“UMA POMBA em MINHA VIDA”

(I)

Cidadezinha do interior de Mato Grosso, que ainda nem era do Sul.

Idos tempos em que as opções de lazer, mais minguadas que hoje, compeliam muitos dos moleques, nos finais de semanas e, especialmente, nas férias da escola ginasiana, à pratica de "caça ao pombo-do-bando", para consumo ou simples diversão.

A “consciência ambiental” era conceito ainda pendente de formulação, ou pouco difundido e, muito vago, para ser compreendido por quem vivíamos as privações daqueles fins de mundo.

O local preferido era o “Campo de Avião”, codinome, fidedigno, no caso, para o protótipo de aeroporto em que os poucos teco-tecos reinavam soberanos, com raríssimas presenças de aeronaves militares, em maioria transportantes de políticos aderidos ao Regime Militar que, para a “felicidade geral da Nação”, dava seus últimos suspiros de despedida para debaixo do tapete da história nacional.

Era um descampado à foices, no meio de uma extensa área de arborização nativa, tendo aos fundos seis ou sete contíguas fileiras de eucaliptos, antigos e esbeltos, com copas frondosas onde as pombas, nos findar de tardes, vinham se recolher.

Eram umas pombas graúdas, maiores que as “domésticas”, estas que, naquela época, ainda não se tinham tornado em praga; tanto grandes como ariscas, difíceis de serem abatidas e, até mesmo, de alcançadas pelas pedras arremessadas por nossos estilingues(1).

(II)

Antes, porém, vieram os adultos da raça humana e, com eles, a quase dizimação das "Zenaida auriculata"(2).

O bando, de adultos de antepassados recentes, que nos antecederam, com “armas de fogo” e ímpeto desmedido, retiraram da natureza centenas, talvez milhares de pombas, por anos e anos seguidos, deixando uns minguados exemplares, a nós, os moleques que lhes sucedemos na empreita exterminista.

De tudo isso ignorantes, em nossos poucos carnavais, embarcamos na história justo nessa esquina, em que a amizade, assim como a vida, parecia eterna entre mim e dois outros companheiros inseparáveis, que, depois, o destino não cumpriu a expectativa.

Cada um com seu bornal carregado de pedras lavadas, colhidas no rio da Segunda Ponte, selecionadas pela forma lisa, tamanho mediano e peso equilibrado: não de mais que impeça a remessa, nem de menos que minimize o impacto.

Tudo fruto de profundo conhecimento empírico, detido por caçadores – até então – sem caça e sem experiência prática.

(III)

A pomba estava muito alto; ela me viu antes e voou; um galho ou o sol atrapalhou a visão; a borracha de pneu de bicicleta estava flácida de um dos lados; os amarilhos(3) cederam; a pedra era irregular e saiu pela...

A esse rol de nossas desculpas, eu ainda tinha o privilégio de adicionar mais um: era o “dente de leite” da “turma”, imune – ou quase sempre – à saraivada de recriminações, destinadas aos “grossos”, adjetivo “desqualificativo” assemelhado a “ruim de pontaria”.

Seguíamos pelos trieiros(4) que as pisadas imprimiam na vegetação rasteira, rumando ao bosque frondoso e sombrio, sob o qual adentrávamos caminhando com cuidado sobre a forragem de cascas dos eucaliptos, para não sermos notados pelas pombas que avoam ao primeiro ruído.

Revoada de todo o bando se dava a cada pedrada lançada fora do prumo por um dos caçadores, em desproveito dos demais que, naquele coinstante, estavam “sempre” mais apetrechados que o outro, para abaterem um exemplar do tão sonhado alvo.

Depois de devidamente maltratado o ruidoso, seguiam-se longos intervalos de imobilidade, de respirações a meio-pulmão, até que as digníssimas caças, esquecidas do perigo – que nem era tanto, se despido de nossa imaginação -, retornassem aos píncaros das árvores, exatamente, das três que nos sobrepunham.

E elas voltavam.

Sempre voltavam, porque nossa perspicácia era demasiadamente maior que o temor que, racionalmente, conseguimos imprimir aos primários instintos de sobrevivência adquiridos durante a longa evolução da espécie irracional em espreita.

(IV)

Nos intervalos – algo como 99,5% do tempo de caça – exercíamos diversas virtudes, uma delas – a paciência – muito incomum para os humanos na fase da vida em que residíamos: a “aborrescência”.

Outra, era o silêncio.

Não um “silenciociozinho” qualquer.

Era o tal a-b-s-o-l-u-t-o, soletrado pausadamente.

Até o Psiu! era dito em silêncio (com o dedo indicador em cruz sobre os lábios e olhar arregalado) e SÓ em pensamento: Pensei que era um de vocês, mas era um pernilongo em minha orelha a zumbizar...

Os pernilongos dali eram receptivos (nos aguardavam ansiosamente), parrudos e dóceis.

Já nem mais se assustavam com nossos acenos de “NÃO” (era o máximo permitido), com as pontas dos dedos em sutilíssimos movimentos laterais (sem mover o braço, nem mesmo a mão) e à distância.

Eram ingênuos e inexperientes de qualquer sanção efetiva, coibida pelo barulho que produziria um eventual impacto afujentante da mão contra as costas da outra mão, as orelhas, as testas, as sombrancelhas, as pernas, os braços fartamente picados...

Exercíamos, assim, e periodicamente, nossas virtudes de monge franciscano, sentados, ajoelhados e, ao final – invariavelmente – deitados pelo cansaço da silenciosa espera.

(V)

Já deitados de costas, formando um triângulo equilátero com as pernas voltadas para o centro, cada um sob a sombra de um eucalipto, quando, saindo do meio das folhas secas (ou dum jurássico período – como pareceu de meu ângulo de visão rente ao chão) um lagarto marrom-esverdeado, que comumente é arredio e ali, olhos nos olhos, me fitava imobilizado, de pescoço estendido e indagativo:

- Será que estão mortos, empalhados, por que não se movem, por que não me perseguem?

Meu pensamento sobre o que pensava aquele monstro caleidoscópico foi abortado, subitamente, pela chegava alvoroçada de um bando de pombas...

Pedra no estilingue, mira rápida e...

Pedra no galho distante do alvo, o bando alado voou para um lado e o outro, de bípedes, já iniciava contra mim a sessão de chacotagem, quando então...

percebemos, ao mesmo tempo, que estava sobre mim, num galho avulso, de poucas folhas e ótima visão, uma pomba, a maior das maiores, que se manteve inerte, aparentemente tranquila com minha presença.

Silêncio mais absoluto dos companheiros, ambos com os dedos colocados, sincronizadamente, sobre os lábios, depositando-me a esperança total de “nossa vingança final” contra as pombas ariscas, as caças fugidias...

Estava muito próxima... cinco, seis, sete metros no máximo, era “impossível” errar...

Escolhi a pedra mais redonda, mais meio-leve e meio-pesada.

Concentração total...

estilingue estendido ao máximo...

apontei a mira, um pouco acima da altura do peito...

melhor na altura do bico, na cabeça, lado esquerdo, melhor no direito...

Pronto...

É agora... FOI!

E...

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.

.

.

.

.

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.................................................................(continua... amanhã).

(1)--------------------------------

O estilingue (português brasileiro) ou fisga (português europeu) é um antigo brinquedo também usado como arma primitiva para lançar pedras ou outros pequenos projéteis. É conhecido por diversos nomes no Brasil, entre eles atiradeira, bodoque, baladeira, cetra ou setra. O bodoque, ou badogue, é um atirador de projetil em formato de arco, similar ao arco de flecha. O estilingue é também conhecido em algumas regiões como funda (no Rio Grande do Sul), mas registre-se que a funda se trata de outro dispositivo, este sem elásticos. Foi com uma funda que, segundo a Bíblia, Davi matou Golias. Originalmente era montado usando-se uma forquilha de madeira (um galho bifurcado em Y, cuja parte de baixo é usada como cabo) em cujas extremidades simétricas se prendiam as pontas de uma tira elástica. No centro da tira elástica é afixado uma peça de couro que servia como contendor para o objeto que se desejava arremessar, geralmente pedregulhos ou pequenos frutos redondos. A árvore mais comumente usada é o leiteiro, goiabeira, jaboticabeira, entre outras que naturalmente tem galhos perfeitos em Y, e com uma boa resistência. Para o elástico, um material comum é a borracha de câmaras de ar, cortada em tiras. Atualmente, nas cidades maiores se usa também uma peça de ferro de construção dobrada para fazer as vezes de forquilha e como elástico usa-se uma mangueira de látex muito comum em estabelecimentos hospitalares, popularmente conhecida como "tripa de mico". Por ser uma arma de baixo poder, é normalmente usada por crianças como brinquedo na caça de passarinhos e outros pequenos animais. (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Estilingue)

(2)--------------------------------

http://www.wikiaves.com.br/pomba-de-bando

(3)--------------------------------

Ainda vou criar no WIKIPÉDIA (aguardem) o vocábulo: “Amarilho: atadura, geralmente de finas tiras de latex, utilizada para prender uma das extremidades das borrachas na forquilha e, a outra ponta da mesma borracha, na peça de couro, que serve como contendor para o objeto a arremessar, geralmente pedregulhos ou frutos redondos.”

(4)--------------------------------

http://www.agendacentrooeste.com.br/sobre.php?sob_id=5&erc_id=MT077.

Lobo da Madrugada
Enviado por Lobo da Madrugada em 21/02/2010
Código do texto: T2098785
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