SAPATO AMARELO

SAPATO AMARELO

Dorinha, saindo do banho, deu com o sapato amarelo no escritório.

- Estevão, Estevão e ele, nada, no maior sono.

- Acorda, Estevão, o que significa isso? Ela balançava o sapato amarelo na cara do namorado, furiosa.

- Que foi?

- O que significa isso?

- Um sapato amarelo, não é?

- Você é muito cachorro! Quem é a dona desse sapato? Como é que ele veio parar no seu escritório? - ela se esgüelava.

- Não tenho a menor idéia - retrucou ele com cara de espanto.

- Ah, não. Essa não. Vai me dizer que ele veio parar aqui sozinho?

A discussão durou horas. Ela acusando Estevão de mulherengo, sem vergonha e ele sem saber o que dizer, o que fazer. Se defender de quê, se não tinha aprontado nada?

Foi com esse clima que ela se foi definitivamente, batendo a porta. Sozinho, ele se pergunta: quem é a dona desse sapato amarelo? A Cristina, nunca a trouxe para sua casa, a Laurinha não ia lá há semanas. A quem então pertencia aquele sapato?

Como já estava meio cheio da Dorinha, era eu caso há anos, Estevão resolveu assumir. Sim, este sapato é da... da moça com quem tenho saído. Mas assumir o quê, diabos? Este sapato é da... da... precisava arranjar um nome para a dona do sapato, qualquer um, desde que de mulher bonita.

- Dorinha, vou te confessar, aquele sapato é da Karina - narrou uma história detalhada. Um dia, num restaurante lá na cidade... depois fomos... - inventou uma Karina, uma moça de gosto exótico, pelo sapato amarelo..., um romance com ela e ponto final no caso Dorinha.

Como estava inventando uma Karina, resolveu que ela seria especial, ia caprichar na produção. Rosto da Farah Fawcett, tudo - cabelos, olhos, boca -, ar sexy da Bety Faria, corpo escultural - melhor do que o da Monique Evans e foi por aí.

Fez uma planilha de atributos e critérios. Quando à-toa, ficava concebendo a sua Karina, aprimorando, a nível de detalhes, seu modelo de mulher ideal. Ficou obcecado pela idéia - diga-se de passagem, Estevão tinha uns envolvimentos meio especiais. Já se apaixonara por dois manequins de vitrines ao mesmo tempo, o que só passou quando cismou que estava sentindo um chamamento de uma sereia...

Uma noite, dona Alzira, sua faxineira, falou:

- Dr. Estevão, ligaram há pouco para o senhor.

- Deixaram recado?

- Sim, era uma tal Karina. Disse que ligaria mais tarde.

- Quem? Cristina?

- Não, senhor, Karina!

- Karina?

- É. Por que a cara de espanto?

Estevão não respondeu. Correu para o sapato amarelo - a sua única ligação com aquela espécie de fada. Só podia estar sonhando. Deitou-se na cama, fechou os olhos e pensou: "Bem, agora vou acordar e as coisas vão voltar ao normal."

Abriu os olhos e tudo continuava igual. Não era sonho - Karina ligou, que coincidência mais estranha.

Ele estava perdendo o juízo. Passou a ser visto falando sozinho na rua, rindo do nada e gesticulando para ninguém.

Mal chegava em casa, a primeira coisa que fazia era olhar e acariciar o sapato amarelo da Karina.

A situação se estendia por cerca de um mês, quando um dia, ao procurar seu objeto de adoração, não encontrou.

- Dona Alzira, onde está o sapato amarelo?

- Hoje a tarde veio aqui aquela moça que ligou um dia para o senhor, Karina, e levou o sapato. É dela. Muito bonita, parecidíssima com uma artista americana que aparece em filmes na televisão - uma daquelas que trabalhava nas "Panteras". Tem o jeitão todo da Bety Faria, muito sexy. Não entendi bem o que ela falou para avisar ao senhor. Foi alguma coisa de desaparecimento, nunca mais, partida para... sei lá onde... outro mundo? eu hein!

À noite batem à porta. Estevão corre para atender, ansioso.

- Oi, resolvi perdoar você - era Dorinha se insinuando para voltarem, estava com medo da AIDS.

Meio desajeitados, beijaram-se sem ênfase, sem sensação, mas com um certo afeto - ele com o pensamento longe, pensando na Karina...

E os dias voltaram a ser iguais. Igual a anteontem, a ontem, igual a hoje, igual a amanhã e a depois de amanhã, isto até o seu próximo envolvimento de características fantásticas.

(ABRIL/1990 - do livro Sexo, Mulheres e Ecologia)