Ciclo

Ciclo

Chegaram os primeiros ventos de outono. A maioria das folhas já esperava com ansiedade o momento do vôo. Não sabiam o destino da viagem, nem quanto tempo duraria, nem o que as aguardava no fim do caminho. Não sabiam, sequer, o momento da partida. Só que poderia ser a qualquer instante.

A cada rajada de vento, uma grande quantidade delas se desprendia do fino e frágil ramo que as mantinha presas às árvores. Eufóricas, as mais próximas se despediam. Outras se recolhiam ao silêncio de passageiro de avião no primeiro vôo.

Ao final do outono, já quase não se via qualquer folha. Viria o inverno para as árvores entrarem em sono profundo. Assim, evitariam perda da energia necessária ao final da estação e início da primavera.

Todas as árvores ficaram nuas. Todas menos uma. No ponto mais alto do vale, uma grande árvore, acostumada a proteger os animais com a sua frondosa copa e alimentá-los com saborosos frutos, a produzir grande quantidade de néctar para as centenas de colméias ao seu redor, pensou ter finalizado a tarefa de monitorar a saída de suas folhas no vôo de aventura pela vida. Mas ela estava enganada. No galho mais alto uma folha permanecia presa. Uma única folha em todo o vale.

Os dias tornaram-se mais frios. As noites, mais escuras e congelantes, só eram cortadas pelo assobio do vento que insistia em arrancar a última folha ainda presa a uma árvore naquele fim de estação.

A folhinha já havia resistido a terríveis tempestades. Uma forte ventania lançou sobre ela um grande galho arrancado de uma árvore vizinha. Outros galhos foram quebrados à sua volta. Atingida em cheio, ela ficou amassada e rasgada, mas permaneceu presa ao esquálido pecíolo.

Aquela insistência em desafiar o ciclo da vida começava a preocupar as outras árvores. Resolveram, fazer uma conversa com a teimosinha para descobrirem o que estava acontecendo. Chamaram a folha e perguntaram a ela por que não havia se soltado para voar com as outras. A folha esperou o máximo de silêncio e atenção para depois responder.

– Esta não é a minha primeira estação de outono. Já enfrentei coisas piores. Eu fui a primeira folha a brotar nesta árvore. Logo depois do meu nascimento esta região passou por uma longa seca. O orvalho era a nossa água. As raízes não tinham o que buscar na terra rachada. Foi a luta pela sobrevivência que me ensinou a ter apego pela vida. Quando na terra faltavam os ingredientes, vi este ramo que ainda me segura encolher-se todo para me ceder a própria seiva. Prometi a mim mesma que enquanto fosse possível eu estaria aqui para contribuir com a vida.

- Eu não nasci para ser folha de uma temporada. Vocês não sabem, mas sempre me escondi da debandada. Estive aqui por outonos e invernos a fio, acalmando e encorajando as minhas companheiras para realizarem a passagem. Chorei quando perdi aquelas que ficaram mais perto de mim e sorri quando percebi que de alguma forma elas voltavam, mesmo sem saber.

- Agora vou me desgarrar. Só quis aproveitar o inverno para ficar mais um pouco, sem ocupar o lugar de ninguém. Tudo pelo amor que tenho pela vida. Logo estarei de volta para viver, de novo, tudo com a mesma intensidade.

- Podem contar a minha história, mas não se admirem. Conheço duas folhas que vieram muito antes de mim e continuam por aí. Foram elas que me ensinaram a prolongar o ciclo.

Sei que devo ir agora. Quero chegar a tempo de me multiplicar, ainda para os próximos brotos.

- Até já!

Miguel Canguçu
Enviado por Miguel Canguçu em 19/02/2011
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