RETORNO

Frio.

Nada, além do frio aterrador, pungente e intermitente. Poderia jurar que o único calor na terra é o que faz seu coração bombear, com intensidade menor, a cada segundo. A escuridão serve tanto como algoz, quanto como alívio: a ignorância do porvir o acalenta de uma forma estranha: não saber é não sofrer antecipadamente. As imagens de lugares, pessoas e dias de ontem assaltam-lhe nitidamente, diante de seus olhos, quase cerrados. Claro, não passam de ilusões de um moribundo. Nada mais que sua épica batalha entre anjos e demônios, Luz e Escuridão, Virtude e Vício, Vida e...Vida.

O chão áspero, o zumbido hipnótico e irritante das moscas, além daquele gotejar previsível e temeroso – o tempo está acabando!- o trazem à realidade: não há nada, além da prisão subterrânea que o envolve neste momento.

Contempla, com pesar, a morte gradual do solitário feixe de luz sobre o córrego que o acúmulo de sua própria urina criou. Não existem mais lágrimas. Seus lamentos limitam-se a muxoxos surdos, inspirados pelo insuportável peso do tempo, da solidão e venturas que nunca irá desfrutar. Sente o sangue escorrer preguiçosamente sobre os lábios. Morde-os, talvez na tentativa vã, de apressar o fim. Mas – maldito tempo!- não sente nada, além da incômoda e lacerante dor, que o impele a gemer de forma quase inaudível.

Há quanto tempo está ali? Sente o odor do couro recém-curtido, que o aprisiona, invadir e queimar-lhe as narinas. Num esforço sobrehumano, move a cabeça para o lado, os músculos do pescoço estalam ,seus olhos -ironicamente rubros pelo sangue que lhe esvai- quase saltam das órbitas, na esperança de vislumbrar algo mais que a negritude que o aflige.

Uma tímida lufada provoca um arrepio involuntário que ele não sente, tal o torpor que o domina. É difícil respirar com tantas moscas beijando-lhe com suas peludas e numerosas patas. O gotejar parece mais distante, mas nem por isso, menos aterrador. As imagens ficam mais claras, à medida que seus olhos fecham. Rostos, sorrisos, gritos e sangue. Vulnerant Omnes, Ultima Necat. Seria esta a hora em que os pecadores gozam a redenção? Seria este o tão aguardado momento do...Nada?

Risos. Donde vêem? Há alguém ali? Olá!? Nenhuma resposta. Não lembra de ter movido os lábios, mas sua voz e terror nunca lhe pareceram tão nítidos, tangíveis, urgentes. Estará vivo? Tenta mover a língua, e a sente áspera, rígida, amarga. Sim, infelizmente ainda respirava. Como seria morrer? Uma luz branca convidativa num corredor sem fim? Quem sabe? Percebe, num misto de medo e negra diversão, que sua mórbida curiosidade superava por larga vantagem, seu instinto de sobrevivência.

Sente suas pálpebras pesarem, entrega-se ao cansaço e à dor que parece, enfim, abandoná-lo. Sente os braços livres, a cabeça pender frouxa, a boca abrindo-se numa última convulsão débil, o coração parecendo tentar, pela última vez, manter-se em movimento. Os dedos fecham instintivamente, cerrando os punhos, inúteis, naquelas condições. Tremor. Calor gradual e perceptível. Há quanto tempo? Onde estariam todos aqueles rostos? Quem seriam?

Consegue ouvir a última gota com espantosa clareza. O som ecoa. Ecoa...

Seu corpo enrijece sob o calor. Vozes indecifráveis. Mais uma convulsão. Escuta as cadenciadas e esparsas batidas de seu coração, que ainda luta contra a paralisia. Sente-se envolvido por uma onda de energia. Os dedos enrijecem, o peito arqueia violentamente. A luz. Uma luz opaca, que o assusta. Mais uma onda, e um agradável torpor acompanhando pelo calor, acaricia seu corpo.

- Trezentos! Afastar!

A luz volta. Mais intensa, agressiva.

- Trezentos e sessenta! Afastar!

Escuta, sente e parece tocar os batimentos ritmados, frenéticos e decididos de seu coração. O calor aumenta, apesar de réstias de morte ainda tentarem abraçá-lo. Escuta as sirenes- distantes, escandalosas, e muito bem-vindas. Um rosto desconhecido, de olhos negros e agitados, revela um sorriso de alvos dentes e finos lábios, que dirigem-se ao seu ouvido:

- Você ficará bem. - sussurra, com uma voz firme, e ao mesmo tempo, suave.

A vermelhidão do céu inunda suas córneas, o calor do sol poente abraça-o com suas últimas forças, pássaros refugiam-se sob as copas das árvores, e estrelas começam a despontar sem pressa, no firmamento. Mais uma vez, o dia morre. E apesar da dor, esporádicas convulsões, e o amargo sabor que ainda inunda seus lábios, ele sabe que voltará amanhã.

Gustavo Marinho
Enviado por Gustavo Marinho em 06/01/2012
Código do texto: T3424969
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.