O VENCEDOR

Aquela noite, aquele jantar, começou a ser preparado havia alguns meses, desde quando o apartamento ao lado voltou a ser habitado.

Os movimentos daquele rapaz, seu modo de ser e de viver, logo chamaram a atenção do Stênio, assim que se tornou seu vizinho.

À princípio o Stênio foi despertado pelo som da música que de lá chegava, pelo murmúrio que raramente acontecia, além, é óbvio, pela figura marcante com quem passou a se deparar, por vezes, no elevador ou no corredor comum aos seus apartamentos. Cresceu-lhe a curiosidade, a vontade de se aproximar daquele rapaz, e não percebia bem o porquê. E logo o Stênio, que há tantos anos aceitara e assumira sua condição de ermitão, vivendo completamente em sua solidão. Logo ele, que rompera com a família, que não possuía descendentes nem herdeiros. Logo ele, foi se percebendo ligado, depois entusiasmado, quase se apaixonando, pelo pouco que lhe chegava, com os resíduos da vida daquele rapaz, seu vizinho. Passou a ficar durante horas deitado em sua cama, inerte, alerta, esperando algum sinal de vida vindo do apartamento ao lado. Sua concentração era tamanha, que já não estava no seu apartamento, transportara-se para o ao lado, era capaz de visualizar cada cena vivida pelo rapaz, preenchendo com sua imaginação os ruídos de vida que lhe chegavam.

Definitivamente, não foi por acaso que aquele rapaz se tornou seu vizinho. Foi a partir dessa constatação que lhe veio a idéia de um dia, quem sabe, poder finalmente realizar aquele jantar.

Meu Deus, tanto tempo já havia se passado desde que o pai do Stênio lhe ensinara aquela receita, e muito mais do que isso, lhe preparara, com a devida pompa e circunstância, aquele jantar, quando ainda adolescente, dando os primeiros passos para a vida adulta. Naquela época, tanto o seu pai quanto ele próprio, estavam convencidos, imbuídos de fé, de esperança, no melhor futuro para ele, o Stênio. O jantar foi um prêmio, uma coroação, servindo de rito definitivo de passagem para a vida adulta.

Tanto tempo se passou, o Stênio se casou por duas vezes, não teve filhos, os sobrinhos não tinham o perfil adequado àquele ensinamento, restando-lhe a resignação com o seu destino, além da convicção do quão muito lhe serviu a experiência transmitida por seu pai. Ainda lhe era viva a lembrança daquela época do jantar preparado por ele, o cuidado reverencioso com que o precedeu, enchendo de expectativa, criando nele aquele tipo de fome, tão especial e adequada para o momento. Sim, seu pai soube ser um expert, soube romper todos as barreiras, soube criar o melhor clima para transformar a situação numa experiência inesquecível de amadurecimento.

E agora, como ficou feliz ao ter conseguido fazer contato pessoal com o rapaz, percebendo a empatia do encontro. Daí em diante, a aproximação foi acontecendo naturalmente, comentários sobre literatura, a política do país, as músicas compartilhadas, etc. Chegaram a frequentar o apartamento um do outro algumas poucas vezes, o Stênio pôde conhecer a namorada do rapaz, pôde conhecer sua história, e cada vez mais impressionado com suas qualidades, seus talentos, verdadeiros atributos que mereciam ser lapidados, tratados convenientemente até se transformarem em força e ação vitoriosa diante desse mundo dos tempos de hoje. Não poderia deixar que aquela ingenuidade do rapaz se transformasse em presa fácil a todas essas ideologias modernas, pseudo-edificantes, tão em voga e atraentes e voltadas para os espíritos jovens, criativos e mal formados. Que bom que ele estava ali, o Stênio, com toda sua bagagem viva dentro de si.

Não havia tempo a perder. Iniciou a sedução. Iniciou os preparativos para sua primeira confecção daquele jantar. Os tempos eram outros, precisava se cercar de maiores cuidados que os que tivera o seu pai. O rapaz não era seu filho, o que aumentavam os riscos. Mas haveria de ter sucesso, e afinal esse era o preço do jantar, ou tudo ou nada. Espelho e transcendencia da vida em seu melhor estilo! E havia chegado o momento.

Não foi fácil reunir todos os ingredientes, saber guardá-los reservadamente, dentro de seu apartamento. A sua vida, apesar das quatro paredes, era tão devassada, tão difícil para a garantia de uma privacidade adequada, diferente da casa em meio de terreno, onde morava com seu pai, longe dos vizinhos, longe dos outros, embora mantivessem uma camaradagem intensa, coisa que não se via na cidade grande. Mas não podia reclamar totalmente daquela falta de privacidade, pois graças a ela pode se infiltrar e conhecer o seu vizinho.

Fez investimentos. Ampliou sua cozinha, utilizando um pedaço da área de serviço, fazendo uma boa bancada ao lado do fogão. O ideal seria um fogão maior, mas como explicá-lo, se ele, Stênio, morava sozinho? Comprou um grande tacho, de ferro fundido, com duas alças, melhor seria se fosse ainda maior, mais fundo, mas aquele coube sobre o seu fogão, e com bastante cuidado e empenho, haveria de servir. O resto foi conseguido através de negociações com colegas e pessoas do bairro.

Enfim chegou o dia. Quando o rapaz tocou a campainha, já os primeiros preparativos tinham sido feitos. O Stênio bem que tentou afastar a namorada do rapaz, mas em certo momento da negociação, melhor dizendo, do convite, notou que sua veemência para que ela não fosse soou estranha, lançou uma ponta de desconfiança no rapaz quanto aos objetivos do jantar, e à tempo percebeu que aquele ponto da questão poderia pôr tudo a perder. Cedeu. Confiava, enfim, naquilo que seu pai lhe dissera, uma das lições daquela noite: o significado maior daquele jantar, seu maior sabor, só o perceberia quem estivesse possuído daquela fome apropriada; caso contrário, ou não o entenderia, ou não o toleraria.

Sentaram-se na sala, o vinho tinto foi servido juntamente com finas fatias do pão branco, especialmente preparado para a entrada. Um pão neutro, quase cru, com bem pouco sal, sem fermento, para preparar o paladar, limpando-o e depurando-o, para saber o vinho, e depois o prato principal.

Embora esse não fosse o objetivo, Stênio preparou uma salada de legumes, rica e variada, especialmente por causa da namorada do rapaz. O prato principal não deveria ter acompanhamentos!

Enquanto retornava à cozinha, Stênio informou que estavam com sorte, os primeiros passos do jantar aconteceram da melhor forma. Afinal, para o sucesso do jantar, não deveria escorrer, se perdendo, uma única gota de sangue!!

O rapaz, deixando sua namorada folheando um livro, chegou ao vão da porta da cozinha, quando pode ver aquela figurinha nua, completamente nua, sentadinha com as pernas dentro da pia e apoiado no mármore da bancada. Bem magro, com a pele moreno-escuro, com a coluna encurvada e de costas para o rapaz. Um pequeno movimento de sua cabecinha, e o rapaz pode ver os olhos grandes e quietos, distantes ou indiferentes, talvez os olhos de uma resignação infinita e inevitável.

O Stênio completando o que começou a explicar pouco antes, disse que as extremidades inferiores eram desprezadas, porém com golpes tão afiados que não permitissem qualquer perda líquida. Enquanto explicava, levantou as perninhas de dentro da pia, mostrando os cotos bem torneados. A figura se desequilibrou, caindo para trás, no que foi corrigido pelo Stênio. Nenhuma expressão a mais que pudesse denunciar aflição, medo, diante do que se lhe estava acontecendo. A figurinha não demonstrava ao menos curiosidade, esse traço tão marcante e presente nas crianças. Não. Nada.

Talvez o rapaz estivesse a pensar sobre isso. Ou, mais talvez, a atitude da figurinha estivesse provocando nele, sem se dar conta, apenas o mesmo leve mal estar causado pelos filhos de mendigos de rua, nada que lembrasse qualquer contato com um ser humano, nem mesmo com outro animal (os outros animais tem uma identidade preservada, definida, cão é cão, rato é rato, barata é barata, filho de mendigo não, nem chega a ser homem, nem outro animal. Quando muito, uma irritação logo dirigida contra as autoridades públicas por não tomarem providências diante daquele problema crescente, invasivo).

Stênio, naquele momento, se dedicava parcimoniosamente, a preparar os temperos, picando os tomates, pimentões, cebolas, o cheiro verde, tudo com tamanha técnica e maestria que, ao serem depositados no fundo do tacho de ferro, iam formando aos poucos uma massa brilhante e uniforme. O rapaz pode ver que pouca quantidade de temperos era usada. Por sobre a massa no fundo do tacho, o Stênio raspou noz moscada, moeu uns cinco grãos de pimenta do reino, e um pouco de estragão. Pronto. Passou a escorrer o azeite de oliva por todo o tacho, deixando o fio amarelo ouro dançar pela circunferência, apoiada no fogão. Nada de sal, para não esconder, não desnaturar o sabor do prato.

Como todo grande prato, um dos seus segredos era a simplicidade. O cozinheiro deixa que os ingredientes tenham liberdade de expressão. Para isso, não se deve complicar. Os sabores surgem, se impõem. Cabe ao cozinheiro coordená-los, harmonizá-los, dando primazia ao que deseja mostrar em primeira mão, ou ao contrário, construindo um equilíbrio de sabores. Mas tudo isso, mantendo-se a simplicidade.

Como que por brincadeira, ou distração, ingenuamente, enquanto se dirigia ao rapaz, e com isso chamando a si a atenção, o Stênio levou o fio amarelo ouro do azeite até o alto da cabeça da figurinha, fazendo leves movimentos com a lata e assim permitindo que o brilho se espalhasse por toda a superfície do corpinho. Quando então, repentinamente, assumiu atitude séria e magistral, cercando cada um dos seus movimentos de marcada teatralidade, quase dramaticidade, no que foi prontamente correspondido pelo rapaz.

O rapaz estava completamente hipnotizado na cena (sua namorada lhe chamou, tentando mostrar uma fotografia de uma revista, mas em vão). O rapaz já fazia parte integrante do prato do Stênio. Já não se tratava mais de apetite, de fome, de vontade de se alimentar, a sua própria pessoa estava sendo preparada no prato do Stênio. Como nos ritos de iniciação, em que nos momentos que precedem a revelação, ao contato com a verdade, o indivíduo perde sua identidade, se deixando desmanchar, permitindo e se preparando para que sua identidade possa ser superada, transcendida, evoluída.

Tudo estava correndo bem.

Stênio aumentou o fogo e, munido de uma grande colher de pau, foi mexendo lentamente o fundo do tacho. Um leve barulho surgiu, pequenas bolhas se espalharam na superfície do molho. Aos poucos, o creme avermelhado foi crescendo até predominar. As ondas de vapor levavam para todo o apartamento o cheiro do molho sendo depurado. Os eflúvios envolveram o Stênio e o rapaz, numa espécie de dança interior, uma tensão preparatória, parecendo um pulsar crescente. Ali não havia mais lugar para palavras, era a comunicação dos sentidos mais primitivos, ditando a verdade humana através daquele jantar.

Quando o cheiro do molho se tornou denso, uniforme, harmônico com sua textura e aspecto, o Stênio, com agilidade e firmeza, porém sem rudeza, levantou a figurinha segurando-o pelo tronco, com a mão esquerda, enquanto com a direito segurava ambas as perninhas próximo dos cotos, trazendo até o centro do tacho, mantendo por alguns instantes erguido por alguns centímetros, o que poderia lembrar um ritual de oferenda, mas que servia para que o calor penetrasse a figurinha e não houvesse um choque no contato com o molho. Respiração presa no momento crucial. As mãos se movimentando com destreza, deitando a parte inferior da figurinha, retirando a mão direita, por fim retirando também a esquerda. Tudo coube. Chegavam ao auge da preparação do prato! O rapaz tinha todo o seu corpo voltado para a cena, ligado no conjunto. O Stênio lentamente, com as mãos nas duas alças do tacho, o fez girar sobre si até que o rapaz pode ficar frente a frente com a figurinha, quase completamente encoberta no molho, e permanecendo com a mesma atitude, o mesmo semblante, nem uma lágrima na face, nem um brilho nos olhos denunciando alguma manifestação de dor, só os grande olhos fixos e resignados. Nem um pedido em seu olhar.

Esplêndido, não haveria outro termo! Lentamente a figurinha passava a ser cosida, transformando-se num caldo grosso e vivo, quase imperceptivelmente, sem morte, sem dor, assim como deve acontecer nas grandes conquistas, nas grandes vitórias, nas grandes destruições. Nada que leve a mácula da culpa e do remorso. Um prato verdadeiramente digno de um vencedor!

Que sirva de lição para o rapaz que se inicia no mundo dos humanos. Que incorpore em suas entranhas, não a carne e o sangue, mas a própria vida da figurinha, que lhe sirva de alimento nos passos, na escalada das conquistas, renovando os seus tecidos e dando forma à alma da figurinha.

Nos instantes que poderiam ter sido segundos ou horas, o caldo se fez homogêneo, viscoso, denso, marrom avermelhado, com um cheiro que poderia lembrar um guisado de cordeiro tenro, não fosse a leveza e extensão do seu aroma, ímpar, que já alimentava o rapaz antes mesmo de sorvê-lo, o que ocorreu pouco depois. O próprio Stênio, pôs um quase nada em sua tirrina, afinal o jantar fora preparado para o rapaz. A si, lhe bastava ter conseguido repetir a lição do seu pai, sentindo-se assim vitorioso.