia estipulado um prazo para o término. Pobre corpo afeiçoado às corriqueiras duas horas! Bem, mais para falar a verdade, desta vez, eu também não queria intervalos, nem prazo para o término e, muito menos, uma parada estratégica para, digamos, tomar um suco hidratador dos canais responsáveis pela excitação, ou como está na moda, um energético. Não precisava. Tudo estava funcionando às mil maravilhas! Dali, do sofá, fomos para a cama, lá no quarto. Não me lembro de tê-la convidado. Mas, acho que não seria preciso, estava evidente que terminaríamos fazendo um tour até o ambiente mais aconchegante, mais propício para a prática do amor. Por isso, atravessamos o corredor da sala para lá, quase flutuando. Flutuando é modo de dizer. É que dizemos as coisas poeticamente, como um charme. Na realidade, foi bem diferente: foi aos trancos e barrancos. A ganância e a voracidade, de nós dois, não nos permitiu administrar o caminho percorrido. Foi um tal de bater com os cotovelos nas paredes, roçar o corpo, dos dois – ora do lado esquerdo da parede do corredor, ora do lado direito, quase derrubando a galeria de quadros que eu havia comprado de um pintor conhecido meu, ainda sem fazer sucesso, começando na arte – até chegar, finalmente, a porta do éden da minha casa. Vou confessar uma coisa: parecia que tínhamos feito um pacto para que eu não a deixasse em paz e, muito menos, ela deixasse a mim. Então, se tinha sido assim, sem acordo passado, mas cumprido sem precisar escrevê-lo, o que nos restou a fazer foi aproveitar cada instante daquela noite enluarada, com a brisa se fazendo presente pelos cantos de cada lado do retângulo que moldava o meu quarto. E olha que eu apenas deixei uma pequeníssima brecha na abertura da janela, que dava para o norte, como feita para que eu pudesse ser acordado, todos os dias, pelo astro-rei de todas as manhãs, com o raio dourado, que clareia e aquece e enche de energia. Amamo-nos muito, em compasso, desvairadamente, lenta e apressadamente, como se estivéssemos sobre uma onda do mar, que trazia e levava o balanço das marolas – batendo e rebatendo – causando agitação, frenesi, períodos de calmarias e remadas mais vigorosas. E nós não economizamos nas trocas de lugares – e de postos –, de comando. Invertemos papéis, experimentamos novas técnicas, abusamos das inovações: algumas deram resultados positivos, outras, nem tanto. “Mais outra noite como a de ontem e eu passo dessa para melhor”, refleti enquanto continuava a subir os últimos degraus para se chegar ao sétimo andar. Finalmente, o andar que eu morava. O meu apartamento, ou melhor, a porta do meu apartamento ficava na metade do total do longo corredor que se constituía o andar que agora eu estava. Olhei para o piso. Os moradores daquele andar, inclusive eu, havíam feito uma “vaquinha” e arrumado uma "grana" extra e comprado, para ser colocado por onde passávamos, um tapete na cor vermelha. Tinha ficado chique. E não dava muito trabalho de limpá-lo. Aliás, limpá-lo era um prazer e um cuidado para os moradores do sétimo andar. Cada um de nós nos revezávamos nessa tarefa: um dia, era o morador da ponta do início da escada que aspirava o pó do vistoso tapete; no outro, era o morador seguinte e, assim, sucessivamente. Ah! Tínhamos cuidado para não trazer, no solado dos sapatos e sandálias, algum tipo de detrito que o deixasse com o aspecto de sujo. Por isso, por mais que eu estivesse cansado, antes de subir o último degrau, eu passei o solado do sapato por sob o tapetinho felpudo que tínhamos comprado para, justamente, limpar os pés, todas as vezes que fôssemos chegar ao nosso andar. Para ter certeza que nada havia embaixo, no solado do sapato, que pudesse causar algum dano ao vistoso tapete vermelho, eu levantei-o e dei uma boa olhada caprichada – uma espécie de vistoria detalhada –, certificando-me que dali de baixo nada havia que pudesse deixar marcas. Finalmente, pus os meus pés cansados em cima da maciez do tapete. Senti um alívio imediato. Era como andar em nuvens, sem nenhum esforço nas articulações. Sorri ao imaginar que os anjos flutuam em nuvens. Pelo menos eu assim imagino. Aliás, o cinema nos ensina isso. Lembrei-me que, outro dia, eu assisti a um filme que falava de anjos. Era com Nicolas Cage e Meg Ryan. O filme contava a história de um anjo que havia sido encarregado de tomar conta de Los Angeles e que se apaixona por uma mortal, uma cirurgiã – que ficou arrasada por ter perdido um paciente durante uma operação. O desfecho do filme é eletrizante: o anjo abre mão da eternidade para viver o grande amor de sua vida. Fiquei imaginando o quanto ele deve ter sofrido com essa mudança: deixar de ser anjo, portanto, imortal, e passar a ser um simples mortal, tendo e sentindo as dores (apesar de sentir, também, os prazeres que a carne passara a lhe proporcionar a partir da transformação) inerentes à condição humana. Sorri de novo. Se ele subisse aquelas escadas, duas vezes por dia, também haveria de ter problemas nas juntas, cansaço pelo corpo e, principalmente, depois de uma noite de amor, quereria mesmo era uma boa cama para se deitar. E sozinho. Até que enfim eu cheguei à porta do apartamento. Ouvi o miado do gato que era a minha companhia. Devia estar querendo sair e dar uma volta pelas adjacências. Era um gato mundano. Ia e vinha. Não era desses tipos que só ficam dentro do apartamento. Esse era liberto. Eu, algumas vezes, já o tinha visto nos prédios vizinhos, em cima do telhado, observando o bairro. Será que gato sabe o que pensa? Ou não pensa o que sabe? Ou será que apenas vê, com seu olhar quadriculado? Girei a chave na fechadura e abri a porta. Ela deu um leve rangido. Tenho que pôr óleo nas dobradiças, pensei. O gato, assim que abri a porta, saiu. Era seu costume. Nem liguei. Fechei a porta atrás de mim. Pesadamente, me dirigi para a cozinha, em busca da geladeira. A minha garganta estava seca. Pus água num copo de alumínio, desses que, quando a água gelada bate dentro dele, esfria ainda mais. Tomei, quase de um gole só, todo o líquido que salva vidas. Em seguida, fechei a geladeira. Precisava me acostumar a não ficar com a porta do eletrodoméstico aberta enquanto tomava água. Isso custava caro, pois aumentava o consumo de energia do apartamento. Ainda gemendo, pelo esforço feito, eu me dirigi para o quarto. Enquanto percorria o pequeno corredor, me lembrei da noite anterior e de como aquele ínfimo pedaço de caminho tinha sido andado por mim e por ela. Suspirei como se estivesse saudoso, ou como se o que tivesse acontecido já fizesse muito tempo de ocorrido. Não fazia. Quando cheguei à porta do quarto, me lembrei do meu problema. Meti a mão no bolso e toquei no objeto que trazia dentro dele. Bem, ele resolvia uma parte do meu problema para aquela manhã. Resolvido e cheio de coragem eu abri a porta do quarto e vi, em todo seu esplendor, ela. Sim, ela estava deitada, placidamente, no desalinho dos lençóis, à minha espera. Queria mais. Era insaciável, quase uma ninfomaníaca. Também pudera! Ela havia confessado que estava sem namorado já fazia três anos. Uma longa abstinência quebrada, precisamente, na noite anterior. Pobre de mim! Ela assim que me viu, chamou-me. O seu corpo esculturalmente perfeito estava desnudo, atrevidamente convidativo. Respirei com calma e aspirei com força o ar que o ambiente me proporcionava. Senti o cheiro da fêmea no cio. Ela ao abrir-se em pétalas, as minhas dores acabaram-se, momentaneamente, e eu caí nos braços da deusa Afrodite. Sim. Ali estava, agora, em meus braços, a deusa da mitologia grega, encarnada na vizinha insaciável do apartamento 76. Lembrei-me do objeto que trazia no bolso. Estava na hora de tomá-lo. Tomei-o. Sabia que em menos de meia hora o ânimo voltaria, o desempenho iria às alturas e proporcionaria uma excelente performance no ato que estava prestes a desempenhar. Em conjunto, claro. Agora, com licença, pois as luzes da plateia se apagaram e o palco, iluminado, se abriu para o início do espetáculo. A dois.



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Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 27/06/2009
Reeditado em 03/10/2016
Código do texto: T1670428
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