BAJICA E O MENINO

- Onde é esse lugar mesmo?

- Psiu! Você num vê que eles estão dormindo?

- Quem?

- Papai e mamãe.

- Mas, tá chovendo! Tô com medo.

- Cale a boca e fique quieto rapaz!

Amanheceu com o céu aberto a cidade de Maurício de Nassau. Fortaleza no início dos anos 70 e final dos anos 60 tinha muitos sítios pela Aldeota, um bairro muito promissor na época. Todo mundo estava comprando chão por aquelas bandas. A casa de três quartos, sala, cozinha, dois banheiros, e um imenso quintal havia sido alugada por um pessoal que tinha vindo de Sobral. O casal jovem tinha um futuro incerto pela frente, a vida traria seus carmas como dizem, ou como Paulo - o Apostolo: “O que se planta se colhe”.

Uma rural verde, ano 66 parada na porta chamava a atenção de um menino de 6 anos que corria sem parar o tempo inteiro. Ele via o mundo pela imaginação de sua mente. Aquela criança tinha uma história para contar.

- Vamos jogar bola!

- Vamos! Os dois irmãos saíram pela porta da frente rumo à rua, que na época não era calçada, era uma rua de areia, uma areia fria pela noite, e muito quente perto do meio dia. Os dois meninos brincavam de bola. Uma fumaça podia ser vista e ela vinha da Silva Paulet, de um casebre. A brincadeira parou; os meninos por que viram o movimento foram olhar o que havia ocorrido. O casebre estava quase todo destruído, dentro dos escombros um corpo de um menino do tamanho de uma caixa de sapato estava carbonizado. Isso assustou muito ao pequeno Cleonâncio que andava com seu irmão mais velho – o jovem Portela.

Portela era muito falador e descontraído, Cleonâncio era mais quieto e muito desconfiado com pessoas fora de seu ciclo. Os meninos correram para casa avisar aos pais do ocorrido. Ao chegarem a sua residência testemunham uma cena muito triste. Sua mão estava tentando suicídio. Com uma faca na mão a mulher dizia barbaridades contra si e contra os outros: “Eu vou, mas, levarei sua paz comigo, seu safado”. O safado era o pai dos garotos, seu Roselito dos refrigeradores, o homem entendia tudo sobre refrigeração.

- Roselito, seu cabra safado, seu crápula, até quando você vai raparigar?

- Mulher, vá tomar o remédio e depois vá descansar! Você está fora de si, meu bem!

- Nâo me chame de bem não! Seu safado! Olhe sua cueca suja, e sua camisa manchada de batom!

- Isso num é batom não mulher!

- É o que cabra sem vergonha! A discussão continuou e os meninos foram se ocupar com outras coisas. Cleonâncio foi para o quintal fazer o que ele mais gostava – Falar com o tempo; e Portela, foi para o quarto onde se amuava até a tempestade passar. Cleonâncio foi conversar com o pé de bananeira que nunca dera banana, contudo, tinha boca, nariz, olhos e até voz, para o pequeno curumim do Ceará.

- Sr. banana tá ouvindo?

- Estou. São seus pais procurando se entender.

- Por que eles falam alto assim?

- Cada um quer impor sua opinião.

- E isso é certo?

- Não é muito certo, mas, tem sua funcionalidade.

- Sr. Banana será que eles vão se separar?

- Muito provável! Uma cobra verde peçonhenta apareceu na folha viçosa da bananeira.

- Sr. Banana, por que essa cobra tá ai?

- Minha sombra é boa para todos os bichos do campo inclusive você caboclinho. Cante aquela canção que você inventou aquele dia! Cante! O menino cantou a canção e parecia que uma multidão de pessoas escutava sua apresentação. A cobra se enrolou na folha de sua cor e ficou quieta como a morte.

- Cleonâncio!

- Sim, Portela.

- Vamos brincar no sítio de dona Chiquinha.

- Vamos! Cleonâncio gostava de brincar na casa de dona Chiquinha. Às vezes, sua mão os deixava com a mulher quando a empregada da casa não vinha. Não poucas foram as vezes que eles foram para casa de dona Chiquinha. Era um lugar simples, mas, cheio de paz e muita alegria. Dona Chiquinha gostava dos meninos como se fossem seus filhos.

Cleonâncio tinha o costume de ver as meninas de sua idade tomando banho. Ele gostava muito de ver aquela pequena rachadura que as meninas têm no final da barriga.

- Dona Chiquinha, por que sua sobrinha não tem pintinha como eu?

- Foi porque deus fez assim. As meninas fazem xixi pela brechinha e vocês meninos saem em pé a urinar o mundo todo, num é!

- É, e é muito bom! Cleonâncio deu uma carreira e parou de súbito para fazer xixi na areia do sítio de mangueiras e cajueiros de dona Chiquinha e seu Antônio de Parangaba.

A velha Bajica foi trazida de seu quarto que ficava separado da casa. O telhado era de palha de coqueiro. Bajica morava no sítio, mas, ninguém sabia o porquê. Ela não falava, não tinha amizades. A Única pessoa que ligava para ela era o menino Cleonâncio.

- Dona Chiquinha, por que Bajica vive babando? Cleonâncio conseguia conversar com a velha que não dizia uma palavra. Ele olhava seus olhos, as expressões faciais, e ouvia de alguma forma, o que ela pensava.

- Oi! Bajiquinha! Cleonâncio deu um abraço na velha. A carne seca de seu rosto cheio de linhas e pelancas se enrugou. Para o menino era sinal que ela havia gostado. Logo, logo, a velha Bajica se interessa pela conversa do pequeno Cleonâncio. A baba caía relaxadamente dos dois cantos de sua boca sem dentes. Cleonâncio gostava de apará-la e de limpar seu rosto. Os dois conversavam muito. As pessoas se perguntavam o que uma criança de 6 anos viu numa velha de 70.

- Eles não são parentes.

- Eu não entendo. Se eles conversam, por que eu não escuto nada?

- Mas, o irmão dele diz que ele conversa com a bananeira.

- Ah, agora, eu entendi, ele é meio doido, num reparou não?

- Gildo diz que ele daquela idade lê Machado de Assis.

- Machado de Assis?

- Quem é esse Machado de Assis?

Todos achavam linda a amizade de Cleonâncio e a velha Bajica. O menino todos os dias ia ter com sua amiga Bajica. Quando entrava no sítio, logo, corria rumo ao seu barraco. Lá ficava horas, depois as pessoas perguntavam o que ele conversou e o que ela disse.

- Dona Chiquinha, Bajica queria ver a filha que está em Crateús.

- Como? A pergunta de Chiquinha foi seguida pela queda do prato de alumínio que ela ariava.

- Sim, ela disse que quer ver Assunção. Ela, ainda disse assim: “Deixa de ser ruim”.

- Cleonâncio pare de inventar coisa menino! Vou dizer para sua mãe. O tempo passou e nele Bajica se tornava mais velha e mais cansada.

Foi numa tarde que a mãe dos meninos decidiu conversar com a mulher que estava deixando seu menino caçulo perturbado – a Bajica.

- Chiquinha, onde está Bajica?

- Quem?

- Bajica mulher, essa velha que mora com vocês!

- Olhe, ela foi prostituta no passado, mas, depois do derrame não se tem nada a dizer dela.

- Também, né! Quem vai querer uma velha dessas, e ainda ex – puta. Quero meu Filho longe dela!

- Mulher, Bajica num fala nada não! Seu filho inventa história é só. Ele não conversa por que a gente presta atenção e ver que os dois nada dizem somente Cleonâncio fala como se respondesse a ela. A mãe do menino deu-lhe uma surra e o proibiu de ver sua amiga. Cleonâncio foi ter como seu amigo mangueira em um terreno baldio, perto do antigo Cinema Ventura. Os dois conversaram até que o dono chegou e pediu para ele descer da árvore frutífera. Cleonâncio havia sido alertado para coisas piores.

- Mãe, o que você disse para Dona Chiquinha?

- Nada menino, seu irmão já deitou, vá deitar também.

Aquela noite foi muito curta. A chuva veio com a discussão do casal sobre o horário de chegada de Roselito. Foi feito o cálculo matemático e ficou comprovado que ele não levaria aquele tempo para vir dos correios, onde trabalhava, até a aldeota, onde ele residia. A mulher do carteiro ficou irada e a briga vara a noite. Por volta de uma ou duas, os meninos são acordados pela mãe que os leva para um lugar seguro. “Seu pai está armado de faca e está atrás de mim”. Aquilo enlouqueceu as crianças, que imediatamente se entregam ao choro e lamento.

- Calma meninos! Passa já!

- Mãe, pai vai ser preso e depois fuzilado pela ditadura.

- Quem te disse isso?

- Eu subi no sótão e li as revistas que você guarda lá.

- Você não conte a ninguém das revistas! Tu entendeste, Cleonâncio?

- Sim mãe, mas, por que eu num posso ver a Bajica?

- Tu fazes muitas perguntas menino! Cala essa boca!

A chuva passou e todos voltaram para casa que estava em total silêncio. Naquela noite os meninos não viram seu Roselito. Com o dia, os meninos recobraram as forças e esqueceram o ocorrido. Perto de meio dia, o céu escurece. As nuvens tinham cor de chumbo cinza prata. O casal tinha ido trabalhar. E os meninos ficaram dormindo. Cleonâncio e Portela decidiram descer ao Rio Cocó. Esse distava do lugar uns 500 metros. Eles costumavam andar até lá. Passaram a manhã curtindo o frio do rio. Ao voltarem para casa, Cleonâncio escorrega no piso do hall, e tomba e bate a cabeça no azulejo do chão. Cleonâncio vê muitas estrelinhas e no meio delas surge o rosto de Bajica. Ele estava enrolado em panos. Cleonâncio sabia que era a velha. E para lá correu e atrás dele foi seu irmão, Portela.

A casa de dona Chiquinha estava vazia. Não havia ninguém no lugar. O quarto de Bajica estava com a porta aberta e de lá sai cheiro de rosas. O corpo estava todo enrolado em pano. Deitado sobre o caixão descansava a amiga de Cleonâncio. Este ficou triste e calado por muitos dias. Seu pai, então, resolveu abordar o rapaz para uma conversa de homem.

- Homem de verdade não chora!

- Pai, então eu não sou homem?

- Num é isso não! Quero dizer que nós homens não somos fracos.

- Ah, é por isso que o pé da barriga das meninas é rachado, né?

- Acho que sim. Roselito saiu dando risadas. Seu filho era um homem macho dizia ele para si mesmo. Contudo, a criança não esquecia a velha Bajica, quando ele se lembrava dela ele chorava. Isso durou muito tempo, tempo bastante para desativarem o sitio. Eu seu lugar construíram um prédio. Agora a amiga Bajica está no céu.

- Bajica, vou cantar para você! Disse Cleonâncio vestindo um short caque. Ele correu para o quintal, onde seu pai plantava milho e criava galinhas, e começou a cantar uma música para sua amiga. O lugar ficou cheio de luz e paz, o rosto do menino se transfigurava. Ele cantava para a multidão imaginária que se tornara plateia de seu show beneficente.

- Menino! Pare de falar só! Você não é louco entende?

- Sim, mas, Bajica gostou.

- Você já vai fazer nove anos, pare com isso entendeu?

- Mas, o que é que eu faço? E se me pedirem novamente para eu cantar?

- Não tem ninguém te pedindo isso. É tudo invenção sua, seu louco, doido, retardado!

- Pare com isso Roselito! Deixe-o em paz! Venha cá meu filho! Cleonâncio foi até sua mãe. Ela o pôs no colo e fazia cafuné em sua cabeça raspada como soldado:

- Meu filho, quando somos crianças imaginamos coisas. Você não conversa com ninguém. Amanhã o pastor David Smith da primeira igreja virá aqui para orar por nós.

- Mãe o que é Smith!

- Sei lá!

- É o nome de um homem que mexe com ferro, mãe. Bajica me ensinou muita coisa.

- Pare! Eu já disse pare! Cleonâncio saiu do colo de sua mãe e foi ao quintal falar com Sr. Banana. Agora, somente Banana poderia ajuda-lo a esquecer de sua amiga.

- Sr. Banana, por que os adultos se preocupam com tudo que fazemos?

- Bem, nós Bananeiras, também nos preocupamos com nossos filhos. Porém, sabemos também que é da natureza deles saírem de casa cedo, e nunca mais voltarem. Por isso dizem que tem banana em todo canto.

- Ah, é por isso que não vejo bananas velhas e que somente as amarelas são comidas. O Sr. Banana ficou muito triste com a frase “são comidas”. Cleonâncio tentou conversar com ele e ele não mais respondia. Se impacientando, o menino balançava a bananeira para fazê-la falar. Não obtendo resposta, lembrou-se da história de sua prima Tereza: “Se enfiares uma faca virgem num bananeira, a pessoa que você ama te aparecerá”. Cleonâncio correu para cozinha onde estavam as facas. Tomou uma faca nova que ainda estava no saco, e enfiou-lhe nos lombos de Seu Banana, este deu um gemido e nada mais. Portela, escondido, atrás da cacimba via tudo:

- Mãe, corra que Cleonâncio está brincando com faca e acaba de assassinar a bananeira!

- O que?

- Mãe, venha ver o danado como tá falando com a bananeira!

- Não pode ser!

- Mãe, ele acaba de levantar a mão e estender na direção do tempo.

- Deixe disso Cleonâncio! Sua mãe correu em sua direção. Seu filho estava falando com uma pessoa e dizia que ia embora com ela. Sua mãe gritou apavorada e chamou os vizinhos. Logo, a paz foi restituída. Dona Judite esposa de Raimundo confortou a todos rezando a Ave Maria em latim. Por volta das dez da noite Roselito chega. A briga do casal começa quando o ocorrido foi contado.

- Rapaz, a gente precisa de você e nada. Diz que está trabalhando, mas, o cheiro de cerveja eu sinto daqui!

- Quer dizer que num posso tomar uma com meu irmão? É um absurdo, essa mulher é louca! As vozes, agora estavam altas e descontroladas. Cleonâncio vê Bajica em pé, à porta do quarto de seus pais. Ele corre para segurar sua mão. Seus pais saem do quarto e vão para cozinha, e a imagem da velha amiga se desfaz como poeira. Desconsolado, e um pouco com medo, o menino Cleonâncio deita na cama de sua mãe e se cobre com o lençol dela, pois, o ventilador estava ligado. A briga cessa, o silêncio volta a casa. Sua mãe não dizia mais nada, o cheiro de fumaça de tabaco enchia toda a casa. De seu pai, Cleonâncio não ouvia nem as pisadas. O silêncio era sepulcral. Portela estava no outro quarto. Sua mãe foi ter com ele e o abraçou muito forte. O menino sofria muito com as aflições daquele casamento precipitado.

Cleonâncio sente o aço frio de uma lâmina afiada que lhe traspassa o peito perfurando lhe o pulmão esquerdo. Depois outra facada no estomago, que torna o movimento do diafragma muito mais difícil. Com os olhos abertos embaixo do lençol o rapaz vê sua amiga Bajica em pé chorando. No canto esquerdo de sua boca havia uma rosa roxa. Cleonâncio se ergue do leito e sai com Bajica até a Praça da COELCE e lá os dois somem na escuridão da noite.

No outro dia, acharam o corpo do rapaz deitado no lugar de sua mãe. Esta deu graças a deus não está ali, mas, a tristeza da morte de seu filho, embora, um filho muito estranho lhe abalou a paz para o resto de sua curta vida. Seu pai foi acusado pela polícia, mas, sem digitais, sem provas, até hoje não se sabe quem matou o menino que falava com a velha.

Alguns meses depois, encontraram uma faca dentro do tronco de uma bananeira. Esta estava ensanguentada. Levaram para a polícia técnica e o sangue era compatível com o do Cleonâncio. O problema era: “A faca não fora posta na bananeira, ela estava ali como se estivesse nascido lá”. Mas, como? Nas terras do Ceará, muitos mistérios acontecem e ficam sem explicação. A família, ou o que restou dela foi morar no Maranhão. Até os dias atuais, no mesmo lugar onde era a casa de Cleonâncio, se ouve um gemido, e não se sabe de onde ele vem...

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 09/11/2012
Código do texto: T3976694
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