O Parto

A coisa toda começou em janeiro, num belo janeiro de um ano qualquer, "no mais lindo dos janeiros dos últimos vinte anos", diria depois se tudo terminasse. No princípio fora o verbo, um som longínquo nascido e morto nas confluências indizíveis do interior de sua cabeça, nas quais se encontravam parte de sua razão com parte da razão da realidade. Quase imperceptível, quase confundido com qualquer coisa que fosse inexplicável. Passou aquele janeiro sem notá-lo, mas percebendo-o; sem ouvi-lo, porém escutando-o; sem querer assimilá-lo, contudo sendo impulsionado a tanto. Na ânsia de se mostrar alheio, seu inconsciente buscou fatos novos: interessou-se por numismática somente por ter gostado da pronúncia da palavra...

- Meu sonho excêntrico de consumo...

Quis viajar e foi repentinamente que decidiu passar alguns dias, os últimos daquele janeiro, na Índia. Disse à secretária ao celular um "já estou a caminho do aeroporto" tão absorto quanto inconsequente fora o ato de desligar o aparelho e sorrir, imaginando a fisionomia apalermada da funcionária diante dos acionistas em torno da mesa de reunião, na estilizada sala do último andar do prédio-sede da companhia. Entretanto, ainda em janeiro, antes que os últimos dias dele se extinguissem de vez, já estava de volta. Quisera deixar aqui o som longínquo do interior de sua cabeça, mas conseguira apenas intensificá-lo com a viagem-fuga e, de longínquo de antes, tornou-se já vozes quase discerníveis com frases quase inteligíveis. O "quase", inclusive - notou muito tempo depois -, fora produto de sua desesperada necessidade de não entender aquilo tudo.

Fevereiro fez juntar aos sons uma espécie de formigamento nas entranhas, algo parecido com leves choques elétricos que provocavam, além de rápidos estremecimentos, umas consequentes idéias de visitas ao seu médico, devidamente rechaçadas por seu orgulho de homem forte e saudável, ainda. Nessa época, havia obtido de volta o bom senso de não menosprezar os compromissos comerciais que seu posto de grande industrial fazia inadiáveis.

Contudo, março chegara com sua torrente de águas poderosas, alagando não somente os bairros pobres da periferia, longes de seu habitat físico, porém, muito próximos a um tipo de habitat que jamais julgara existir: sua própria alma. Havia chovido torrencialmente durante todo aquele início de mês, mas era em suas entranhas que a fúria das águas estava mostrando sua face mais medonha. Os enjoos que andava tendo em março não tomaram lugar do formigamento de fevereiro ou este do som longínquo de janeiro; antes, se juntaram a ambos e agora formavam um conjunto surrealista de alheamento pessoal. Nem a expectativa da consulta ao psiquiatra, marcada sob efeito de intransigente pedido-ordem de seu neurologista, tirara de si a sensação de que tudo aquilo vinha de uma força exterior a sua vontade, além de suas determinações e aquém de seu poder de humildade. Não obstante remédios e consultas, março se findara com negras promessas para abril e fugazes - mas fortes - imagens em seu campo visual. Fruto do estres, tinham dito, afinal, o psiquiatra e o neurologista.

Foi em abril, e pelo vidro enegrecido de seu carro, que vira aquela mulher grávida quando saía do escritório a caminho de casa. Vinha buscando, teimoso, explicações para os muitos fatos em sua vida quando a viu. A imagem surtiu um efeito inesperado em sua órbita percepcional, conquanto surpreendente. Não era apenas mais uma mulher grávida, era a mulher grávida. Não apenas um corpo construindo outro corpo, mas a ideia da natureza construindo algo que homem algum, tecnologia alguma, fosse de qual tempo fosse, seria capaz de reproduzir, a despeito de tantos clones caminhando pelas estradas das mídias mundiais.

A imagem da mulher com seu corpo avantajado penetrara com a facilidade de um punhal pontiagudíssimo em carne macia e abrira orifícios mentais que seus atos de homem prático tentaram por anos a fio tapar. Ou, antes, fazer esquecer que existiam. A mulher e seu corpo fizeram-no lembrar momentos que sua agenda não permitia notar, que suas reuniões se incumbiam de afastar, que sua notória capacidade de homem pensante jogava para muito longe de seus costumes. Foi um instante apenas. Apenas o tempo bastante para seu carro passar pela mulher grávida na calçada da bela avenida na qual transitava. Foi um momento apenas. Nada mais.

Maio fez surgir um desejo profundo de alguma coisa ou de fazer alguma coisa que não sabia exatamente o que era. Numa roda informal de amigos numa reunião social qualquer, alguém lhe falou algo sobre notar uma expectativa diferente em seus olhos. Sabia-se lá! Era um brilho, uma mancha, não podia dizer o que era, mas era algo diferente. Aquilo acabou por preocupá-lo ainda mais, pois, afinal, nem neurologista nem psiquiatra tinha chegado a uma conclusão e, informalmente, um leigo notara algo estranho. Umas roldanas dentadas invisíveis nas quais estavam se transformando os reflexos de sua mente o fizeram voltar no tempo, na infância esquecida, forçadamente esquecida, em que sua mãe, lenço amarrado na cabeça, tacho de goiabada sobre ela, mantinha sua mão presa à dela para que não se perdesse, enquanto caminhava de casa em casa oferecendo o único produto com o qual poderia arranjar um pouco de dinheiro para o sustento da família. As roldanas o fizeram lembrar que a gorda e desajeitada senhora tinha o dom de ver no brilho dos olhos das amigas o filho que esculpiam no ventre.

- De erro estou longe, tu tá prenha com certeza.

A vergonha forçou as roldanas no sentido inverso para fazê-lo esquecer de vez aquela época.

Junho empurrou o frio definitivamente para dentro de si e o lacrou em seu semblante. As vozes em seus ouvidos ganharam formato de risadas. Sua garganta prendia o ar que teimava entrar; suas pernas buscavam direção que seu cérebro desconhecia; sua alma começou a trazer lembranças obscuras de fatos que uma ou outra palavra capturada no interior dos ouvidos, entremeadas de risadas, pintava em cores ainda não claras.

Os fogos de julho, resquícios de um junho praticamente morto, fizeram queimar sua irredutibilidade e, por fim, afastou-se das empresas. E aproximou-se dos médicos. Cabisbaixo e meditabundo, sentia-se inflar com algo querendo sair de dentro de si. Era uma lâmina que o rasgava como uma serra descontrolada em floresta densa, fechada. O coração disparava com as tais meias lembranças de épocas não tão distantes e não tão queridas - por não tão boas.

Um preocupante agosto se formou em seu consciente, posto que inerte desde inícios de julho em cama do melhor hospital que encontrara. Parecia inchado. Não exatamente inchado, mas expandido de dentro para fora, num metafórico arremedo caricatural de gravidez psicológica. Aquela coisa que, em junho, começou a se avolumar dentro de si, agora já empurrava toda a superfície de seu corpo para o exterior. E o fazia como se queimando sua subpele. Lembrou-se da mulher grávida que vira em abril, mas não soube explicar nem o porquê de lembrar-se nem as novas sensações do não-desespero que as lembranças suscitaram.

Foi em agosto que sentiu a morte, enfim, dar sinal de vida em definitivo. Esperava por aquele sinal desde maio e se comprazia por não o ter recebido antes. Mas viera, afinal. E em forma de dor, em princípio tão conhecida quanto a dor de uma pancada num músculo, daquelas que vão se desacentuando paulatinamente com o passar dos movimentos. Porém, em quatro dias notou que a dor ia e voltava e, em quinze, que em voltando, voltava mais presente e forte. Não conseguiu falar aos médicos sobre ela, pois os meados de agosto o puseram na UTI e estava inconsciente. Contudo, não conseguiria pormenorizar as características da dor, já que não sabia aonde ela se instalava. Ora era próximo ao pulmão, ora ao coração, ora ao estômago.

Em início de setembro, a dor esporádica e evolutivamente sequencial já o fazia contorcer-se quando no auge, para depois arrefecer-se lentamente. Então, os sons longínquos se uniram às visões e ambos ao formigamento, que se uniu aos enjoos e aos desejos que, junto ao queimar interior, produziam por fim a dor, agora lancinante. A imagem arredondada de seu corpo era seu menor problema, pois os médicos resolveram acatar a sugestão dos familiares. Desligariam os aparelhos que o mantinham vivo.

De dentro da cápsula de clausura que agora era seu corpo, a réstia de consciência chorava a impossibilidade de tornar reais os conceitos que aqueles meses todos reescreveram em sua alma. Precisava continuar vivo. Tinha coisas importantes a fazer, então. Pássaros para admirar e lamentar os que matou; amigos para ouvir e se desculpar dos quais se distanciou; estranhos dos quais se aproximar e sorrir para aqueles que ignorou; subornos a negar e corrigir os que produziu; esposa para amar e amantes para reencaminhar; metas para as quais se voltar e outras das quais fugir; filhos legítimos para compreender e ilegítimos para reconhecer; flores nas quais se perfumar e espinhos dos quais se desviar; sóis para ver nascer e vendavais dos quais se abrigar; sorrisos para dar e falsos risos para reprimir; palavras para dizer e outras tantas mais para ouvir; crianças das quais cuidar e velhos com os quais aprender; postos de trabalho a oferecer e inoperância a corrigir; um lar a habitar e outros mais para visitar; parentes para reencontrar; funcionários para promover.

Tinha um mundo de coisas para fazer. Não podia morrer, então. Mas a dor insuportável o estava contradizendo e crescendo em seu interior, como que levantando prédios enormes na altura de seu ventre.

O fim de setembro trouxe a certeza da morte. Num momento qualquer contorceu o corpo sob força poderosa e desconhecida, como se em gozo sem prazer. Gritou gritos que o autocontrole reprimira, suou águas que o culto à imagem não permitia até então. Era bem uma fósmea sem fim. Não havia ali senão o ele consigo próprio, sem máscaras de degraus galgados ou postos conquistados ou cheques especiais assinados ou mesmo troféus levantados ao alto da cabeça por vezes sem conta. Gritou e, no grito, quis expulsar a dor mortificante que caminhava por seu corpo inchado. Médicos e enfermeiras ao redor não conseguiam entender suas mãos aferroadas na barriga, agora um ventre parturiente, cujas imagens ultrassonográficas ou tomográficas em nada puderam ajudar. Instintivamente, no máximo nível de dor, abriu as pernas e arqueou o tronco para cima, como se querendo lançar para fora de si aquele algo estranho de seu interior. Bufou até não mais poder, fremiu o mais que conseguiu. E, por fim, explodiu. Lançou tudo, afinal, para fora e explodiu um esgar horrível de face de fim de dor, fez morrer um gemido descabido e deixou o corpo cair na cama, quase desfalecendo.

Aquele som longínquo de janeiro agora se parecia com um choro ausente, um choro sem fundamento ou motivo, um choro infantil. Ouviu música no ar. Não. Não no ar. Mas dentro de sua cabeça.

Abriu os olhos no momento em que a cara junta médica balançava a cabeça, desnorteada. Ao invés de incompetência, viu trabalho; no cheiro de hospital, vida; no profissionalismo das enfermeiras, o calejamento natural que a rotina propõe. Retirou de cima de si o lençol com a logomarca do plano de saúde, levantou-se a contragosto dos médicos e foi ao banheiro. Voltou e agradeceu a todos pelo empenho, sorrindo sem perceber e toando em nível baixo a voz, sem notar.

Quando sua esposa entrou no quarto, seus olhos já haviam se vestido de paz, assim como seu rosto de ternura. Acariciou-a com uma das mãos e levou a outra ao rosto do filho, atraindo-o para si. Não disse nada. Tanto porque nada havia para ser dito como porque não saberia dizer algo naquele momento. Disse aos doutores que voltaria para refazer todos os exames necessários e tirá-los daquele estado apalermado em que os empurrara, mas que precisava fazer uma coisa muito, muito importante, naquele instante. Beijou a esposa, fitou o filho, sorriu e saiu.

Diante do casebre em ruínas, no bairro pobre tão ao lado de seu bairro rico que poderia ouvir os gemidos de fome dos habitantes, parou e levantou a cabeça para o sol fraco de fim de tarde de uma quase primavera. O cheiro que entrou pelo seu nariz o levou de volta à infância. Era adocicado e forte, amolecente, gostoso. E agora delicioso.

Não havia cerca, pois não havia quintal. Algo de escada na terra batida o levaria até a porta, feita de madeira de caixotes de frutas. Não faria soar qualquer campainha, pois não havia luz elétrica; não faria soar palmas, pois não havia necessidade delas. Subiu aqueles poucos degraus com muito mais vontade que aqueles sociais galgados para chegar à presidência da holding. Abriu a porta do barraco e o cheiro de goiabada caseira foi um beijo em seu rosto já com algumas rugas como referência.

A mulher arcada diante do fogão, sobre o qual remexia uma massa num tacho fundo, ainda tinha um lenço branco e limpo em volta da cabeça. Ela o olhou e não sorriu com os lábios, mas com os olhos, porque vira nos olhos dele que voltara para ela. Afinal, voltara para ela como jamais prometera que o faria. Ele chorou algo limpo de dentro de si e estreitou-a num abraço que jamais dera, sentiu o cheiro do corpo idoso misturado ao de goiabada e quis inspirá-lo mais profundamente. Sob o lenço, alguns fios de cabelos brancos faziam cócegas em seu nariz e ele riu, fez cócegas nela também, ela fez nele. Ela acariciou seu rosto agora novamente infantil, colocou uma mão em cada lado de seu rosto e fitou-o, chorando. Inspirou. Silenciou o não-reclamar de ano após ano, confiante. Puxou-o para si novamente.

Ele a pegou no colo e levou-a casa. Para seu mundo.