Ultimo gesto (ou arte final)

Por vezes a arte surge na impossibilidade, quando o homem se defronta com o abismo ou a muralha intransponíveis. Não é por acaso que alguns artistas cresçam ou floresçam justamente quando o homem se depara com a inevitável morte; ou quando a vida desceu tanto, à níveis tão subumanos, que a arte vem ocupar, ao menos em parte, o lugar da vida. Até mesmo na premência de tempo, quando o corre corre dessa vida moderna nos deixa impossibilitados de viver, a arte explode das artérias mais profundas, irrompe do asfalto quente ou das lajes de concreto, ou dos cristais de quartzo, e se impõe, gritante e efêmera, carregada de seiva ou de sangue, cortejada ou desprezada, pouco importa!

E por vezes a arte vem cristalizada, traduzida em palavras, e é quando ela se lamenta e se frustra com sua pobreza, inexatidão, miopia, vacuidade. É que a palavra é apenas um sinal, abstrato, universal, que tenta, e apenas isso, provocar no outro alguma evocação, ou sensação, ou conceito, ou instigá-lo a tentar criar algo próximo ao que foi pensado e sentido por quem a escreveu, e aí ocorre a perda, o silêncio, a transgressão. Se a arte usa um adjetivo, por exemplo, maravilhoso, e ao escrevê-lo ela concentrou um caldo quente e brilhante, nada impede que o mesmo adjetivo passe quase despercebido, frio e opaco, para quem o lê. Daí que a arte, preocupada e cautelosa e obsessiva, tenta se aprimorar, busca os detalhes, amplia as palavras, recorre às metáforas, tenta fazer da caneta um pincel, do papel virgem um filme fotográfico, mas ainda assim continua falha, sempre serva, escrava desses pequeninos traços, sempre fadada à derrota final. Afinal, nem mesmo o artista consegue recuperar a arte, em sua exuberância e intensidade, ou em sua delicadeza e sensibilidade, depois de nascida, de ter se constituído filha do mundo. A arte vive efêmera, no lapso de tempo entre tudo o que brota de dentro do artista, e a sua tradução no mundo de fora, seja em forma de pintura, de escultura, poesia ou prosa, teatro, dança ou cinema. Quase uma exceção à isso é a música, talvez a única arte que consegue ser cristalizada em sua raiz, em sua semente, e que precisa renascer, crescer, voltar à vida, a cada vez em que é interpretada, tocada, apresentada, libertada de dentro do seu grão. É óbvio que continua a inevitável e falha participação de quem a ouve, além da de quem a está interpretando, na verdade recompondo-a, talvez tanto ou quanto a de quem lê a arte, mas é que a música é mais radical, mais intransigente, provocando adeptos apaixonados ou ferrenhos adversários.

Pois é, nessa atmosfera de impossibilidade, vejamos o que lhe aconteceu, o porquê de ter ido morar naquela espelunca. Na verdade, não lhe restou qualquer alternativa, qualquer possibilidade, além daquele quarto, sujo, escuro, mofado, fazendo parte de uma dezena deles, um cortiço largado nos fundos da propriedade do senhor, sendo que ele ocupou o terceiro no corredor, e o único que estava vago. Bem longe por sinal do banheiro coletivo, marcado com um WC, escrito torto com lasca de tijolo no alto da porta, presa com dobradiças tipo vai e vem, já bastante apodrecida embaixo, lascada, quebrada, desgastada, e que fica sempre meio aberta, o que não chega a ser problema, por ali só circula quem se dirige para usá-lo; duas privadas em dois pequenos cubículos, sempre sujas e fétidas por sinal, e ao fundo, no que seria um boxe, um chuveiro tipo ducha corona, obviamente com a resistência queimada.

Mas que lhe serviu, veio a calhar, noventa reais por mês, já incluídas água e luz, não poderia querer mais; lhe sobram os cento e cinqüenta para comer, fumar e ainda ajudar nos remédios da mãe, viúva e doente. De mobília, uma cama e um roupeiro velhos, e uma banqueta que sempre põe do lado de fora, ao lado de sua porta, e ali fica acocorado, fumando ininterruptamente do mais barato.

Seus vizinhos são tão esquisitos quanto ele, por isso mesmo não os estranha, nem se simpatiza, já que tendo muito pouca noção de si, quase não consegue se enxergar. Prefere permanecer quase sempre cabisbaixo, olhando para o vermelho da brasa do cigarro, que sempre se apaga, e só de soslaio percebe os movimentos à sua volta.

Demorou três dias para tomar o primeiro banho, e dois para fazer cocô, até se certificar dos horários em que correria pouco risco de ter companhia, de ser flagrado na privada, ou nu tomando banho. No aperto usou a privada de madrugada, e descobriu que também para o banho é um bom horário, ao menos enquanto o inverno não castigue por demais. Um boteco por perto lhe serve uma refeição, é o suficiente; vez em quando vai à casa de sua mãe e lhe faz companhia inclusive no almoço; pela manhã, um café com pão e manteiga na padaria, além de sua cota de cigarro. Já ia ele se esquecendo de falar do tanque, nos fundos e ao lado do banheiro, onde pode lavar suas roupas, estendê-las num varal de arame enferrujado, e para quando chove, improvisou um menor dentro do seu próprio quarto, aliás neste ele sempre deixa sua toalha de banho, não quer correr o risco de que alguém a toque, enxugue uma mão por exemplo, após uma ida ao banheiro. Consegue, neste vazio de vida, sem geladeira, sem televisão, sem rádio, sem telefone, sem nada, ainda assim manter uma certa ordem, uma certa disciplina, uma certa decência.

Decidiu, e foi melhor assim, que todos os seus vizinhos são seus inimigos em potencial, e não custou muito para chegar a essa conclusão, bastou-lhe observá-los de soslaio, ouvir seus falatórios, as brigas e até porradas, que por vezes se trocam, e até mesmo os seus olhares, sempre desconfiados, persecutórios, inquisidores, dissimulados, sempre perigosos.

Por isto sua escolha de passar todos os seus dias e noites sentado em seu banquinho, cabisbaixo, raramente se voltando para olhar o céu, a ver as nuvens brancas correndo, esgarçadas, ou as negras densas, preparando temporal. De tanto ficar por ali, sentado em sua banqueta, vem percebendo, com uma certa sensação que de longe lembra a alegria, um movimento tênue entre suas pernas e as pernas da banqueta. Depois de alguns cigarros, pode ver que uma aranha, pequenina, mas nem tanto, está construindo, tecendo sua teia, se utilizando de suas pernas e as da banqueta. Nunca tinha visto nada tão lindo!! Ela se solta no ar feito acrobata de circo, depois vai balançando até atingir seu objetivo, amarrando e fixando sua teia, de forma tão precisa e harmônica, e tudo com tanta dedicação e seriedade, sim porque ela é bastante séria (ele se deu conta disso quando a viu olhando para ele com reprovação, após ter soltado uma risada, tentando ser alegre, para ela. Não aprovou). É uma aranha fêmea, e isso é evidente pelo seu olhar, e mais ainda pela graciosidade com que realiza seu trabalho. A todo o momento ela reveza entre tecer sua grande e bela teia, que brilha refletindo os raios, ou da manhã ou do entardecer, que tremelica com a brisa que sopra leve, e voltar para a sua casa, que vem construindo embaixo da banqueta. Quando está lá, ele não pode vê-la bem, afinal se se curvar muito até alcançá-la com os olhos, colocará em risco a própria teia, e isso jamais ele faria.

Com o passar do tempo ele tem aprendido a fazer leves movimentos com suas pernas, e que provocam nela uma investida rápida para o centro da teia e, ao perceber que é uma alarme falso, ela fica irada, raivosa, quando, em vão, ele com seu olhar lhe pede perdão, gostaria de lhe dizer que só faz aquilo para poder vê-la, trabalhando, tão corajosa, tão ciosa.

E aos poucos, com o passar do tempo, tem se dado conta que ali está o sentido para a sua vida, isso que ele jamais havia atinado, algo que pudesse cuidar particularmente, que dependesse de alguma forma dele, que lhe fosse grato mesmo sem o saber, pois que a gratidão verdadeira deveria ser desinteressada, melhor ainda se inconsciente, tendo algo de suave, e de gratuito, feito o que vem acontecendo entre ele e aquela aranha, um dependendo tanto do outro, e vice-versa, sem se importarem com mais nada, vivendo cada momento.

Momento difícil foi aquele em que sentiu, num certo dia, algo subindo por sua perna esquerda, por detrás, cosquento, cheio de perninhas, andando um pouco e parando, porém mantendo a leve pressão de suas perninhas contra sua pele. Seu primeiro impulso foi de se sacudir, bater com força o pé contra o chão, porém jamais faria isso, primeiro sua teia. E a bichinha, que não era tão pequena, continuou subindo, por detrás do joelho, invadindo sua coxa na parte interna, forçando passagem pelo tecido de sua calça até sua virilha; lentamente dirigiu sua mão direita até onde ela estava, apertando-a contra sua pele, até agarrá-la com a pinça feita com seus dedos, até esmagá-la ouvindo os craks de seu corpo que estrebuchava resistindo à morte. Um pouco de sua gosma traspassou o tecido e chegou aos seus dedos. Empurrando-a lentamente, pode ver a barata esmagada no chão, rente ao seu pé.

Ele fica um tanto incomodado quando algum inseto, um pernilongo ou besouro, cai e se prende na teia, sendo rapidamente e parcimoniosamente enovelado e desprendido da teia, e levado até sua casa onde, após ter injetado o seu veneno e derretido a presa por dentro, por fim a ingere devidamente. Ao mesmo tempo em que fica fascinado com tudo aquilo, com todo aquele movimento e poder daquela aranha, tão próxima e tão distante dele; ao mesmo tempo em que sente que algo parecido lhe está ocorrendo, mas que não acontece de fato, na verdade quer muito ser um daqueles insetos e, uma única vez ao menos, poder ser ingerido por ela, poder estar dentro dela, mesmo lhe custando a vida. Ao contrário, tem a sensação de que ali, daquele jeito é que está meio que morto, e que vida passará a ter quando conseguir se entregar a ela, sentir suas braçadeiras tecendo suas vestes, ao mesmo tempo nupciais e mortuárias.

Uma única vez em toda sua vida, precisa tomá-la em suas mãos, fazer na impossibilidade a arte, e não se sabe quanto tempo irá pairar nessa indecisão. Até que, com muito esforço, e muito cuidado, lentamente, não podendo tremer nem vacilar, leva sua mão direita ao peito, arranca seu próprio coração e, ainda pulsante e cheio de sangue, o encosta na teia.

Tempos depois o proprietário do quarto encontra uma espécie de estátua, uma casca oca de gente, sentada na banqueta; bastando tocá-la para se desmanchar totalmente, virando poeira que vai se espalhando por todo o cortiço.