Naquele dia, naquele lugar... O mesmo eu, o mesmo nada...

Nada parecia normal aquela manhã. Mas, afinal, o que pode ser considerado normal, numa vida na qual nada é como parece? Indiferente. Não havia a menor possibilidade de escapar daquele puro sentimento de culpa. Puro, mas inconveniente, um incômodo na alma, um receio indescritível. Talvez fosse melhor permancer deitado, escondido, longe de tudo, distante do mundo lá fora, não se aproximar de pessoas, ao menos aquele dia. Aquele dia. Ao olhar-me no espelho senti que meu reflexo tentava me dizer alguma coisa, tentando me impedir, tentando me segurar, para não sair de casa. Ignorei a visão, mas não pude ignorar o que ouvi (ou o que imaginei ouvir, cheguei a um ponto no qual não consigo diferenciar realidade de sonho). Parecia que alguém, uma voz muito familiar, sussurrava no meu ouvido, mas as palavras estavam distorcidas, nada se fazia claro o bastante para surtir algum efeito maior que a surpresa de se ouvir algo que não se pode entender. Captei algumas palavras, das quais não me recordo, e nem faço questão, não me são importantes, talvez não o bastante para me dar ao trabalho de tentar lembrar daquele momento.

Não tive outra escolha senão sair de casa. Não podia suportar aquele lugar, sentia-me preso naquela casa. Seria mesmo uma casa? Qual a diferença de uma prisão com uma casa? Apenas o fato de você estar privado de liberdade e perto de pessoas que você desconhece, ou seria porque, em certos casos (ou certas casas), você tem a impressão de que você está em um lugar fora da realidade, fora da sociedade, fora do mundo? Mas, afinal, liberdade? O que seria a liberdade? Seria isso o fato de eu poder sair do lugar onde habito e ter a oportunidade de ir para onde eu quiser? Indiferente. Saí de casa com todas as minhas dúvidas (não apenas essas, essas são as poucas que me surgiram na mente neste momento). Ao caminhar na rua, sem rumo, admito, sentia-me afastado, sentia-me estranho. A luz solar não me aquecia. Sentia como se minha própria sombra tentasse se afastar de mim. Mas ela não conseguia, ela estava fadada a sempre me acompanhar, não tinha outra opção. As pessoas não me olhavam. Eu, com o pouco de consciência que me restava, observava os pássaros e imaginava como seria ser livre a ponto de poder voar pelos céus. Seria eu capaz de atravessar os limites de ser este ser fraco e defeituoso? Ser-humano. Ser imperfeito. Ser nada além dos seus limites, ser nada além do seu ser. Indiferente. Minha sina era permanecer no chão, não poderia jamais voar como os pássaros. Pássaros. Que animais de sorte. Por que nenhum deles jamais se atreveu a tentar uma vida no chão apenas? Sim, estaria se limitando a ser um ser inferior, estaria se limitando a viver aquem de suas possibilidades. Ele ainda seria um pássaro, mas sua vida não seria a mesma.

Devaneios. Cansei deles. Vivendo mais dentro de minha mente do que dentro do mundo onde supostamente teria que viver. Sinceramente, não creio que eu me encaixe num lugar assim. Não mais. Não como humano. Devo ter extrapolado a capacidade humana de compreensão e auto-compreensão. Sempre fui mais que um simples humano. Ou menos, não consigo achar a diferença. Criei uma barreira ao meu redor, me protegendo através dela. Usando diferentes máscaras dependendo da situação e das pessoas que me cercam. Interpretei tantos papéis que ninguém mais me vê realmente. Nem eu. Desconheço quem sou. Quem fui. Passei por tantas mudanças, tantas desavenças (a maioria comigo mesmo), que hoje em dia sou aquilo que eu mais odiava. Sou um ser estranho. Aparência humana, é verdade, mas não posso dizer o mesmo do modo como me vejo. Internamente. Indiferente. Como se o modo importasse. O que sou já não faz mais diferença, pois não posso voltar a ser o que era. O que me fez assim não é algo que merece ser mencionado neste momento, pois do passado prefiro distância. Lembrar o que me causou tamanha dor e mudança na maneira de ser apenas me trará mais angústia.

Sento-me num banco, numa praça qualquer. Não lembro qual o nome dela (pra ser sincero, não posso nem afirmar se realmente já soube qual era o nome). Observo, mais uma vez, as coisas ao meu redor. Pássaros, pessoas. Automóveis, casas, prédios, árvores. O mundo é belo. Na aparência. No interior das pessoas há coisas que desconhecemos. Sentimentos diferentes, pensamentos divergentes. Somos a pior espécie a viver neste planeta, precisamos de roupas para nos aquecer, precisamos dos outros para viver. Somos necessitados. Somos frágeis, fracos. E o pior de tudo é que fazemos de tudo para não demonstrar nossas fraquezas, fazemos o que for possível para não permitir que nossas falhas nos enfraqueçam. Somos a espécie dominante, mas isso não significa que somos a melhor delas. Nossa existência é justificada pelo pensar. Pensamos, existimos. Existimos, pensamos. A consciência (ou a falta dela) é o que nos faz agir, independente do modo como agimos. Somos racionais ao invés de instintivos. Analisamos probabilidades, características. Procuramos uma razão para a nossa existência, quando um animal “irracional”, apenas se regojiza pelo simples fato de estar vivo. Passamos tempo demais nos dedicando a coisas que muitas vezes nada nos acrescentam. Às vezes, ignorar tudo e fingir que nada somos além de animais num mundo selvagem, ir além daquilo que sempre fomos, é melhor do que aderir ao estresse da vida cotidiana. É bem verdade que as pessoas precisam fazer alguma coisa, seja trabalhar ou estudar, pois permancer estagnado numa só situação recebe o rótulo de “comodismo”. E quem disse que viver uma vida sem anseios é cômodo? Indiferente.

Parado, observando a imagem da cidade, formando, em mente, diversas questões, cujas quais posso, agora, exprimir. É válido tudo isso? Quero dizer, ficar no centro de tudo, observando como o mundo funciona, sem participar dele? Ou, ainda, valeria a pena tentar entrar nessa sociedade que, na verdade, mais nos exclui do que nos aceita? É útil me unir às pessoas que julgam as outras pela aparência, pela cor da pele, sexo, religião ou status social? Há poucas pessoas no mundo que não se encaixam nessa perspectiva. Quem sou eu pra falar isso? Sou alguém que vê o mundo da forma mais crua e cruel que possa ser. E não, isso não é uma forma errônea de se ver as coisas. Não estou cem por cento certo, nem teria como, mas o que digo é real. Não conheci pessoas o bastante para fazer um levantamento preciso de porcentagem ou probabilidade, mas a mente humana funciona de uma forma inexplicável e (ir)racional que fatos como esses sempre acontecem. Pessoas julgando pessoas. Como se alguém fosse melhor que outro alguém. Minhas palavras não têm o menor efeito, sei que provavelmente mais ninguém se interessará por elas, pois quem sou eu num mundo do qual fui excluído?

De cabeça baixa, levanto e lentamente continuo meu passeio. Não suportava mais meus pensamentos, eu sempre fui uma das causas deste meu sentimento estranho. Mas não posso me impedir de pensar. Passo por debaixo de uma árvore onde um pássaro faz seu ninho. Imagino se ele realmente é irracional. Construindo o ninho aos poucos, galho a galho, mas com perfeição. Pode ser uma ação instintiva, por sobrevivência e com objetivo de ter um lugar onde criar alguns filhotes, mas com certeza ele aprendeu isso de alguma forma. Ele existe. Ele tem noção de que existe e que mais dele existirão. Abaixo novamente a cabeça, olho para o chão, passando a procurar minha sombra. Mas não a encontro. Olho para o céu, o dia continua claro. Estranho a situação. Uma ambulância com sua sonora sirene estaciona rapidamente na rua, e dela saem alguns paramédicos, com uma maca. Parecia que algo de errado havia acontecido por perto. Vejo a movimentação que se forma, a multidão que corre em direção a um dos bancos da praça, mais precisamente o banco no qual eu estava antes. Volto até lá, buscando saber o que havia acontecido, mas ninguém me respondia. Eu tentava, mas não conseguia chegar perto o bastante para enxergar alguma coisa. Quando o paramédico anunciou que era inútil, que nada podia ser feito, e pediu para que a multidão se afastasse, chega a polícia, e isso me fez pensar que eu estava próximo da cena de um assassinato. Enquanto os policiais se aproximavam e a multidão se afastava, eu tentei chegar mais perto da cena do provável crime, para ver quem era a vítima. Pouco a pouco fui me aproximando, mas quando cheguei perto o bastante, o cadáver já estava coberto. Uma mancha de sangue se estendia pelo chão da praça, manchando de vermelho a grama verde. As pessoas já tinham se afastado, mas eu ainda continuava lá. Os policiais não se deram ao trabalho de me expulsar do local. Quando foram remover o corpo, finalmente, um dos policiais resolveu dar uma última olhada no rosto do sujeito assassinado. Enquanto o policial levantava o pano que cobria o rosto da vítima, eu me aproximei para, finalmente, poder ver quem era. É impossível descrever o que senti ao ver que eu estava ali, inerte, encharcado em meu próprio sangue. Ao perceber tal estranho acontecimento, perdi a noção de tempo e espaço, perdi a consciência (que era tudo que eu tinha, uma vez que meu corpo não mais me pertencia), e não me recordo de mais nada. Lembro que acordei aqui, na sua frente, e que comecei a lhe contar tudo sobre meu último dia na Terra. Você certamente sabe como tudo aconteceu, eu desconheço os detalhes daquilo que se passava ao meu redor. Contei-lhe meus pensamentos e minhas ações naquele fatídico dia. Peço, apenas, que libere minha alma e que me ajude a esquecer aquele mundo. Nada quero ter como recordação daquele lugar.

Edimar Silva
Enviado por Edimar Silva em 06/08/2010
Reeditado em 22/06/2013
Código do texto: T2421342
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