Sabedoria reptílica

Iniciava-se uma tarde de domingo com muito calor. A madrugada fora chuvosa, e aquelas goteiras das quais eu só lembrava quando caía um dilúvio tiraram um pouco do meu sono.

...Como é que pode chover tanto de madrugada e agora esse esse sol vem queimando feito brasa?

Perguntava a mim mesmo, enquanto andava descalço pelo pequeno gramado ainda molhado.

Quando olhei para o muro, vi um calango enorme parado. Fui chegando mais perto, procurando observá-lo melhor, e por incrível que pareça, o mesmo não se abalou com a minha presença e continuou imóvel.

...É bichão, há alguns anos atrás eu arrancaria seu rabo com um tiro de chumbinho...

Pensava alto enquanto fumava e observava o lagarto mais de perto.

_ Eu sei. Você também era mais sincero naquela época.

Fiquei gelado, aquelas poucas palavras pareceram ter sido sopradas bem no meu ouvido. Fiquei todo arrepiado, paralisei e não percebi que o toco do cigarro já queimava meus dedos. Deu vontade de correr para dentro de casa.

Olhei para o calango e ele também me olhava, balançava a cabecinha parecendo fazer um sinal de afirmação.

Ousei perguntar:

_ Foi você quem acabou de dizer isso?

E o calango balançava a cabecinha para cima e para baixo.

...Deve ser esse sol quente na cabeça, vou tomar uma água, pensei.

Quando fui saindo outro sopro em meus ouvidos, acompanhado de palavras:

_ Você não consegue mais se encontrar, não é?

Olhava para aquele lagarto, que poderia ser esmagado com minhas próprias mãos e por incrível que pareça, ficava com medo.

_ Por que você está me dizendo essas coisas?

Perguntava incrédulo.

E segundos depois de ficar olhando a cabeça do lagarto balançando, vinha uma resposta.

_ Hoje você também é um réptil. Espera sua vez, é frio...olha manso, mas queima por dentro. Finge, engana. E acha isso normal.

O que você sabe de mim, seu escamoso? Se quer falar, fale algo concreto.

_ Não preciso falar nada, basta olhar para trás e ver a estrada que você trilhou. Toda vez que você foi enganado, resolveu enganar outra pessoa para não amargar prejuízo. Lembra daquele seu colega, para quem você ofereceu a primeira dose de pinga? Hoje ele é alcoólatra e não consegue largar o vício. O que você já fez de bom para ele, além de apresentar-lhe a bebida?

..."Puta que pariu", não é que esse bicho tem razão.

_Olha calango, eu não sou falso e nem mentiroso. Nunca matei e nem roubei. Já bebi de tudo e até experimentei alguns tipos de droga, mas nunca coloquei nada na boca de ninguém. Não foi eu quem obrigou ou incentivou aquele cara a beber até se tornar um ébrio.

...Que coisa estranha. Depois de 35 anos de vida, estou aqui, justificando minhas atitudes para um calango de jardim.

_Mesmo que você tentasse mil anos, nada justificaria.

...Pronto, além de conversar é adivinho.

De repente, minha mulher grita de dentro de casa:

_Benhêêêêê, vem pegar o bebê que eu tenho que tomar banho.

Parecendo ter acordado de um transe, olhei para o muro e o lagarto subiu rapidinho, passou o corpo para o outro lado e o rabo foi sumindo devagar.

_É calango, pode ter medo porque ela é brava mesmo. Você me chamou de réptil, mas ainda não conheceu a caninana. Volte outra hora que a gente termina essa conversa.

Tchau.

BORGHA
Enviado por BORGHA em 20/12/2010
Reeditado em 19/01/2011
Código do texto: T2681980
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