O azul da Luz

No encontro deles ocorreu uma fusão de um nome um tanto quanto inusual: “cariogamia”, e no trilionésimo do milésimo do centésimo de um segundo resplandeceu uma fugaz centelha azul celeste do ponto de luz que cruzou o firmamento. Naquele instante o Alento não sabia, mas ele estava feliz, afinal, a sua vez havia chegado. Foram anos de ansiosa espera. Da última vez em que viajara na centelha tinha-se passado um longo tempo. Seu mentor tinha-lhe prometido que em breve ele retornaria à tão propalada e encantadora Terra. Muitos de seus amigos já a tinham conhecido e nas longas horas de folguedo muitos falavam maravilhas, outros contavam horrores, alguns outros, mais experientes, assistiam complacentes as intermináveis discussões sobre o que era bom e o que não era tão bom assim a experiência naquele pequeno planeta azul.

Da última vez que Alento havia visitado aquele pequeno planeta perdido na imensidão do Universo, ele tinha passado um curto período de tempo, talvez uns três ou quatro anos, muito pouco, mas muito agradáveis. Passara o tempo de sua curta existência sugando o néctar das flores à margem de um lago aprazível, pena que um gavião cioso do bem estar da família pusera termo à sua existência andeja de beija-flor.

Desta vez seria diferente, muito diferente. Desta vez ele estava ocupando um invólucro humano, numa vibração mais ascendente o que aumentava substancialmente suas chances de permanecer em Gaia, quem sabe, talvez algumas décadas. Ele não sabia, mas estava exultante.

Alento estava contente, em questão de dias o invólucro de nome esquisito, “zigoto”, tinha-se metamorfoseado em outro com nome mais esquisito ainda, “blastócito”, tudo estava correndo bem, mas, por via das dúvidas, nunca se sabe, ele achou melhor aderir firmemente à parede daquela aconchegante gruta onde o invólucro crescia exponencialmente.

Engraçado, pensava Alento, enquanto o invólucro crescia grudado à parede macia da gruta, o abrigo exsudava um fluído morno que o envolvia dando uma sensação de aconchego. E, o mais interessante, Alento percebia, é que junto com o fluído vinham emanações de amor. Ele quase que sentia umas ondas de suave música vibrando junto com as emanações amorosas.

Amigo... É incomensurável a sensação de prazer que frui das vibrações do amor materno.

À medida que os dias se seguiam ele podia sentir a energia e os fluídos vitais que pulsavam pelo cordão que despontava do seu umbigo e o ligava diretamente à parede da caverna aconchegante. E essa energia, esses fluídos vitais davam-lhe a sensação de infinita paz. Tudo estava em perfeita harmonia com as vibrações interiores e exteriores. Tudo estava exatamente como planejado pelo mentor, pelo menos até onde ele sabia. Afinal, fora preparado com muito cuidado para a grande apoteose. O final do grande começo.

Alento aos poucos foi sendo envolvido por um suave calor e sentindo as cálidas ondas do líquido que o envolvia, e em paz, adormeceu suavemente.

- o -

De súbito, Alento acordou com uma sensação estranha. Uma energia diferente emanava do cordão que o ligava ao abrigo. Aliás, todo o repositório de sua segurança estremecia e vibrava estranhamente, negativamente. O líquido morno que envolvia o pequeno invólucro agitava-se em ondas cada vez mais quentes, abrasadoras. Náuseas angustiantes acometiam o invólucro. O que será que estava acontecendo? Ainda faltavam várias semanas para a apoteose. Porque ninguém o havia avisado sobre esses percalços, esses imprevistos? Mestre, onde você está?

O pequeno invólucro de Alento contraiu-se e se esticou num espasmo violento. Uma dor lancinante partiu do seu umbigo. Desesperado ele olhou para o cordão, e horrorizado viu que a ponta que o ligava à parede da gruta estava solta. Incontinente ele percebeu que o líquido que o envolvia calidamente se esvaía em turbilhão, e, junto com ele o invólucro, em alúvio, foi carregado. De repente ele estava fora da acolhedora gruta, do aconchegante abrigo sem entender o que estava acontecendo. Estava tudo correndo tão bem. Mestre, o que foi que aconteceu?

Ainda aturdido com os últimos acontecimentos, passou diante dos olhos fechados de Alento um fugaz azul de uma luz.

- o –

Alento não soube dizer quanto tempo ficou inconsciente. Entreabriu os olhos e uma claridade difusa invadiu sua retina. Aos poucos foi discernindo a barba branca e os cabelos revoltos do mentor, e ao seu lado, o enfermeiro do hospital do Lar o observava com afável atenção. Não poderia ser diferente, ele sempre fora muito atencioso com os recém chegados. Recém chegados? Eu voltei? Mas...!!?

Num gesto suave o Mentor pousou a mão direita na testa de Alento e uma paz infinita o acometeu. Alento nem percebeu que voltara a dormir um sono reparador.

- o –

Refeito do trauma da súbita partida de Gaia e fortalecido pelas energias emanadas de seu Mentor durante a convalescência, Alento foi solicitado a comparecer, em audiência, no Jardim da Luz.

Quase todos os dias, antes da recente Grande Viagem, Alento passara horas agradáveis no Jardim da Luz. Ali ele ouvia com fascinação as histórias dos recém chegados da Grande Viagem. Algumas narrativas suscitavam tristeza, mas em algumas outras os ouvintes exultavam de alegria. Ele gostava mais das que o deixavam alegre, pena que a sua última viagem não tenha chegado a bom termo. Alento estava perdido em suas elucubrações quando ao longe viu o Mentor com o braço erguido chamando-o para juntar-se a um grupo sentado à margem de um lago circundado por um imenso pomar.

-Irmãos apresento-lhes meu dileto discípulo, Alento! O mais novo recém chegado.

-Alento! Apresento-lhe o seu grupo de terapia. Eles também são recém chegados. Enquanto vocês trocam impressões para se conhecerem melhor, eu vou até ali, naquele tamarineiro juntar-me àquele grande grupo. Eles também são recém chegados, porém, muito mais traumatizados. Eles são frutos daquele abalo que acometeu um país da América do Sul recentemente.

- o –

Depois de algumas semanas de terapia, uma manhã, Alento foi comunicado que deveria comparecer à presença do Mentor.

-Mestre, que bom que você me chamou, trago tantas perguntas a serem feitas, tantas dúvidas.

-Que serão respondidas e sanadas em seu devido tempo meu filho. Por enquanto, o que tenho para te falar é que você vai ser preparado para uma nova viagem.

-Já? Mas... Mestre? Não se passou nem um ano entre a minha última viagem e a volta? Mestre, eu ainda estou me recuperando do trauma da minha súbita partida de Gaia.

-Meu querido filho, não foram meses que passaram, foram décadas pela noção de espaço/tempo de Gaia e fugazes segundos para nós. Na verdade, o tempo para nós não tem nenhum significado. O mais importante para a nossa existência é o aprendizado que nos nos eleva para uma vibração mais sutil. É essa sutileza que nos aproxima da luz. Acredite filho, se fizermos uma comparação bem simplória, ou seja, para o entendimento carnal dos habitantes de Gaia, dezenas de décadas deles, para nós, significa um estágio vibratório, quanto mais avançado o estágio, mais sutil é a vibração e mais intensa é a luz para nós, simples aprendizes.

-Quer dizer que o senhor, Mestre, também é um aprendiz, um discípulo?

-Todos somos discípulos em diferentes estágios, em diferentes vibrações. Eu e meus iguais, os outros Mestres, embora ocupemos níveis vibratórios diferentes de você e dos outros discípulos, nossas vibrações estão muito próximas, somente assim podemos orientá-los nos vossos crescimentos. A mesma regra, em diferente estágio, se aplica aos meus Mestres e assim sucessivamente até todos nos aproximarmos, um dia, na definição terrena, da Celeste Luz Onisciente.

-Meu estimado Mestre, perdoe a minha insolência, porém ela é causada por uma dúvida crucial... Se a Celeste Luz é Onisciente, e, voltando ainda na definição terrena, tem conhecimento de tudo o que se passa no presente, passado e futuro, ou seja, em todas as vibrações, qual o sentido do aprendizado, se todas as vibrações, embora paralelas, convirjam para o mesmo ponto, o conhecimento.

-O Livre Arbítrio, meu filho. O Livre Arbítrio é a essência de nossa existência. É a grande dádiva que a Celeste Luz nos proporcionou. Livre Arbítrio, meu filho. Reflita sobre esse conceito.

-Então quer dizer que é o Livre Arbítrio que nos leva a tantas provações, tal qual a minha recente e infortunada experiência.

-Infortunada na sua perspectiva, meu filho. É essa perspectiva que o leva de volta a Gaia. Faz parte do seu aprendizado, da sua evolução. Agora vá meu dileto amigo, uma nova vibração o aguarda. Você voltou a galgar os degraus em direção à Luz.

Enquanto o jovem Alento caminhava em direção ao horto florestal formado por figueiras brancas, jatobás, castanheiras do Pará, ipês roxos, amarelos e rosas, cedros, mognos e paineiras, carrapetas e sapucaias, entre outras, cujas frondosas copas abrigavam do sol brilhante um anfiteatro escavado no chão, com assentos em forma de degraus semi-ovais, repletos de alunos que escutavam atentamente os ensinamentos de um Mestre, o Mentor meditava olhando o jovem amigo afastar-se.

O Mentor lembrava-se dos folguedos de sua juventude. Lembrava-se das brincadeiras intermináveis protagonizadas por ele e seu também jovem amigo Alento por entre as frondosas árvores do horto florestal. O Mentor lembrou ainda da sua primeira viagem para Gaia, ele e o amigo Alento. Lembrava-se de seu último dia em Gaia. Lembrava-se dos olhares assustados, dele e do amigo Alento no centro do Coliseum enquanto os leões com suas bocarras escancaradas rugiam avançando em direção ao pequeno grupo encolhidos junto à parede da arena. Lembrava-se da partida traumática de Gaia e do excruciante período de terapia intensiva no Lar. Lembrava-se que lhes foram perguntados se queriam continuar no Lar, ele e o amigo Alento, em confortável vibração ou se queriam continuar o aprendizado. Caso escolhessem continuar no Lar, seus traumas recentes paulatinamente seriam olvidados. Caso escolhessem continuar o aprendizado, em certo estágio eles atingiriam determinada freqüência de vibração que os fariam recordar todo o caminho percorrido. Ele escolhera continuar o aprendizado. Ainda estava nos primeiros degraus da longa escada, mas estava evoluindo. Lembrava-se de tudo. Sempre fora uma questão de Livre Arbítrio.