O dia em que fui a Rainha

(Maristela Scheuer Deves)

Aquele sempre tinha sido o meu sonho. Eu, uma escritora iniciante, tinha me tornado, do dia para a noite, a maior escritora de todos os tempos. Não, isso não se devia ao fato de os leitores terem finalmente descoberto meu talento, ou de eu ter criado um personagem incrivelmente cativante. Era tudo muito mais simples e, ao mesmo tempo, muito mais complexo. Simplesmente, eu havia acordado na pele da escritora que eu mais admirava.

Não me perguntem como isso aconteceu. Eu só sei que abri os olhos, sentindo o sol entrar pelas cortinas do quarto, e estranhei não ter ouvido o despertador do celular tocar. Droga, devia estar atrasada para o trabalho, ia levar um sermão do chefe outra vez. Quando coloquei os pés no chão e olhei ao redor, no entanto, vi que algo não estava certo. O celular não apenas não despertara, ele também não estava na mesinha de cabeceira. Aliás, a própria mesinha de cabeceira não era como deveria ser. Nem a cama, ou a penteadeira, ou a minha escrivaninha. Tudo estava diferente. Caminhei em direção à nova penteadeira (na verdade, à velha penteadeira, uma vez que ela era obviamente uma antiguidade que substituíra o modelo moderno que estava ali na noite anterior) e parei, agora aterrorizada: quem era aquela mulher refletida no espelho emoldurado? Será que eu envelhecera do dia para a noite?

Para espantar o medo, decidi que estava sonhando. Com isso em mente, aproximei-me mais do espelho. A mulher que me encarava de lá tinha algumas décadas a mais do que eu, talvez uns cinquenta anos. Também vestia um antiquado pijama de calças e mangas compridas. Examinei-me, e comprovei que eu vestia a mesma coisa. Mexi um braço, ela também mexeu. Era eu, sem dúvida. Achei seu rosto de alguma forma familiar, mas não conseguia lembrar-me de onde. Com certeza, não se parecia com minha mãe, nem com minha avó.

"Vou lavar o rosto, daí acordo e paro de ver coisas estranhas", murmurei para mim mesma, e segui até o banheiro - que, claro, também não ficava anexo ao quarto, como eu me lembrava, mas do outro lado do corredor. Quando olhei-me no espelho do banheiro, entretanto, o mesmo rosto me encarava. O que estaria acontecendo? Teria eu dormido não sete ou oito horas, mas vinte anos? Ou estaria com amnésia, esquecendo-me dos anos recentes e imaginando que estava ainda na juventude?

Não, não podia ser. Lembrava-me muito bem não só de mim mesma, mas da casa, do quarto, das roupas que eu usava. Se eu tinha esquecido os anos recentes, como é que tudo ao meu redor parecia mais antiquado do que eu me lembrava? Voltei ao quarto, resolvida a investigar e resolver aquele mistério. Até meus passos estavam diferentes, percebia agora, cada vez mais apavorada.

Dirigi-me à minha escrivaninha. Queria consultar a agenda e os diários que eu sempre mantinha. Assim, ao menos, teria a data daquele dia tão estranho, e que eu já não tinha mais certeza de qual era. Para minha surpresa (mais uma!), vi sobre o móvel de madeira escura um jornal todo em inglês. O que mais chamou-me a atenção, porém, foi a data: janeiro de 1942, e o jornal parecia novinho em folha. Mas como, se eu nascera em 1975?

Vi então o meu diário ali ao lado, exceto que aquele não era o meu diário — que novidade, disse para mim mesma, ironicamente. Sentei na cadeira que não era a minha, e abri o diário que não era o meu, sentindo-me um pouco como se estivesse invadindo a privacidade de outra pessoa. Mas eu precisava entender o que estava acontecendo!

Quando vi a letra na primeira página do diário, senti-me gelar novamente. Eu conhecia aquela letra, conhecia-a tão bem como se fosse a minha. Ou melhor, conhecia aquela assinatura no pé da página, a mesma que eu vira impressa na capa de tantos livros... Com uma ideia a brotar na minha mente, peguei uma caneta-tinteiro ao lado e uma folha de mata-borrão que estava por ali, e deixei minha mão rabiscar livremente. Sem surpresa desta vez, olhei para o papel e li a assinatura que acabara de produzir: Agatha Christie.

Voltei minha atenção para o diário em minha frente, que não era um diário convencional, mas um caderno cheio de rabiscos, histórias, trechos de livros que eu conhecia tão bem. Pelo que parecia, eu os conhecia não somente como leitora, mas também como a própria escritora... As páginas mais recentes eram sobre um livro que se chamaria "A Mão Misteriosa", cheio de cartas anônimas acusadoras e com participação especial de Miss Marple, a personagem que eu mais gostava (não me perguntem se o "eu" dessa frase era "eu mesma" ou "eu, Agatha").

Bem, já que eu estava naquela situação, o jeito era aproveitar. Assim, passei o resto do dia escrevendo, dando forma à história, testando um e outro possíveis culpados, fazendo especulações. Só parei para o almoço e para o chá da tarde, trazidos por um mordomo uniformizado. Ao anoitecer, eu quase me convencera de que eu era, mesmo, Agatha Christie. Que maravilha!, pensei, deslumbrada com meu próprio talento.

Fui dormir em meio a meus lençóis de linho, sem a presença de Max, meu (dela?) marido, que estava viajando em uma escavação arqueológica, segundo me dissera o mordomo. Sonhei com venenos, intrigas de aldeia e um detetive com cabeça em formato de ovo. Acordei com o som irritante do despertador do celular tocando na mesinha de cabeceira.

Abri os olhos. Onde eu estava? Vi-me novamente em meu antigo/moderno quarto, tudo como era antes. Que sonho mais pretensioso eu tivera! Eu, Agatha Christie, vejam só, sorri comigo mesma, olhando-me no espelho e vendo meu "eu" normal. Deixando aquela história de lado, corri me arrumar para o trabalho, antes que me atrasasse. Não adiantou nada, levei sermão do meu chefe da mesma maneira: onde eu estivera no dia anterior? Como é que não aparecera para trabalhar? Tinha atestado? O que é que eu estava pensando?

Cada vez mais confusa, balbuciei uma desculpa sem pé nem cabeça, e fui para a minha mesa. No intervalo do almoço, corri à livraria comprar "A Mão Misteriosa". Primeiro, conferi a data da edição original: julho de 1942. Um arrepio percorreu minhas costas, e ele ampliou-se quando li as primeiras páginas. Como é que eu sonhara que estava escrevendo exatamente aquelas palavras, se aquele era um dos pouquíssimos livros da Rainha do Crime que eu ainda não lera? Lembrei-me, então, da célebre frase do único escritor que supera Agatha em vendas no mundo, Shakespeare: "Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia..."

Maristela Scheuer Deves
Enviado por Maristela Scheuer Deves em 27/12/2011
Código do texto: T3409357
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