O CAMINHANTE SOLITÁRIO

Este conto não só é surreal como real, aconteceu comigo ontem 18/10/2009

Parecia que nada de novo iria acontecer nesse dia, depois de uma noite agitada, com a comemoração da fundação da Academia de Letras e Artes de Búzios. Era o primeiro dia do horário de verão, acordei cedo para tomar o café da manhã e devolver a chave do apartamento para a minha amiga que me cedeu por aquela noite.

No carro, já de volta para casa, lembrei que deveria deixar a máquina fotográfica pronta para tirar fotos na estrada a caminho de Iguaba. No dia anterior havia perdido excelentes momentos fotográficos por tê-la deixado presa em sua caixa dentro da mochila.

Vinha eu dirigindo, procurando o que me fizesse disparar o diafragma da bendita. Não encontrei os urubus que se encolhiam, por causa da chuva, sobre os mourões da cerca da fazenda, no dia anterior e que me inspiraram muito. Porém, encontrei o inusitado, um homem em trajes surrados, sujos, tênis desgastados pela caminhada solitária, uma mochila velha, uma bengala envolvida em sacos plásticos azuis amarrados por barbantes, que usava como cajado e uma bandeira do Brasil presa a um bambu, também surrada.

Lembrei-me da máquina, apressei-me em pegá-la sobre o banco do carro e parei o carro mais a frente, pois com o zoom poderia fotografá-lo a qualquer distância. Comecei a tirar fotos, sem bons resultados, enquanto isso o homem se aproximava, pelo outro lado da estrada estava, e fui tirando fotos até consegui uma melhorzinha.

Parei de tirar as fotos, guardei a máquina e tornei a olhar pra ele quando me acenou e sorriu. Do outro lado gritou: - Tirou foto e carona não vai me dar??? Sem pensar, respondi que sim, venha, vamos !!! Atravessando a estrada veio ele e acomodou seus pertences depois sentou-se no banco do carona. Tinha o cheiro característico daquelas pessoas que não tomam banho há um século, abri todas as janelas para poder suportar e acabei esquecendo disso, pois era alegre e diverti por demais com suas estórias. Queria seguir em frente apenas, mas me disse que ficaria no trevo. Eu não sabia qual trevo, mas de São Pedro d’Aldeia provavelmente, pois estava indo naquela direção

Antes de partirmos me pediu apenas que não pisasse fundo no acelerador, queria ir devagar. Em parte aceitei seu pedido, mas não tanto assim pois estávamos numa pista de alta velocidade.

Bem acomodado e feliz, começou o intróito da loucura sana, agradecendo a carona e disse que estava caminhando desde às 4 horas da manhã e vinha de Macaé. Em sua loucura me disse que era dono da fazenda colada àquela pela qual passávamos naquele momento, onde algum gado pastava. Aproveitei para tirar fotos do gado, e ele disse que tinha um rebanho de gado nelore. Seguindo sua narrativa me foi dizendo que encontrou George Bush no bar e bebeu cerveja com ele. Disse então: - Ah! Sabe a dívida externa? Aquela dívida externa, fui eu quem pagou, é, fui eu . Sempre repetia: - É, fui eu , é, é meu, confirmando suas afirmações. Já viu a nova moeda de 1 centavo? Me perguntou, e eu disse que não, no que ele retrucou em seguida: - É, veja lá, tem a minha cara lá, é minha também, é, é minha.

Continuou dizendo então: - Tudo isso é meu, você não sabia?? Então, é tudo meu. Passava um helicóptero naquele momento, e ele disse, é meu.

Quantos sonhos teria esse personagem tão surreal, alegre apesar das adversidades pelas quais pode ser que tenha passado e que agora vivia a caminhar por esse mundo afora?? Tem uma característica de humor do brasileiro que, mesmo na miséria, ri dela e segue em frente.

Aproximando-se do trevo aonde ele queria ficar, avisei-lhe e perguntei em qual parte desejaria saltar. Encostei o carro e ele me perguntou pra onde eu estava indo. Lhe disse que seguiria em frente, sabe-se lá pra onde. Muito perspicaz ele me disse: -Tu não é boba não hein!!?? Tu não é boba!!

Perguntei seu nome e me disse que era Deus Davi, repeti Deus Davi? Legal, bonito nome. De repente ele me diz, e o teu é Virgem Maria, é, é Virgem Maria. Nesse momento olhei bem nos olhos dele e ele repetiu, é, é Virgem Maria, talvez pelos meus olhos azuis, Virgem Maria.

Pegou seus alfarrábios, agradeceu e ficou por ali. Eu parti, não olhei pra trás para ver aonde estava indo, mas fiquei pensando sobre seu nome e o que ele me havia dado. Seria o caso, alguma coincidência, algum momento mágico, o resultado de duas loucuras? Eu de tê-lo resgatado na estrada pra uma carona num trecho razoavelmente curto de carro, mas que foi o suficiente para dividir com ele um pouco de sua loucura também.

Fiquei pensando como as coisas acontecem em nossas vidas e, às vezes, são assim tão inusitadas que fazem com que Deus Davi e a Virgem Maria talvez tenham recebido um aviso de algum anjo, e tenham se encontrado novamente aqui na terra, nem que fosse por apenas uma carona.

Maria loPes

Iguaba Grande, 19/10/2009

Maria Lopes
Enviado por Maria Lopes em 19/10/2009
Código do texto: T1875385
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