Roteiro para um despertar definitivo.

Nunca fui muito apegado aos detalhes, mas, aquela gota de um liquido escuro que descia vagarosamente pela parede branca estava começando a me incomodar... A primeira vez que a vi, nem pensei, peguei um pedaço de papel e limpei sem medo. No dia seguinte lá estava ela novamente no mesmo lugar, descendo milímetros por hora, violando a pureza da parede com sua obscuridade. Claro que não me importei, deixei lá mesmo e fui trabalhar, mas, quando voltei para casa a parede estava preta, e uma impressionante gota branca escorria do mesmo lugar. Corri buscar um lencinho preto, mas, quando toquei na pequena gota branca, o lenço tornou-se azul. Antes que eu pudesse perceber, meu lenço manchava de vermelho a parede nos locais onde eu o esfregava. Não fazia sentido, mas, ao perceber que poderia desenhar com o lenço, simplesmente deixei meu braço guiá-lo a deslizar pela grande tela negra, onde esbocei um enorme olho vermelho cintilante.

Satisfeito, afastei-me para ver melhor minha obra, quando então o olho desenhado ganhou movimento e se fechou. Com o susto, meus olhos abriram e descobri que eu estava dormindo. Acordei com aquela antiga sensação de já ter vivido aquilo antes e deparei-me com minha antiga parede amarela e uma estranha e misteriosa gota verde que escorria dela...

Como no sonho, o papel estava lá, novo outra vez, agora era rosa. A gota descia vagarosamente, implorando para que eu a limpasse, lagrimas de tinta precisando do consolo de um pintor. Eu ainda lembrava do sonho anterior, então fui trabalhar para tentar esquecer. Voltei para casa no fim do dia e encontrei uma parede verde, com a mesma gota amarela que sempre escorreu de lá. Usei o lenço que um dia foi um papel, desenhei um lindo sol branco, que quando me afastei se pôs no horizonte, escurecendo a sala e me fazendo novamente abrir os olhos.

Eu estava dormindo. Acordei com a sensação de estava preso em uma repetição infinita, lembrei de centenas de desenhos em centenas de paredes diferentes, milhares de dias exatamente iguais, lutando de forma irracional contra uma misera gota de tinta que insistia em não fazer mau a ninguém.

Não fui trabalhar. Sentei-me em frente a parede prateada e contemplei durante todo o dia o vagaroso escorrer daquela gota de ouro. A gota fez uma linha reta do centro da parede até quase o chão. O lenço parecia brilhar, tenho certeza de que a pouco tempo atrás era apenas um pedaço de papel. A gota escorre mais um pouco, em todos os momentos que consigo lembrar, nunca a deixei chegar até a este ponto, não poderia nem mesmo imaginar o que iria acontecer quando ela tocasse o chão. Apenas esperei.

Aconteceu! A gota tocou o chão, foi lindo, senti pela primeira vez em tantos milênios de repetição a antiga liberdade vibrar em meu peito, eu não era mais escravo daquela situação, não haviam mais motivos para impedir a natureza fluída da tinta em escorrer pela parede, não precisava mais ir para aquele trabalho onde esqueço de tudo o que já fiz! Uma lágrima de felicidade brotou de meus olhos, acho que era esse o objetivo do lenço o tempo todo, finalmente entendi por que ele estava lá. Sequei as lágrimas de meus olhos e percebi que por onde o lenço passava, meu corpo desaparecia. Com prazer apaguei-me por completo. Abri os olhos que não tinha mais e descobri que eu sempre fui uma gota de tinta escorrendo em uma parede, descobri que cada milimetro que escorro, por mais parecido que fosse com o milimetro anterior era um milimetro diferente, mais próximo do chão, meu objetivo. Lembro-me de milhares de escorridas onde simplesmente alguém me limpou, desenhou comigo e acordou novamente à minha frente. Centenas de outras vezes como esta em que estou agora, onde alguém me observa descer lentamente. Eu toco o chão no fim do dia e liberto mais um cativo. Acordo no centro de outra parede. Ocorre-me pela primeira vez que ao invés de descer, eu devesse tentar subir. Subo pela parede! Contrario as leis que me prendiam. Nunca antes toquei o teto. Subir é muito mais difícil, porém, infinitamente mais prazeroso. O velho cativo não se atreveria a limpar uma gota que desafia sua compreensão. Simultaneamente em milhares de universos paralelos eu desafio todas as paredes, quebro as rotinas e leis que as regem, liberto as mentes que a tanto tempo viviam meu mesmo pesadelo líquido. Toquei o teto, mas, diferente do chão, seu objetivo não era ser alcançado, sentia em meu intimo que o teto precisava ser ultrapassado! Feliz então, infiltrei-me nele, evaporei-me com o verdadeiro sol que nunca antes pude observar e, chovi sobre mentes que hoje precisavam de mim. Acertei você.

=NuNuNO==

(Que não devia escrever nesses dias estranhos, mas...)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 26/07/2011
Código do texto: T3118932
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