Humanidade

“Então, vemos que este homem, por vezes, complicado desaparece antes de sua antítese, tanto e deu tanto que, apesar de todos os requintes de consciência, vem a vista não apenas como um ratinho. É talvez um ratinho de clarividência extrema, mas não deixa de ser um rato, não um homem, enquanto o outro é realmente um homem.”

Notas do Subterrâneo - Dostoiévski

Não se sabe se por essa nossa mania de enxergar inteligência apenas nos que se comunicam eficientemente ou se por uma estratégia de preservação da espécie (não se colocando como “concorrentes” diretos nossos), o fato é que o 26 conseguia ler e articular pensamentos em nossa linguagem verbal sem que fosse percebido por nós. Falar não falava, por suas óbvias restrições orgânicas, mas tinha um senso lógico que por vezes o propiciava caçoar de alguns diálogos que escutava no laboratório de Genética da UNB, laboratório este que se transformara de uma casa aconchegante e cheia de mimos em algo que se assemelhou aos campos de concentração que já ouvira falar. Tudo começou com a padronização e com as normas. Lá se foi a comidinha composta por sementes diversas e variadas rações coloridas, sem muito horário e freqüência para ser posta, e veio a ração “padrão”, mole, sem cheiro, sem sabor, uma bosta servida sempre uma vez (quando não esqueciam!) ao dia, sempre pela manhã: dormir com fome é um saco e por isso também dormia de dia. Lá se foram os forros das gaiolas, formados por jornais e revistas legíveis – mesmo que de qualidade duvidosa, por vezes – virando um suporte de zinco frio e, pior, sem informação do mundo exterior, sem Caderno 2, sem coluna social, sem jogo dos sete erros.

A única vantagem aparente que vira nessa mudança havia sido um defeito na sua gaiola, um espaçamento maior no canto direito superior entre os grossos arames metálicos, que o propiciava sair, mediante algum contorcionismo, de sua prisão para passear à noite pelo laboratório. Advento disso foi sua primeira relação sexual, que foi demais, mesmo que separado por uma gradezinha da 81: ela era muito gostosa mesmo assim. E por isso foi sacrificada assim que descobriram que ela estava grávida. “Como isso foi acontecer, será que a misturamos por engano, ou a inseminamos junto com as outras?”, disse uma.“Nada... isso deve ter sido obra do Espírito Santo”, respondeu outro, enquanto torcia o pescoço dela. Ele ficou meio chocado por algum instinto mas já havia se acostumado com cenas do tipo: injeções, torcidas de pescoço, cortes, raspagens... E nunca associou a esses atos alguma maldade inerente à humanidade, ao contrário, “impressionante como são capazes de tantas coisas para se ajudarem!”. Mesmo assim resolveu ficar só na pata para evitar coisas do tipo. Passou a ler novamente jornais que deixavam eventualmente pelo LabGen e também alguns livros que esqueciam por lá. Gostava dos técnicos pelos desenhos e dos outros pelo conteúdo mesmo. Numa dessas leituras de jornais, 26 leu sobre um filme em cartaz que trazia um roedor sendo adotado por humanos, e isso mexeu muito com ele. Primeiro porque devido a essas mesmas leituras o termo “humano” lhe soava como algo evoluído, bondoso, “altruísta” (para citar Comte, a fonte dessa sua confusão): “que coisa mais... é...é... humanitária!” pensou, e assim começou a nutrir, mesmo que em camadas inferiores da consciência, um certo desejo de que um dia lhe acontecesse algo igual.

Certo dia, o que parecia um sinal externo para que ele desse um passo nessa direção, no que parecia ser “uma conspiração do universo a seu favor” (tá, já disse que ele lia muita merda também?), ele escutou uma conversa de um técnico com um pesquisador na qual eles falavam da necessidade de fazer uma “limpa” no laboratório e uma “renovação” do “material”.

- Rá rá rá! Pra cima de muá?! Já li Cadernos Policiais e de Emprego & Trabalho suficientes para saber o que isso significa; caio fora daqui essa noite!

E assim o fez. Subiu na caixinha de ração, pulou e pendurou-se no teto da gaiola, de lá jogou as pernas e se espremeu todo pelo espacinho providencial. Despediu-se com o olhar do que fora sua casa, contemplou com certa compaixão para os que ali iriam ficar mas não fez nada “acho que se eu fosse humano agiria diferente”, e se enfiou por debaixo da porta, pinotando em seguida, ofegante.

Existem dois tipos de liberdade: a que possibilita e a praticável. O 26 tinha agora o mundo mas não sabia para onde ir. Queria encontrar humanos em seu habitat natural, isso é certo, mas tudo parecia se dissolver ante agentes decepcionantes muitas vezes chamados de realidade. Ao sair do campus viu o que já havia visto em duas dimensões: edifícios, carros, árvores... As coisas pareciam ora estranhas, ora mais feias do que o imaginado. “Uma coisa não se discute: a imaginação é o melhor decorador que há, seja de paraísos ou de cenas de horror. Se Deus criou algo somos pura imaginação”, e citando mentalmente um maluco desconhecido, atravessou a L2 antes que perdesse o rabo para um Timponi da vida.

Um roía uma piola de cigarro, outros bebiam cerveja, outros trepavam e/ou brigavam, e foi assim seu primeiro contato com “os selvagens”. Ao cruzar para aquela comercial da Asa Norte sentiu no pêlo o que é uma estratificação social e refletiu sobre Micrômegas e Voltaire, “há mais universalidade que particularidades, sem dúvidas” e foi ao encontro daqueles que poderiam ter sido, numa história menos realista, seus salvadores. Eles tiveram dele a impressão comum de alguém que vem da UNB, nerd, panfletário, pseudointelectual, talvez maconheiro: “Grande coisa, lá no CEUB como costela de adão e escuto uns trance louco” pensou, despeitada, uma ratinha peituda. Ao saberem de sua intenção de ir ao encontro de uma família, franziram a testa e se entreolharam: "É louco". Ali eles bebiam e comiam sem esses riscos, negócio sem futuro demais. Do outro lado da rua a luz acesa do apê da futura morada de 26, foi-se: “Coitado...”, pensaram eles, “São selvagens, evitam contato”, deduziu 26.

Era Natal, essa data altruísta, solidária, pura, celebrativa, cheia de novas posturas (para depois - no que tange às resoluções - somente para agora - no que tange à solidariedade hipócrita típica da data) e a sala estava alegre. Adentrou sem esforço por baixo da porta e viu primeiro o irmãozinho, depois a mãe, e do pai apenas a sombra marcante: acertou-lhe bem no meio das costelas de Adão, depois na cabeça. O gosto era doce, bem estranhinho, e Ela veio rápido. Tal qual o Pai bíblico esse também trouxe pecado, arrependimento e morte, e nada de paraíso cheio de sementes sortidas, livros e jornais, só dor, lancinante, eficiente para apagar, por fim.