A Pedra Quebrada

Não fazia muito tempo que ela viu o mármore da pia quebrado em quatro grandes pedaços. Parecia que alguém subira ou sentara encima dele de propósito ou mesmo sem propósito algum, mas não era isso que lhe interessava. O que lhe chamara o olhar foi a quebra. O fato é que uma semana depois ela voltou de viagem e viu que o estrago fora consertado. Mas foi um concerto incompleto. Percebeu que para ligar as metades partidas foi utilizado gesso, e era possível ver o gesso esbranquiçado unindo as metades todas. O mármore, brilhante como um ônix, era agora um mármore partido em quatro grandes partes que foram unidas pelo gesso.

Aquilo a perturbou e era algo aparentemente banal. Não era loucura porque a quebra, a fez mergulhar num sentimento de compaixão. Como alguém que mergulha de cabeça em água cristalina e todo o corpo é tomado pela liquidez. Aquela rachadura estava dentro dela, unida por uma matéria qualquer e que jamais teria novamente uma textura inteiriça que a permitisse expor com singularidade uma coisa bela e suave como a textura de um mármore.

Pensou. Pensou se aquilo que estava sentindo era bom ou ruim e se merecia um julgamento correto, mas decidiu que nesta ocasião não precisava ser correta ou não. Precisava assumir a cicatriz. Apenas isto. Sim, era isso que havia dentro de si, sim, era uma permissão para si mesma. Uma imensa cicatriz, uma bela cicatriz, e esta tal de cicatriz, cic – atriz, CIC, atriz, gritava pelo corte. Era preciso assumir de vez que o corte existiu, que persistiu e que estava ali torto, fissurado e unido pelo gesso. Como se o gesso ao invés de unir as partes rachadas de dois ossos de uma perna ou de um braço, estivesse unindo os ossos imaginários de memórias que se perderam.

Debaixo de seus pés o chão aos poucos perdia consistência e todos os personagens de sua história íam tropeçando nas coisas para não cair no grande abismo ancestral, o abismo onde reinavam monstros, dinossauros e outros répteis mortais. Suas palavras eram uma obsessão e eram repetidas repetidas vezes. Até quando? Não, chegou o momento de encarar a cicatriz para evitar o afogamento.

Era o mármore duro que estava diante de si como uma fria e dura verdade. Era o mármore dos cemitérios, era o mármore dos banheiros finos, o mármore das igrejas, dos shoppings e aeroportos por onde andara, dos restaurantes, das belas decorações, transformado numa fria e dura verdade partida em pedaços num lapso de um olho. Aquele era um momento de poder, mas era um momento de delicadeza. Era enfim necessário clamar urgente pela delicadeza que não quebra um mármore em várias partes.

Mas a delicadeza inexistia por que amara sempre com contundência o grotesco, o passível, o fraco, o sem ação, o sem atitude, ela amava tudo isso porque dentro de si havia uma imensa fenda partida em pedaços e agora está cicatrizada e que não é mais inteira, e que bom que ao menos ela conseguiu unir as partes, ainda que através de um material pífio e sem muito valor. O pífio construiu a cicatriz e a solidificou, exatamente como aconteceu com a pia.

O pífio é irmão da verdade e a verdade é irmã da decadência, e é por isso que há anos ela reina sobre a decadência. Com dinheiro ou não. Com posição ou não. Descobriu que o orgulho é muitas vezes uma arma de defesa contra o aniquilamento e que ele era necessário como uma pílula, como um sonho ou como algo que coloca seus pés firmes no chão e aquela parte quebrada de si, aquela parte estava firme e estava exposta, por que esta parte mudou para sempre o seu olhar, a maneira de portar suas mãos, a maneira com que calça os sapatos, sua voz e o articular das palavras.

Ela morrera. Repetidas vezes morrera e nada foi feito, ninguém ficou de luto, nem ela mesma, afinal era preciso continuar e continuar bem, continuar sem demonstrar o corte, continuar como se a fenda não estivesse ali. Não foi feito o enterro da quebra, a mão desceu firme e partiu para sempre o mármore mas ninguém chorou buscando a redenção. Na verdade ninguém viu a quebra, ela mesma não vira mas a fenda permanecia, pousada na integridade da quebra, revelando as fissuras, e agora, havia o gesso unindo tudo como as peças de um quebra cabeça se unem para revelar uma foto, uma paisagem.

Era preciso buscar alguém que amasse a sua cicatriz. Que amasse os seus ossos. Sedenta pela lágrima, saiu exposta para a rua e seguiu finalmente um rumo desconhecido.

02/11/2011

Mila Mariz
Enviado por Mila Mariz em 12/03/2012
Código do texto: T3549080
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