O AMOR DO POETA

De repente pensei um poeta.

Como o personagem do conto de Hoffiman, um escritor nórdico, não lembro bem a nacionalidade. Reportei-me ao personagem, aluno do Dr. Copelius, que se apaixona ardorosamente pela filha do mestre. Olhava-a pela janela todas as noites, morava no outro lado da rua, e se encantara com os olhos vítreos da moça, o sorriso estampado na face, sempre, os gestos comedidos, a postura, tudo perfeitamente elaborado e estabelecido naquela criatura. A paixão começara justamente quando comprou um binóculo ou luneta nas mãos do professor que também vendia barômetros. O rapaz nunca mais teve sossego, corria pra janela e ficava a olhá-la completamente perdido de amor. Não mais conseguia pensar, aquela criatura, quase uma fotografia, estava pendurada na sua retina. E a paixão tornou-se febril, virou um amor desmedido. Tornara-se por esta razão um poeta dos mais refinados, dos versos mais cândidos, dos suspiros de enlevo, enfim o amor tocara-o. Escrevia todos os dias para ela, ou comentava os seus textos, falava empolgado como um enamorado, e ela “sempre” com o mesmo sorriso afivelado à face, respondia com um entusiasmo gelado – Parabéns! Encantada com tuas palavras, ou outro tipo de elogio no mesmo padrão. Entretanto, o convívio lítero sexual vai ganhando dimensões novas interagiram versos, fizeram duetos, tudo que normalmente um casal comum fariam... Todas as noites era aquele tormento, sentava diante da janela e derretia-se em desejos, suava copiosamente suas entranhas, satisfeito com aquela imagem, única, os lábios sorridentes da amada e mais nada. Mais nada mesmo, sua amada era como uma lenda, onírica, própria dos amores entre poetas, sua alma eram os versos que vez por outra enviava como resposta pra ele, e o incendiava, mas era uma alma em versos, aparentava vida, emoção, e creio que existia emoção, afinal isto é um atributo das almas, e só.

Desejava tê-la a todo custo com todo arrebatamento que o caracterizava e pôs-se a trabalhar nessa possibilidade. O mestre sabedor desse desejo correu para a realização do mesmo, queria ver a filha casada com alguém que a amasse muito. Combinaram uma festa na casa do professor, onde ele apresentaria a filha ao noivo e à sociedade. Foi o estopim para a explosão de alegrias do poeta. Convidou os amigos, preparou-se para este encontro como para a realização do seu único sonho.

E veio o dia da festa. Ornou-se como um rei, cintilava sua alegria por onde olhasse. Atravessou a rua, dirigiu-se à casa da sua amada, aquela que via através do binóculo, da janela do seu quarto. Antes a olhou como sempre fazia, e a viu no mesmo lugar, o mesmo sorriso, o olhar vítreo, como uma foto pendurada ante os seus olhos. O coração disparou, ficou sacudido, nunca esteve tão linda a sua amada, e naquele dia justamente lhe parecera tão estapafusiante que imaginou fosse pelo amor que sentia por ele. Correu para a casa do outro lado da rua, onde estava o seu amor. Atravessou a rua excitado, inquieto.

A festa foi um assombro, todos os colegas com suas namoradas, gente da sociedade e ela ali, pétrea como uma escultura, uma foto. Muita musica, comes e bebes, e ele ao lado, formal como se estivesse em formol, exibindo sua amada sorridente, sempre, como uma máscara. Chega ao grande momento, ela seria apresentada ao mundo naquele momento e se anunciaria o noivado bendito do poeta apaixonado. E o professor eloqüente discursa sobre a beleza do amor idealizado, sonhado, poético, onírico, do amor que está acima do amor carnal, um amor sublimado, amor realizado nas janelas da madrugada, suados em lençóis eqüidistantes, amor interior, sem preocupações estéticas de simpatia, desejos sim de carne, mas na sublimação e se derramou em palavras que justificavam o desapego ao corpo do outro no ato de amar, uma exortação ao onanismo, uma celebração a Onam. O poeta convicto das verdades proferidas pelo mestre só via beleza na moça, aliás, só ele via essa beleza. Aquele sorriso de Gioconda que ele via, era de uma frieza mórbida pra qualquer vivente que a olhasse, os olhos que o hipnotizava (era isso que estava acontecendo?) eram para todos, bolas de vidro, gudes, e os gestos polidos de madame, ninguém assim via, viam uma coisa mecânica, andróide, objeto não identificado.

Veio a dança e a linda moça do poeta bailou em seus braços, mexia-se graciosa ao som da música, sempre sorrindo, sempre. Ele nunca dançara tanto como naquela noite. E ela ali, impassível sem um suor, dançante e sorridente, olhos esbugalhados, pra ele de entusiasmo, para todos, bem, quem pode saber?

Aos poucos foram todos se afastando, a madrugada avançava e a festa chegara ao fim. Mas, a musa do poeta, aquela que também lhe escrevia versos tão intensos, explosivos, vomitados, que repleto de desejos de alcovas, de suadas noites amadas na distancia, na janela dos versos, ela continuava dançante, como um autômato, o sorriso sempre o mesmo, sem suores, sem cansaço sem nenhuma marca, nada fora do lugar, apenas o seu voltear continuo pelo salão, mesmo este estando vazio e sem música. Só o poeta não viu isto, só ele a sentia quente, humana. Não viu doutro jeito, nem mesmo quando a beijou com ardor, quando lhe suspendeu a saia e tocou-lhe a vulva... Ouviu o gemido, mas não havia umidade, não havia néctar, não havia outro cheiro sobre ela senão o de um perfume muito conhecido como afrodisíaco.

Conteve o toque, afinal era um amor Onírico, poético.

O poeta voltou para sua casa e se colocou novamente à janela, debulhou-se em orgasmos febris, sozinho, olhar fixo no sorriso dela. Dormiu ali sentado exausto, nu, babado de luxuria e solidão. Quando acordou não mais viu sua paixão à janela, e temeu. Correu ainda nu, atravessou a rua, desesperado e foi bater à porta da casa da amada. Para surpresa sua não havia ninguém, nenhum vestígio de festa. Apenas um bilhete, como um comentário sob um poema...

E saiu pelas ruas nu, gritando o nome da amada, sua lenda, sua foto cristalizada em suas pálpebras... Declamava versos pungentes de dor, de sofrimentos, de amor sofrido, de angustiosas noites insones, de orgasmos desejados...

Só ele não viu quem era realmente sua amada, mas isso não importava...