Recorrências

I

"Quem tem medo da morte é porque nunca morreu." Gritou na sua mente enquanto corria ao longo da calçada de pedras irregulares. Quanto mais buscava chegar a algum lugar mais longe ele tinha a impressão de estar. Seus passos curtos e apertados transformavam a inquietação que sentia numa vertigem a ponto de sentir a bílis na garganta.

"Eu não quero morrer!" E a angústia fez suas pernas estremecerem e num ímpeto quis correr mais e mais, mas alguma coisa deixava-o estático, sem forças, um boneco à mercê da passagem do tempo e das coisas. Suava tanto que seus olhos estavam embaçados.

Finalmente conseguiu o pleno domínio de suas pernas e desatou a correr, corria tanto que não percebia nada à sua volta e quando sem perceber deu um passo em falso, um passo no nada. Não encontrou o chão e caiu. Caiu vertiginosamente numa queda sem fim, num breu palpável. Não teve tempo de gritar, pois o sobressalto e o medo atingiram seu peito violentamente e todo o seu corpo amorteceu, tão forte o choque daquele momento. Desfalecia assim, instantaneamente durante a queda.

II

Passava das sete e meia quando Cristóvão saiu do banho ainda atordoado com o sonho que tinha tido duas noites atrás, era um sonho recorrente, mas não diário e tinha a capacidade de deixá-lo desnorteado por alguns dias. Geralmente um café bem quentinho colocava as ideias em ordem, mas dessa vez sentia uma dorzinha na virilha esquerda e ele achava que talvez fosse a tensão do sonho.

O calor era intenso e ele resolveu abrir a sua mercearia antes do normal. Com uma morbidez de morto passou de cesta em cesta para verificar se estavam abastecidas com o feijão, arroz e a erva mate. Ajeitou-se com dificuldade atrás do balcão, ferveu uma água para o chimarrão da manhã e olhou para fora.

Não tinha vento, o ar estava parado como se fosse um enterro, daqueles em que o corpo chega ao cemitério e acontecem de repente as aglomerações em torno do morto para rezar em prol da alma, tudo muito apertado, cada um querendo ver pela última vez a brancura de cera estampada no caixão. Não tinha ninguém nas ruas, sequer o cachorro da Dona Cícera que vinha todas as manhãs abocanhar as sobras comestíveis da limpeza da mercearia que Cristóvão varria e depositava do ladinho da calçada já pensando no viralatas. Mas, olhando bem, não havia os restinhos da limpeza daquela manhã e o relógio da igreja que ficava em frente à venda não badalou para a missa das oito.

Ao lado da igreja, pomposamente situada em lugar de destaque na cidade, a casa do general Eusébio - reformado na Guerra do Contestado, botica e madeireiro - aparecia a todos os moradores da cidade, fosse de que lado fosse, a casa dele era a primeira que se via. E era a única que tinha roseiras em seus jardins porque sua esposa Dona Adelaide esmerava nos cuidados como se fossem suas filhas e Cristóvão olhava para aquelas roseiras firmando a vista, apertando os olhos e todas elas, inclusive os brotinhos no começo do pé pareciam de plástico. Foi lá cheirar e constatou o que a sua imaginação a algumas horas previra: O mundo parou!

Começou a correr em direção a igreja, fico extremamente cansado pelo esforço e com um pesar de fantasma viu que não saíra do lugar, corria mas não chegava lá. Tirou a camisa grudada no corpo pelo suor abundante e insuportável quando ouviu nitidamente e a alguns passos de sua orelha “Nossa seu Cristóvão, o senhor está passando bem?”

Essa frase tirou-o do torpor em que estava e viu-se na porta da igreja debaixo de um sol escaldante de meio dia cuja hora marcava exata no grande relógio da torre central. Dona Cícera não estranhou o silêncio e começou a caminhar sempre olhando por trás do ombro como a esperar alguma reação absurda. Cristóvão voltou para casa com o rosto e os ombros queimados pelo sol.

III

O ocorrido andou de boca em boca na cidade, mas o padre quis mesmo assim convidar Cristóvão para cuidar da pesca na Festa do Padroeiro, causando certo desconforto entre as beatas, já que era o acontecimento mais importante da cidade e um “candidato a louco” trabalhando na pesca, como elas diziam, não ficaria bem para a reputação positiva do evento.

Cristóvão aceitou o convite sem saber dos pormenores que envolviam o assunto, e lá foi com muita alegria trabalhar na pesca, vendendo fichas, entregando os prêmios e ajudando as crianças a pescarem os melhores “peixes”. Na hora do almoço, Cristóvão fechou a banca da pesca e quando levantou a tábua do alambrado para sair, tudo rescendeu a ontem, ao passado, ao velho e ao esquecido. O cheiro era insuportável e a sensação de ânsia eminente fê-lo cair no piso de terra batido do pavilhão da Igreja.

O pior era o cheiro de plástico das rosas.

IV

À falta de vento, às rosas de plástico e à sensação de aglomeração juntava-se uma triste impressão de ver pessoas ao longe, sem definição. Ficou com umas saudades de sabe-se lá o que, ou quem e começou a chorar. Entremeado pelos gritos de desespero e sofrimento que saiam de seu peito, precisava levantar daquele chão, mas não conseguia. Era como se um peso estivesse empurrando seu corpo de encontro a terra e a sensação de solidão invadiu seu pensamento.

Nem sabia que horas eram, pois o mundo tinha parado e o sino não badalava.

Quando serenou, sentiu que lhe davam tapas no rosto e abrindo os olhos viu o botica, a Dona Cícera e o padre. Cristóvão estava nu, seus pés em carne viva, deitado na relva de um bosque que ele não reconheceu de imediato e ardendo em febre. Todos deram vivas de alegria e explicaram que ele saiu correndo do meio da festa e correu feito um louco, tanto é que fizeram um mutirão para encontrá-lo, pois fazia dois dias que estava desaparecido.

O Padre, Dona Cícera e o general estavam visivelmente preocupados, o primeiro porque Cristóvão saiu correndo com todo o dinheiro da pesca, a segunda porque queria aconselhar Cristóvão a se casar - com certeza esses rompantes eram oriundos da falta de mulher - e piscou-lhe o olho pintado de lápis. E o terceiro porque queria testar em Cristóvão uma nova poção mágica que garantia o pronto restabelecimento das faculdades de Cristóvão. As vozes começaram a se misturar em sua cabeça, pedindo que ele comprasse o dito ungüento, os pequeninos assustados com os prêmios da pesca, dizendo sim no altar da igreja enfeitada, a ideia de comprar o dito ungüento, o sim de novo, as juras, o padre contando quantas notas e moedas tinham-se perdido sem poder encontrar solução para o caso, e esse burburinho de vozes todas juntas, ininteligíveis, uma pressão por respostas imediatas que Cristóvão sentiu aquele cheiro tão seu conhecido; aquela coisa morna, quente e sem vida começou a passar pelas árvores à sua volta como num anel de morte e tudo ficou vazio, silencioso, sem vento e uma vontade imensa e irrefreável de correr formigou suas pernas.

Deixou todos ali, plantados à sua volta, levou consigo os olhares perplexos dos três amigos e correu, correu até que seu fôlego permitiu e corria tanto que não percebia nada à sua volta e quando sem perceber deu um passo em falso, um passo no nada. Não encontrou o chão e caiu. Caiu vertiginosamente numa queda razoavelmente curta. Não teve tempo de gritar, pois era o que ele queria. Desfalecia assim, instantaneamente durante a queda.

V

"Que dor de cabeça." Abriu os olhos, mas não pode conter o grito de dor por tentar levantar os braços. Nem podia fazer algum movimento com eles, parecia que sua pele iria arrebentar e sua cabeça também. Encontrou o general Eusébio aplicando ungüentos em seus ombros e Dona Cícera molhando um paninho e colocando em sua testa para aplacar a febre das queimaduras de sol. Lá fora o dia seguia lindo e as pessoas nos seus afazeres com os barulhos do dia a dia.

E eles perguntaram por que Cristóvão havia ficado tanto tempo debaixo de um sol escaldante do meio dia, sem camisas olhando para a Igreja, e Cristóvão assustou-se com tal questionamento porque isso havia acontecido anteontem e pediu sobre a Festa do Padroeiro, e eles responderam quase juntos como numa aliança de morte: “É amanhã”.

Michele CM
Enviado por Michele CM em 11/06/2012
Código do texto: T3718117
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