UM BURACO PARA A LUA

É, sabe, as madeiras, não aquelas de trás, só, as da frente, estragadas, na tinta, não quando cheguei, feias, arranhadas, gastei o polidor todo, quando eu receber pagamento vou comprar aquele produto, mas está tudo bom, ...lá eles sujavam na cama, era muito gasto com roupa todo o dia, faziam na fralda, eles gastam muito, dar banho neles todo dia, limpar o cocô, era muito cheiro ruim, eu fazia todo dia tudo, muito trabalho, mas eles tratavam bem, aqui preciso comprar o verniz, mas está bom, eu sempre fiz, ...fazia a comida e arrumava a casa, minha mãe estava doente, ...lá o remédio era dado também, ...aquele homem, alemão, lá de perto, às vezes eu ia na casa dele, tinha muitos livros que ele fazia, eram verdes, ...em casa minha mãe me dava, no hospital também, as enfermeiras davam os remédios, ...ele fazia os livros, encadernava de verde, e tinha o livro com todos os remédios, ...acho que o nome dele era Schwartz, ...depois encontrei naquela casa lá no centro, atrás da rodoviária velha, morei lá também, sabe, a Rui Barbosa naquele bequinho, uma rua sem saída, na sala vi o livro verde encadernado ... acho que ele morreu também ... eu era criança, ...o livro verde já estava velho, tem até esse remédio que eu tomo, o nome era outro, a casa era menor, fiquei pouco tempo, ...não vi mais o livro, no hospital eu acho que tinha um parecido, as enfermeiras não deixavam eu ver, ...aqui está muito bom, não eu não bebo, naquele dia eu tomei só um copo, ...minha mãe não gostava, ...no hospital tem muitos que bebem, ...ele chegava do trabalho, ...às vezes eu ia para a casa dele ver fazer os livros e não encontrar com ele, ...ele chegava com cheiro de bebida, parecia nervoso, ...eu ficava vendo para não atrapalhar, ele não gostava de conversa, ...minha mãe ficava com medo dele ... era todo o dia, ...eu ficava quieto para não prejudicar a fazeção dos livros verdes, ...nunca me bateu, ...lá tinham muitos que bebiam antes de irem para lá, ...no hospital até que eles são tratados bem, nunca me fizeram mal, só aos outros, ...depois eles se separaram, minha mãe se separou dele, levou muito tempo, ...eu continuei vendo o alemão fazendo os livros verdes, ...ele eu quase não vi mais, minha mãe não gostava, ela continuou tomando conta de mim, ele ia lá muito pouco, ela trabalhava fazendo faxina, ...todo mundo na rua tinha medo dele, eu não tinha por que ter medo dele, não entendia o que tinha a ver ele com a guerra, os seus livros eram sempre muito grandes, ...depois que ele morreu ela ficou com a sua pensão, ...hoje eu recebo a pensão dela, ...ela me visitava sempre no hospital, ...não gostava muito da escola, minha cabeça não era muito boa para a escola, ...todo domingo ela ia me visitar, depois ficou doente, eu fazia tudo em casa, ...depois que ela morreu nunca mais, ...a injeção é muito boa, ...nunca mais fui internado, ...não sei quando sai da escola, ...eles ficavam com o cartão do banco, ...já paguei minhas dívidas todas, ...as fraldas todo dia é tudo muito caro, ...eu ficava em casa cuidando dela, ela cuidando de mim, ...eu ia no banco receber a pensão para ela, ...a moça da faxina era bonita, ...ela não gostava muito dela, ...tinha muitos amigos no hospital, ...um dia a gente se encontrou e foi no cinema, ...no hospital a gente ficava escondido, ...o filme era O Nome da Lua, a gente comeu pipoca, acho que era italiano, devia falar sobre coisas lunáticas, não sei se a gente gostou, ...depois nunca mais fui para o hospital, ...eles sempre gastavam muito cuidando das pessoas, meu dinheiro só dava para o cigarro, ...sempre lavei e passei minhas roupas, ...eles lavavam mas eu sabia usar o ferro de passar, era sempre muito trabalho todo dia, ...nunca mais a vi, ...essa camisa mesmo eu só usei duas vezes, não precisou lavar ainda, ...preciso aprender a mexer na máquina de lavar, ...antes dela morrer eu lavava todas as roupas na máquina de lavar, ...sei fazer arroz, macarrão, feijão, ...lá eu não precisava fazer, ...no hospital a comida é boa também, ...lá a gente sempre come bem cedo, ...eu já paguei minhas dívidas, lá não tinha café durante o dia, ...no hospital de tarde às vezes tinha chá, ...ela falava que muito café fazia mal para os meus nervos, ...o dinheiro só dava para o cigarro durante a semana, ...às vezes a moça da faxina trazia um pouco de café de tarde, ela era bonita, a gente se encontrou outra vez, passeamos no centro da cidade, eu comprei sorvete para ela e para mim, acho que foi picolé, ...quando eu quero posso entrar na cozinha e pegar a vontade, aqui está muito bom, ...não eu não bebo, naquele dia tomei só um copo, o moço do bar me ofereceu, estava muito calor, ainda não tinha tomado café, ...prefiro andar a pé, andar por aí, ...lá a gente sempre tinha que chegar até às sete, a janta era às cinco, depois o portão fechava, no hospital também, mesmo sem fome era às cinco, ...ela dizia que eu precisava me alimentar bem, era bom para os meus nervos, eu quase não saia, ...ia sempre com ela na igreja, quase todo o dia, ela comungava sempre, eu não entendia bem tudo da missa, ...ela dizia que é muito importante estar sempre bem vestido, ...ele estava sempre cheirando mal, cheirando à bebida, sempre mal vestido, ...no enterro dela eu estava no hospital, fiquei esperando no domingo, ...ela e eu só soubemos da morte dele muito tempo depois, ...acho que o livro verde ainda está lá, ...ele morava sozinho, nunca teve família, acho que vivia de fazeção de livros, ...é muito boa essa carteirinha, ...a dela era de idoso, eu pagava a condução, ...eu gosto muito de andar a pé, ...esse shopping eu não conheço, no outro eu fui com a moça da faxina, bonita, ...depois eles começaram a me olhar de um jeito esquisito, ...ela no princípio tentou ver o que estava havendo, ....acho que era porque eu me entendia com o alemão, acho que era Schwartz o nome dele, ...até no hospital continuavam me perseguindo, ...a injeção lá não era boa, as vezes lá eles faziam na cama e as enfermeiras não limpavam, os que bebiam às vezes ajudavam a dar banho, quando não queriam tomar banho eles batiam, os enfermeiros em mim nunca bateram, ...depois ela começou a achar que era tudo invenção da minha cabeça, eu não podia mais sair de casa porque eles não deixavam, até durante a noite eles encostavam na parede pelo lado de fora e ficavam me ameaçando, ...no hospital se a gente contava o que estava acontecendo eles prendiam a gente e aumentavam os remédios, ...só falta eu aprender a mexer na máquina de lavar roupa, as roupas ainda estão limpas, ...eu prefiro ficar andando pela rua, ..depois até na igreja eles começaram a me olhar estranho, ...naquele filme eles foram num parque de diversões, andaram na roda gigante, ...uma vez ele me levou num parque de diversões, num domingo de tarde, ...ele nunca me visitou no hospital, ...no começo foi bom, ele comprou algodão doce, não tinha dinheiro para me levar na roda gigante, ...eu tinha medo dele, ...depois ele sumiu e eu fiquei rodando no parque gigante, um homem outro me achou, acho que era tudo perto lá de casa, ele chegou em casa embriagado querendo gritar comigo, fingi que estava dormindo escondido debaixo do cobertor e do travesseiro, ...o alemão quase não falava enquanto fazia os seus livros verdes, eu nunca tive medo dele, ...depois no filme ele encontra um grande buraco e mergulha e cai na Lua, ...depois eu deixei de ir na casa dele, todo mundo achava que ele era nazista, e acho que era por isso que me perseguiam, ...minha mãe não me deixava sair de noite, dizia que era perigoso para os meus nervos, ...pena eu não ter achado naquele dia um buraco para a Lua, ...no filme eles se namoram na Lua e ele dá para ela de presente todos os sonhos, ...em vez de ficar debaixo do cobertor e do travesseiro eu ia poder ficar lá de cima, porque ficar bem embaixo é o mesmo que ficar bem em cima, e então ele ia se transformar ou desaparecer, ele ia ser louro e se chamar Schwartz, eu acho que ia ser assim, ...eu era pequeno, ele já tinha o livro que tinha os remédios que eram bons para mim, até essa injeção que é tão boa já tinha no livro grande verde que ele tinha que ele fez, ...lá de cima eu ia poder ver ele e ela juntos sem se separarem, ele ia ter uma família, eu não ia precisar descer para vê-lo fazendo os livros verdes, e de noite não ia precisar me esconder na casa dele nem debaixo do cobertor e do travesseiro, ...podia levar a moça da faxina, bonita, para passear no parque de diversões, pular com ela no buraco para a Lua, e namorar com ela, ...lá eu sempre tive que chegar até às sete antes do portão fechar, ...no hospital a gente toma os remédios pouco depois das cinco depois da janta, quando as enfermeiras vão embora, ...minha mãe não deixava eu sair de noite porque ia fazer mal para os meus nervos, ...sempre quis passear de noite, ...a carteirinha de ônibus é muito boa eu sei, ...eu sei que aqui também todos dormem às sete, ...eu nunca consegui caminhar sob a luz da Lua, ...nunca consegui ficar no Mundo da Lua.

RICARDO DE CARVALHO RIBEIRO
Enviado por RICARDO DE CARVALHO RIBEIRO em 29/06/2010
Código do texto: T2348832
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