BARATAS

BARATAS

O natal se aproximava. As pessoas estavam enternecidas com o espírito cristão que envolvia a sociedade aracajuana. As campanhas do natal sem fome, e do natal com roupa foram um sucesso. “É muito importante as pessoas participarem da solidariedade”. Asseverou o Bispo de Aracaju Dom Cosmerino de Souza Neto. Aracaju crescia feito uma mocinha. Ora, ela se estendia rumo ao sul, ora ela esticava para cima como que quisesse o seu lugar de cidade grande. Como as demais cidades brasileiras, Aracaju tem suas mazelas. Dizem os historiadores que esse problema é herança da colonização e da forma como foram fundadas as cidades do Brasil.

- Chega mulher! Chega!

- O que foi vó?

- Olha a TV! O sul está se desmanchando. A água encheu tudo!

- Graças a Deus que Aracaju não tem dessas coisas! Disse dona Dilza.

Dona Dilza conhecia todo mundo no “Costa e Silva” – Um bairro de classe média baixa de Aracaju. No Costa e Silva as coisas ainda estavam por acabar; bem diferente das coisas da zona sul. No Costa e Silva, o esgoto estava por acabar, no Costa e Silva as calçadas estavam por acabar, as ruas e os becos estavam por acabar. O que nunca acabava era a fé do povo.

- Graças a Deus que tenho minha casinha no Costa e Silva.

- Num é mulher? Já pensou se a gente morasse na “Terra dura?”

- Nem pensar! Dona Dilza bateu a mão na boca três vezes ao concluir seu comentário.

Na Avenida Osvaldo Aranha, na altura da entrada do Costa e Silva, estava em pé, próximo a uma pequena ponte que dar acesso ao emaranhado de ruelas, um homem mendigo, um João ninguém, totalmente desconhecido. O coitado não parava de dizer: “Vocês vão ver! Roubaram minha mulher e a esconderam aí dentro no Costa e Silva. Pois, vai chover antes do natal e vai todo mundo morrer!”. O homem repetia a mesma coisa todos os dias e noites em que ele fez ponto ali. O homem sumiu. Até hoje não se sabe seu paradeiro.

Maria filha de Judite, muito amiga de Dilza a contou do ocorrido. “Tem um profeta na Osvaldo Aranha. Ele diz que Deus vai castigar o Costa e Silva”. Dilza riu muito e depois disse: “Nunca se quer choveu em dezembro em Aracaju. Isso é coisa de cheira cola. A conversa foi esquecida e a vida continuou para quem podia pagar suas contas.

No Costa e Silva a comunidade, de forma quase que geral, era muito prestativa. Embora Aracaju fosse uma cidade com quase 600 mil habitantes, você ainda comprava na “caderneta”. As pessoas compravam fiado para pagar no final do mês. Todo o bairro era cheio de mercearias e botecos com mesa de sinuca e televisão com karaokê. Nos finais de semana as pessoas gostavam de tomar uma, e comer a maravilhosa “moqueca de sururu” – um prato muito estimado pela população de Aracaju. Parecia uma imensa orquestra. Em cada esquina da cidade, em cada bar, em cada casa havia música e pessoas se divertindo. Um suíço hospedado no Siqueira Campos descreveu Aracaju como uma cidade em festa – uma cidade polifônica.

- O que mais me admira no Brasil é essa alegria. Disse o gringo coçando a barba rala.

- Pois é, meu caro. Nosso povo é muito alegre e tornamos a vida melhor de ser vivida. Disse Osnário, um professor da rede pública.

O gringo desapareceu Brasil a fora. De vez em quando ele manda um e-mail com fotos para os amigos que ele fez na pracinha do Siqueira. Dizem que o cara arranjou uma namorada e está vivendo no Maranhão.

- Dilza! Dilza!

- O que foi mulher? Perguntou a mulher a sua colega pela mureta do quintal. O que separava a casa de Dilza da de sua melhor amiga era uma mureta de cimento e blocos. Logo atrás passava o canal. As duas famílias não suportavam o cheiro de esgoto e os pernilongos durante a noite.

- Sabe quem vai morar na baixada?

- Não!

- A viúva de Raimundo do ferro velho. Estão se mudando agora.

- Graças a Deus mulher! Vamos ter mais uma sofrida da vida para jogar buraco no sábado á noite. Concluiu Dilza.

A nova família do Costa e Silva trazia uma marca triste de sofrimento e dor. Isso fez com que mãe e filha se unissem como se fossem uma corda de duas dobras. Mariana era uma adolescente, filha de Natividade – a mulher de Raimundo do ferro velho.

- Mãe! A casa é boa mãe! Disse Mariana encantada com a nova casa.

- É minha filha. Graças a Deus, e a seu pai que nos deixou um dinheirinho, senão estávamos no meio da rua.

- Da rua não mãe! No meio da Osvaldo Aranha!

- Quem te disse isso?

- Ninguém! Os mendigos vão todos para lá. Por que mãe, por quê?

- Sei lá Mariana. Todos vão para lá, talvez por que tem muita gente, fica mais fácil ter uma esmola.

Enquanto as duas desfaziam os pacotes, e procurando arrumar a nova casa com uma nova decoração, a televisão anunciava as tragédias do sul do país.

“Niterói debaixo d’água: Mais de trinta casas soterradas. Três Pessoas faleceram no local”.

“Nova Friburgo chora seus filhos soterrados: A Defesa Civil estima mais de vinte mortes em Nova Friburgo!”

“Desabamento e morte nos morros de Salvador”.

Natividade e Mariana arrumam seu novo lar. As duas estavam muito alegres com a nova casa. O bairro não era ruim, e a casa não era de se jogar fora. As duas desfizeram os pacotes e a televisão anunciava o fim do mundo no Rio de Janeiro.

- Mãe, por que Deus deixa as pessoas morreram nas enchentes?

- Não sei minha filha! Mas, acredito que Ele sabe o que faz!

Em pouco tempo Natividade estava entrosada com os vizinhos. Mariana brincava com suas novas colegas. A vida seguia seu curso normal.

Em uma manhã de sábado, o dia nasceu cinzento. O tempo não ventava um instante. O povo da cidade sentia que estava em uma panela fervendo. O céu não tinha ar; era só vapor e mormaço naquela manhã do mês de dezembro. As mulheres do Costa e Silva aproveitaram o calor para lavarem roupa mesmo com o céu nublado. As nuvens não adiantavam de nada. A sombra parecia mais uma panela de pressão. Os noticiários avisavam que podia chover naquele dia a qualquer instante. Mas, não choveu aquele sábado, nem no domingo. A massa de água que tornava o céu escuro permanecia parada sobre a menina do Nordeste. Segunda feira chega e com ela a efervescência do comércio aracajuano. As ruas ficam lotadas de carro e de pessoas vindas das mais diversas partes do estado. A massa humana ocupa as ruas em busca do pão de cada dia – esta é Aracaju, e assim deve ser em toda parte do Brasil.

Mariana brinca com suas colegas no quintal de sua casa. A brincadeira estava animada até que Lucinha joga, sem querer, a boneca de Mariana por cima do muro dos fundos. A boneca cai no canal que passava no fundo das casas. Mariana pega uma cadeira para ver sua boneca.

- Mãe, mãe, venha aqui ver!

- O que Mariana?

- Veja! Tanta barata!

- O que menina?

- Baratas!

As baratas estavam mudando de morada. As pessoas foram para cima dos muros para ver as baratas saírem dos bueiros e buracos espalhados pela área. Elas saíam ao mesmo tempo formando um monte que depois se desfazia quando elas corriam em uma só direção – A Osvaldo Aranha. O povo do Costa e Silva nunca tinha visto tanta barata ao mesmo tempo. O estranho é que elas estavam apressadas e determinadas a deixarem o lugar.

- Mãe, até as baratas vão para a Avenida Osvaldo Aranha?

- Num sei Mariana! Estou sem entender! Deve ser o mesmo que aconteceu no Siqueira. As aranhas invadiram as casas próximas a Leste.

- E foi mãe?

- Foi.

- Mãe a Osvaldo Aranha fica lá em cima, não é?

- É.

A Avenida Osvaldo Aranha ficava em um nível mais alto de que a rua das casas onde Natividade e sua filha Mariana moravam. As baratas são sabias e diligentes. Quando elas sentem que algo está errado, elas fazem o que deve ser feito. Mas, isso é pensamento de baratas. Apesar do calor daquela segunda feira as pessoas cumpriram a rotina do dia normalmente. No final do dia foram beber a loirinha. Nesse horário, Aracaju se transforma. Existe um glamour na cidade. As pessoas se encontram com as outras para conversarem nos shoppings, nos bares e botecos espalhados por toda a cidade. É uma coisa tão agradável que as pessoas perdem a noção do tempo.

- Puxa! Minha mulher vai me matar! Disse o PM Freitas.

- Rapaz! Relaxa! Já tá ferrado mesmo! Completou o raciocínio Eduardo, funcionário do IML.

Os dois continuaram a conversa até as dez horas. A noite de Aracaju estava quente. O abafado do dia não havia dado uma trégua. Os rapazes se separaram cada com seu destino. O PM para casa, no bairro Costa e Silva, e Eduardo de volta para o necrotério. Freitas não conhecia sua nova vizinha, dona Natividade. Esta ficou viúva cedo. Vivia muito só, e fazia muito que ela não tinha um homem. Mariana dormia sono profundo quando estoura o transformador da rua. Natividade corre para a porta onde estavam outras pessoas. Entre elas o PM Freitas.

- Meu Deus! Que houve?

- Foi o transformador! Uma voz grossa responde a dona Natividade.

- E o que é isso?

- É aquele objeto pendurado no poste!

- Sei, vejo! Mas, menino como é que isso acontece?

- Deve ter sido o calor. Fez quase quarenta hoje. Parece que o som da palavra hoje fez Natividade se lembrar que deixou Mariana dentro de casa no escuro. Ela corre para dentro de casa, e o soldado Freitas fica em pé defronte ao portão da casa. As pessoas mataram a curiosidade, por isso voltaram para suas casas, e Freitas permanece na rua. Dona Natividade acende algumas velas e sai de casa novamente para fechar o portão. Quando ela se aproxima dele, percebe que havia um homem ali.

- É você? Onde estão as pessoas?

- Já foram. Eu acho que vou também. Um pingo d’água cai na cabeça de Freitas. Ele passa a mão e sorri para Natividade. Esta lhe responde o sorriso. Natividade toma o rumo de dentro de casa; um pingo d’água cai em sua testa. Ela sorri e entra se juntando a sua amada filha.

Freitas ficou com a imagem de Natividade em sua mente. Sua esposa dormia quando o soldado se levanta um pouco ansioso. Ele sentia vontade de voltar à casa da vizinha, nem que fosse para dar uma olhadinha. “Rapaz que coroa atraente!” Sua mente repetia isso o tempo inteiro. Tornou-se uma obsessão. “Rapaz que coroa bonita!” Seu pensamento ganhou força fazendo-o voltar à casa de dona Natividade. Ele bate no portão de ferro com uma pedra pequena. Repete o feito mais uma vez. Depois, novamente e novamente. A cada tentativa a ansiedade da mulher abrir a porta era grande, contudo, sua mulher estava, bem ali, na outra casa. Freitas cobra o juízo e toma a direção de sua casa de ombros caídos. A porta da casa de Natividade geme baixinho. O coração de Freitas estava certo.

O quarto de Mariana ficava na frente da casa. Dona Natividade foi para o quintal onde havia uma cobertura e uma rede cearense. O casal ficou ali, despreocupadamente, até ser despertado pelo o som de um leve chuvisco que caía nas telhas. Natividade acendeu uma vela para procurar sua peça íntima, e se depara com um monte de baratas vivas que saíam determinadas do bueiro do fundo de sua residência. Freitas ficou assustado com tantas baratas ao mesmo tempo e começou a espantá-las. Quanto mais o homem mexia, mais baratas apareciam.

- Mulher chame, amanhã, a defesa civil!

- Eles tiram as baratas? Perguntou a senhora do ferro velho.

- Sim, basta fazer a denúncia. Eles vêm imediatamente.

Os dois conversaram até perto das três. A chuva havia ficado mais forte; Freitas temia que sua mulher acordasse e notasse sua ausência e se retirou. Natividade voltou para seu quarto com uma música em sua mente. Fazia muito tempo que a pobre mulher não sentia a vida tão viva.

- Mãe! Mãe! A casa está cheia de baratas!

- O que foi menina! Fale mais alto! A chuva ficara forte que as duas mal conseguiam se ouvir.

- Mãe! As baratas tomaram a casa toda! Tem um monte de baratas por toda a casa. De fato, a quantidade de baratas havia aumentado consideravelmente. À proporção que a chuva aumentava, mais baratas desesperadas e agitadas apareciam. Mãe e filha se empenham na missão de livrar sua casa das baratas. Com álcool e fósforo nas mãos elas enfrentavam os insetos até que ouviram uma explosão abafada vindo das casas mais altas. A rua era quase uma ladeira que terminava no canal. Logo em seguida outra explosão e agora o som de água. As duas correm para pôr os móveis em locais altos. A reação foi quase instintual. As duas mulheres ficaram com muito medo; nada podiam ouvir das outras casas. Não sabiam o que estava acontecendo. A chuva aumentava ainda mais. E a água dentro de casa também. Muitas baratas boiavam mortas na água suja corrente. Seu cheiro era fétido. O cheiro das baratas pode ficar em seu nariz por muito tempo, mas, o cheiro da água do canal ninguém esquece!

Aracaju estava debaixo de uma bomba d’água. A massa de água decidiu cair de uma só vez. Os córregos da cidade inundaram, a maré aumentou fazendo os canais vomitarem suas águas. Uma enchente sem precedentes na história de Aracaju estava se configurando. Freitas percebe o perigo e pede sua mulher para ir à casa de sua mãe. Quando o casal decide sair de casa era tarde demais. Ninguém mais podia usar as vias públicas. Postes caídos, fios elétricos vivos, bueiros arrebentados, redemoinhos em toda parte. A cena era aterradora. A água descia em direção as casas à margem do canal que transbordava seu conteúdo letal. A primeira casa caiu, a segunda, a terceira, finalmente a casa de Natividade. As duas ficaram em baixo de um pedaço de laje. Parecia um milagre: “Natividade, eu vou chamar ajuda!” Disse Freitas. Não houve respostas.

- Mãe! Mãe!

- Fique quieta Mariana, em breve vão nos pegar! Tenha fé em Deus!

- Mãe! Não sinto mais as pernas!

- Menina, menina, espere mais um pouco!

A água subiu e cobriu toda a margem do canal. Freitas voltou com os bombeiros, mas, era muito tarde. Morreram Mariana, Natividade, e um mendigo que dormia no fundo das casas beirando o canal. As águas duraram três dias para baixar. Acharam os corpos de mãos dadas, mãe e filha. O mendigo foi levado para o necrotério ao lado das duas. Dizem que seu ventre ao ser aberto revelou-se estar cheio de baratas.

Após a enchente do Costa e Silva nenhuma providência foi tomada. As coisas estão como sempre foram. Os mendigos vão para a Avenida Osvaldo Aranha, e se alguma barata resolve correr para lá. As pessoas olham para as nuvens...

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 23/12/2011
Reeditado em 21/12/2019
Código do texto: T3402908
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