O menino azul

Deu-se por ser vivente aos sete anos de vida. Pois era dessa época pouco conturbada, donde os rios se moviam mais leves e as águas eram mais diáfanas, que sua mente agora velha e confusa se fazia lembrar. Comprimiu-o a sensação do êxtase exacerbado, típica das crianças que se vêem livres de algum martírio, pois naquele mesmo dia, antes que os primeiros raios de sol se despusessem a varar o horizonte, acordara com o ânimo irresoluto, motivado pelos gritos incessantes do pai a bravejar junto a sua cama.

Remexeu-se sobre a mistura de concreto e barro, forrada de folhas secas de bananeira, coçando o umbigo carcomido pela alergia da qual ainda não tinha consentimento e acordou, ciente de que o dia seria árduo tanto quanto recompensador. Merendou bolachas comuns, ainda com gosto e cheiro remanescentes do fogão a lenha e bebeu do café forte quase sem açúcar, preparado sem jeito pelas mãos machucadas do Sr. Apolinário. Rezou, como de costume, duas avé-marias e três pai-nossos, ofertando a merenda matinal a Santo Expedito e Padrinho Cícero, sem se dar conta que o fazia mais por temor do que respeito, diante das afrontas que o pai vez ou outra proferia em seus nomes, como se os erros, assim como a cor da pele e os traços do rosto, pudessem ser transmitidos de pai para filho, desde o berço.

Saiu cedo com o pai para o plantio, calçando as apragatas velhas, cujas pontas permaneciam presas apenas por escassos pedaços de arame enferrujado, arrastando-se com preguiça pelo dia que mal começara, levando em uma das mãozinhas calejadas a marmita que poria fim a fome quando o sol do meio-dia se intrometesse por entre suas cabeças, ocultando as sombras outrora dispersas. Apesar do suor escorrendo como orvalho, que a ele nunca parecia vir de lugar algum senão do próprio vazio, o sorriso nos lábios fazia-se constante, em especial naquele dia. Resignara-se a manter a mais alta descrição com relação ao assunto, quando Papai Apolinário prometera, apenas duas luas antes, leva-lo ao circo que se aproximava com estardalhaço da cidade. Mulheres barbadas, homens de dois metros de altura, gemeas-siameses (papai Apolinário tomara o cuidado de explicar-lhe os pormenores do termo, num misto de informações que suscitaram grande confusão na mente pouco imaginativa do filho), mulheres que se transfiguravam em cobras, cobras que se transfiguravam em homens, homens que não eram de todo homens, tudo incitava a curiosidade do pequeno Antônio Apolinário a ponto de roubar-lhe as noites de sono com o mesmo vigor de uma parteira conduzindo o momento crucial do parto.

Admirava os mágicos, mais pela postura do que pelos efeitos alucinógenos dos truques, mais devido aos trajes formais que sabia serem tão distantes de sua realidade quanto coelhos capturados do interior de uma cartola velha, do que os truques do adivinho de cartas que tanto o assombrava. Havia ali um sentimento de complacência, de compreensão mútua do ponto de vista do garoto, visto que aquelas pessoas mentiam para viver, de livre arbítrio e por si próprias, ao passo que Antônio Apolinário fora incapacitado de fazê-lo desde a tenra infância, motivado à tabefes e pontapés dos pais, que faziam uso dos métodos pouco ortodoxos de ensino como a mesma ferocidade de um grupe de abelhas fabricando mel. Nutria respeito em igual proporção pelos palhaços, pois em sua mente intuitivamente fértil, um homem suficientemente disposto a vestir uma roupa multicolorida e se expor ao ridículo era duas vezes mais homem.

Era escasso o conhecimento do Sr. Apolinário em se tratando de câmbios monetários, portanto viu-se mais surpreso do que esperava ao receber a notícia fatídica, vinda do próprio dono do circo que fazia as vezes de recepcionista, de que a entrada para a então "fantástica seleção de aberrações naturais circense" era de incríveis dois contos de Réis. Evadiu-se de toda a culpa, antes que dela pudessem germinar as sementes da incerteza e retirou o dinheiro do vão entre a cueca e a calça surrada. Apaziguou-se por um período antes de ceder lugar a cólera evasiva e aos deleites infrutíferos dos argumentos impróprios. Em seguida, por conseqüência, protestou com o punho fechado e erguido ao alto e urrou palavrões heréticos, como um político exaltando suas mais sinceras qualidades, se é que havia alguma; "Quanto mais trabalho, mais me cobrem a cuca de merda! Por quatro contos de Réis eu vejo até o fim do mundo!", mas, por fim absteve-se da culpa e entregou o dinheiro ao dono do circo, com certa relutância, mas com o coração transbordando de felicidade ao notar o semblante despretensioso e alegre do filho.

O leque de atrações era mais diversificado do que ambos supunham; acrobatas, palhaços, aberrações, piratas usurpadores de tesouros, elefantes, zebras, galos de briga, pulgas adestradas, mágicos, equilibristas, anões em pernas de pau, engolidores de fogo e espadas, um faquir vindo da índia que dizia ostentar os segredos mais obscuros da cultura do fim do mundo, um atirador de facas que punha a prova suas habilidades no manejo dos metais afiados usando uma bexiga de festas presa a boca da própria filha como alvo, e macacos. Muitos macacos. De diversos tipos, de diversos tamanhos, de diversas índoles, cada qual ocupando um espaço vazio do picadeiro, ente cambalhotas e movimentos desajeitados. Antônio Apolinário não se lembrara, mesmo nos dias mais delirantes de sua longa e produtiva vida, de um momento em que se sentira tão pleno e perfeitamente realizado como aquele.

Aventuraram-se pela cela da mulher barbada, que para surpresa e deleite de ambos, não era tão barbada assim, visto que Tio Apolinário já padecera de males capilares piores. Tão pouco se impressionaram com Guillermo Garcia, cuspidor de fogo e artesão nos momentos de ócio, donde tirava o sustento de duas raparigas menores e da esposa, Ofélia, cujas ancas padeciam de um mal súbito que médico algum conseguia diagnosticar, desde a tenra idade dos dezessete, quando ainda moça desfez-se de todos os compromissos firmados junto a família e se aventurara a viver junto ao amante, a vida boêmia, quase boçal e deverás irresponsável, dos ciganos proscritos. Havia de voltar a sua terra natal assim que fosse excomungada de vez a notória sensação de infelicidade pessoal que julgava guardar consigo, na medida em que as lembranças lhe afloravam a pele. E foi ela que sorriu, pela primeira vez, ao trocar olhares obscenos com o pobre e inocente Antônio Apolinário, ao passo que atravessavam a cela vazia da qual se ocupava tão veemente em limpar. “O que faz um garoto da pele azul fora da jaula?” Questionou-se ao marido com tal ênfase que foi quase possível ouvi-la em meio aos murmúrios inconscientes dos outros espectadores. “Porra! E não é que tens razão?!” Dissera o marido, genuinamente impressionado. Antônio Apolinário, que até então não se dara conta da própria tez de aspecto particularmente curioso, viu-se em estado de graça e desgraça, ambos convivendo consigo em perfeita harmonia e desafeto quase que simultâneos. Viu-se como num reflexo, de modo distorcido e irreal, subjugado pela cor estranha da pele que poucos sabiam ser motivada pelo nitrato de prata coloidal, ministrado por diversas e errôneas vezes quando este ainda era muito jovem, com o devido consenso dos pais e o intuito desesperado de dar cabo de uma misteriosa enfermidade que o assolava desde o berço.

Riram e caçoaram do pobre Antônio Apolinário Fizeram chacota, inferiorizando-o mais do que qualquer aberração de circo que já se prontificara a ser inferiorizada. Fazia-se audível há léguas de distância o relinchar dos cavalos, a algazarra dos macacos, os sorrisos desmedidos e ainda desprovidos do mínimo indício de amor próprio que seja das outras aberrações. Tamanho era o disparate que as gêmeas siamesas se prontificavam a revezar, dividindo por igual o ar que lhe adentrava aos pulmões, rindo feito velhas loucas padecendo no auge da insanidade. O engolidor de fogo, por sua vez, limitou-se a segurar o riso que se formava de pronto, antes que este lhe queimasse os poucos pelos do bigode e da barba já rala e sapecada pelo fogo.

Tal reação (transmutar-se como mágica de espectador à personagem principal), nutrira em Antônio Apolinário todo tipo de sentimento negativo que mente humana é capaz de instigar. Sensações abruptas que se ramificaram, percorrendo seu corpo, inundando as entranhas do próprio coração com a maldade que transbordava-lhe pelos poros, feito um vulcão adormecido entrando em erupção. Quis sair dali. Quis transpor as barreiras quase naturais das tendas decrépitas corroídas pelas traças e refugiar-se em meio a plantação de mandioca, defender-se em toda a magnitude da pouca honra que ainda lhe era possível, com o cabo torto da enxada. Aceitaria o fato concluso de ser rebaixado ao mais ínfimo ser ali, perante pessoas de péssimo grado e cujos talentos beiravam a precariedade, porém em seu habitat natural se sentiria seguro o suficiente para revidar se fosse necessário. Não foi. Pai Apolinário interveio, como era de praxe, tomando as dores do filho magoado. "Ainda há de nascer o cabra da peste que vai cagar num filho meu na minha frente!". E com essas palavras proféticas, oriundas do mais intimo de seu ser, Pai Apolinário deu cabo, sem qualquer resquício de arrependimento ou mesmo culpa, de dois anões, três zebras, um cavalo, dois engolidores de fogo, um faquir, duzentas pulgas, sete macacos, cinco piratas, um equilibrista, doze galos de briga, uma mulher barbada, um engolidor de fogo, duas gêmeas siamesas e um acrobata. Salvaram-se apenas os palhaços, devido a boa graça de seu filho Antônio Apolinário e os mágicos, que se prontificaram a demonstrar suas incríveis e enigmáticas habilidades profissionais, desaparecendo na melhor parte do espetáculo.

Edilton Nunes
Enviado por Edilton Nunes em 14/08/2010
Reeditado em 14/08/2010
Código do texto: T2436946
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