O pedaço esquecido da vida

A mulher circulava pela cidade de modo que, apesar de sua beleza fascinante, a maioria das pessoas não a notava; chamava a atenção quando pretendia. Daquelas que levam qualquer um para a cama, homem ou mulher; ou até para o túmulo. Nesse dia estava vestida de roupas brancas. Casada? Chave de cadeia? Sabe-se lá... Poderia ser a chave de tudo; a verdadeira esperança dos homens depressivos, desesperados, solitários e confusos. A poesia diz: “Não confio em mulher com mais de trinta, com de mais trinta maridos, com mais de trinta vestidos...” Nela não se deve confiar então? Depende. É com o que se parecia; uma mulher com mais de trinta. Todas as vezes que ela aparecia estava com vestido e cara diferentes; vez em quando era vista assediando diferentes e incautos homens, mulheres, jovens, adolescentes e até algumas crianças. Devassa. Bateu o olho em um rapaz que andava distraído e logo o escolheu.

Era fim de ano, a cidade estava toda “acesa”. A praça cheia de objetos de natal, camelôs, luzes; gente que raramente sai de casa. e o rapaz era uma dessas pessoas.

O instinto da procura da felicidade, da “minúscula superioridade” que vem na carona dos atos de: ajudar, servir, elogiar, beneficiar, desejar, abraçar, que acompanha os seres humanos nessa época, baixou sobre a cidade. Todos desejam o bem para si, quando dizem: feliz isso, feliz aquilo... Um modo de tentar comprar a confiança das divindades nas quais não depositam a verdadeira fé. De igual modo, em tempos de concorrência, disputa por espaço, esquecem a alteridade e agridem uns aos outros de modo natural, em obediência a esse mesmo instinto.

O moço carregava no semblante um ar de pessoa confiável; parecia não fazer parte daquele povo espavorido em gastar para ser feliz.

Estatura mediana, cabelos pretos ondulados, corpo com formas simetricamente equilibradas. Um aspecto de moço refinado, culto e ao mesmo tempo humilde. Seus amigos diziam: “estudioso não, CDF ao extremo”. Levava presentes para todo mundo na época em que se faziam essas festas. Dado à família, cheio de amigos; se tinha inimigos era por inveja e ninguém os conhecia. Resplandecia em sua face, perenemente, um largo sorriso diante das benesses oriundas das amizades e dos amores; na verdade gozava de todos os tipos de afeto e sabia como retribuí-los. Era desses que as mulheres querem para casamento; bonito, mas não tão atrativo para “noitadas”; era muito responsável e gostava de boa música. Como diria Belchior:

“Era feito aquela gente honesta boa e comovida... Que tem, no fim da tarde, a sensação da missão cumprida”.

A propósito, ele gostava tanto das músicas de Belchior, cantor e compositor de Música Popular Brasileira, que vivia cantarolando trechos delas. Gostava de uma em especial: “Cidadão comum”, mas esquecia sempre de um pedaço: “Não sei por que me esqueço sempre de um pedaço dessa música? Só sei que é a parte mais significante... Não tenho esse disco, tenho que me lembrar de comprá-lo qualquer hora dessas, para ouvir em casa...” Esquecimentos à parte. Todos diziam que iria se dar muito bem na vida.

Enquanto o moço caminhava pelas praças e ruas da cidade, a mulher não parava de rondá-lo, porém não se aproximava; não se sabe por que. Quem a visse diria que era um tipo de amor platônico. Ela, agora de verde esperança, o acompanhou de longe, em um evento de entrega de prêmios de melhores do ano e, adivinha quem estava lá recebendo? Claro, ele. Havia sido o melhor vendedor de seguros da firma em que trabalhava. Seguros de vida, só de vida. Ganhou um automóvel importado de luxo. A moto velha agora é coisa do passado. Ia fazer vestibular, provavelmente seria aprovado. Todos diziam: “vencedor nato o menino”. A noiva era seu orgulho. Linda como se já estivesse ataviada, embora nem havia comprado o vestido ainda. Mas é daquelas que, mesmo sem o vestido já se parecem com noivas, tal é o tino deslumbrante da sua tez.

“Hoje vou sair com os amigos e comemorar o sucesso que foi esse ano de trabalho”. Pensava o moço. “Afinal, tenho que me divertir um pouco; vou me casar logo, se não aproveitar agora, depois não será mais possível”. Ledo engano patriarcal; diversão é diversão em qualquer condição marital.

Saiu com os seus amigos mais chegados, foram para uma boate simples, não gostava de gastar muito em futilidades. A moça de vestido de verde, que agora era laranja claro, mas exatamente do mesmo modelo do outro, não se sabe porque, mas estava lá a espreitá-lo; tinha aos seus pés os homens, as mulheres, as crianças, os jovens e os adolescentes que desejasse, mas não: queria aquele ali também, era um sentimento de insaciabilidade compulsiva. Dava a impressão de que o rondava noite e dia, mas não era não, talvez paixão platônica mesmo. Era coincidência? Daquelas coisas que co-incidem para o mesmo ponto sem um combinado prévio; por puro acaso? É como excesso de esmola, o santo fica logo de orelha em pé.

O jovem era tão “cabaço”, honesto e tímido nas relações com mulheres, que, ao conseguir coragem para beijar no rosto uma moça qualquer na boate, já se orgulhou todinho. Na volta da “gandaia”, não parava de comentar o fato, porém, os amigos não deram muita importância, pois todos eles foram muito mais além do que um simples beijo mal roubado ou mal dado sabe-se lá. Toda vez que ele comentava o fato eles se entreolhavam e maneavam a cabeça negativamente.

Para ir à boate o moço tivera que montar um esquema inusitado em seu cotidiano; tudo para driblar a atenção da noiva que marcava “serrado”, apesar de sua vida ser como um livro aberto. Porém o risco é que, este tipo de comportamento poderia conduzí-lo a resultados cuja relação com a verdade seria extremamente frágil e, não inerente à sua pessoa até então absolutamente integra.

Era desses que estava sempre em casa, no trabalho ou na casa da noiva. Não dava um motivo sequer para duvidarem da sua integridade moral. Mas nesse dia, justamente nesse dia em que resolvera mentir, a coisa não deu muito certo não. Talvez pela falta de prática. Dissera que estariam na casa de um amigo onde jogariam truco, assariam carne e tomariam uma cervejinha; “coisa de homem”; e que não seria interessante para a sua noiva; ficaria de lado por não ter com quem conversar. O que ela, por confiar plenamente, concordou e foi, resignadamente, dormir na casa da sogra.

Sábado de manhã, chegou visivelmente embriagado, mas manteve a postura de bom moço. Não fosse o cheiro forte de cerveja ninguém apostaria em uma escapadela.

“Bom dia amor! você está bem? Claro, dormi aqui em sua casa. Nós já vamos tomar o café. Você vem? Sim, só vou tomar um banho. Depois do banho ele voltou para a sala, todos estavam à mesa. A campainha tocou; era a irmã do tal amigo, na casa do qual estariam a noite toda.

Bom dia! Estou indo comprar pão; ao passar por aqui, vi que já estavam acordados e resolvi “filar” um café. Pois não, sente-se. Que prazer ter você aqui conosco; quanto tempo não é? Diz a dona da casa, irônica e pausadamente, reprovando a ausência da moça que pareceu não ligar muito; deu apenas um sorriso amarelo, pois gostava do moço e disse: “E você, seu safado! Só porque vai se casar não aparece mais lá em casa? A gente não morde não viu? “Não sem motivo”; e riu com malícia. O moço perdeu a cor; realmente não ia a casa dela em respeito à noiva, pois sabia das intenções da amiga. Um rapaz honesto e pego em flagrante. Coisas da vida? Quem estivesse atento poderia ver nos olhos da noiva o lume disfarçado da faísca do ódio contido pela força resulatante da educação. Todos se calaram.

O ódio da noiva tinha dois motivos, a mentira que acabava de ser descoberta, adornada pela clara e inescrupulosa moção de assédio que, atônita, presenciara.

A mulher de vestido laranja, que agora era azul claro e frio, porém, exatamente do mesmo modelo dos outros vestidos que usava antes, estava sentada à mesa. Certamente tinha sido convidada para tomar café com a família, contudo, nem teve tempo de ser apresentada ao moço, já saíra dando-lhe apenas um leve sorriso com um acentuado tom de ironia como se soubesse o que estaria por vir. O bom moço, ruborizado, calou-se e baixou a cabeça, esperando o vendaval que se anunciava no horizonte de sua honrada existência. Pensou: “Meu Deus, Fiz papelão na frente da visita...” Todos tomavam o café da manhã, calados como se estivessem em estado de alerta.

Bem, eu já vou. Disse a visitante, digamos, inoportuna. Lá em casa devem estar pensando que comi todos os pães; pela fome que saí de lá... Levantou-se e saiu. Agora o moço quase tremia em uma espécie de vergonha e expectativa, nunca estivera em situação tão ridícula e melindrosa diante das pessoas que amava e em sua, até aí, tão nobre vida.

“Então, fala!” Pede a noiva. “Falar o quê?” “Onde você esteve à noite toda? Deu para mentir agora é?” A falta de prática em inventar mentiras falseava a sua voz e não teve outra saída a não ser falar toda a verdade. “Mas eu não fiz nada demais, só saí com os amigos, mais nada.” Nesse ponto tinha razão.

A família ficou perplexa, era religiosa, portanto, moralista, não esperava tal atitude do menino “bonzinho”. Uns diziam: “São as más companhias” outros: “sei não, acho que se cansou de ser bonzinho”, e havia ainda os que diziam ser coisa de homem e provavelmente não aconteceria de novo e a noiva deveria compreender. Cada um dava a sua opinião, coisa corriqueira no seio “democrático”das grandes e organizadas proles modernas.

O réu ouvia em estado de torpor, era um tipo de morte quase súbita que o invadia. A noiva, moça equilibrada, nesse dia, depois do que presenciou, não se conteve, largou o café pelo meio, manteve a classe; se levantou e, delicadamente, sumiu. Mesmo porque, linda como era, não teria problemas em atrair outro homem, digamos... Mais decente.

O desespero era profundo, o moço saiu de casa e começou a caminhar a esmo pela cidade; atravessava avenidas, alamedas, vielas, ruas; quase sem olhar, como se, de repente tivesse se transformado em um perfeito inconseqüente.

Porém, o que procurava era o guardião da sua consciência, o zelador, o guarda da sua ordem psíquica, da sua paz interior, das etiquetas familiares, sem as quais acabara de ter clara noção de que não se tem felicidade. Não obstante ser ele o moço que era, havia em seu espírito, e descobrira do modo mais cruel, uma mistura de tirania, estupidez, idiotismo e dureza de coração. A própria moralidade que até aqui o conduzira, agora caia sobre ele, sem piedade, com a sua foice destruidora.

O moço, em seus dilemas pessoais, continuava caminhando e meditava nos versos de seu cantor preferido, o Belchior: “Agora sou um cidadão comum, daqueles que se vê nas ruas, que fala de negócios, ri e vê shows de mulheres nuas”. Tentava lembrar-se do bendito pedaço da música que tinha se lhe apagado da mente como que por encanto, mas não se lembrava.

Em meio aos seus devaneios atravessou um sinal fechado; ao ver-se em situação de perigo, teve de correr e ainda ouviu um fritar de pneus e gritos de: “quer morrer, filho da puta!” No que parou, ainda com o coração palpitante, vislumbrou por uns instantes, em meio à multidão, bem pertinho, quase a tocá-lo, aquela mulher que tinha sido convidada para o café da manhã em sua casa. Não teve coragem de encará-la, ainda estava muito envergonhado. Ela estava de vestido cinza e gorro de lã preto, mas os modelos eram sempre os mesmos. “Ela é fascinante e deve ser maravilhosa”. Pensou; mas agora não é hora de fraquejar, tenho que recuperar minha noiva. “Quem sabe, se as coisas não se acertarem, já que ela é amiga da família, não custa nada... Bateu um leve remorso por ter pensado dessa forma. E seguiu caminhando.

A consciência da culpa o acompanhava como uma entidade sombria tentando devorá-lo. Sua relação com a verdade era muito mais frágil do que imaginava.

Como poderia ter inventado uma história tão mesquinha só para enganar a noiva; ou descido tanto os degraus da escada da moralidade? Pensava. Como seriam as coisas depois de despertar desse pesadelo, ter que prometer às pessoas da família e à noiva um estágio probatório, tempo no qual teria que provar tudo de novo? Como se fosse um contrato em que o devedor, para infundir confiança, para garantir a santidade de sua promessa ao credor, teria de dar-lhe sua liberdade ou até mesmo a sua vida. Na instância religiosa, sua bem aventurança, a salvação de sua alma e, por conseguinte, a paz no túmulo. “Isso é muita responsabilidade para um débil mortal”.

Quando deu por si já havia caminhado a manhã toda e parte da tarde. Resolveu voltar para casa. A comida já estava fria. “Mas não estou com fome mesmo”.

“E aí, moço! Estávamos preocupados contigo.” Disseram alguns familiares. Ele não olhava nos olhos das pessoas de medo e seguiu para o quarto onde ficou o resto da tarde, a noite e a metade da manhã de domingo. Acordou faminto, comeu pão seco e café frio como se fosse uma atitude de autopunição.

Como pela primeira vez em quatro anos não acordava domingo de manhã sem que encontrasse a noiva já na mesa do café, achou estranho e se entristeceu a ponto de não conseguir esconder as lágrimas. Mas passou logo, foi ler uns livros cantarolando o seu cantor preferido.

“Agora já não sou mais feito aquela gente honesta boa e comovida, que chega ao fim da tarde com a sensação da missão cumprida”. Porém o famigerado pedaço da canção, nunca conseguia lembrar.

Na segunda-feira, como não dormiu nada durante a noite, chegou atrasado pela primeira vez em sete anos de trabalho, porém um atraso considerável, quase uma hora. Quando chegou ao escritório viu em cima da sua mesa uma carta e pensou: “Puxa vida, só faltava essa: perder a noiva no fim da semana depois de ter recebido o prêmio de melhores do ano é ruim, mas na segunda ser demitido porque atrasou um dia no trabalho em sete anos é um complemento dos piores”.

Qual não foi a sua surpresa, um trecho da carta dizia: “Pelos relevantes serviços prestados à empresa e pelos resultados alcançados por vossa senhoria durante o ano que se finda, convidamos-lhe para fazer parte do corpo administrativo da empresa”. A alegria foi tamanha que, como em um passe de mágica, todo o sofrimento de perder a noiva, fazer papel ridículo em frente às visitas, decepcionar a família, tudo o que tinha se passado ficou como se nunca tivesse acontecido. Pensou, não, disse quase aos brados: “Nada como um dia após o outro e uma noite no meio, isso sim é a vida que sonhei; vida de vencedor! Danem-se quem pensar que sou isso ou aquilo, Sou um vencedor!”

Naquele dia não via a hora de voltar para casa e contar a novidade para que, através das pessoas, a noiva ficasse sabendo; tinha certeza de que ela, ao saber da novidade, lhe perdoaria e voltaria atrás. Senão, ela que perderia, porque, pelo andar da carruagem, brevemente seria, no mínimo, subgerente. Um tom de refinado orgulho cobria-lhe o semblante.

“Já se passam duas semanas, será que ninguém falou para ela da minha promoção?”

Toda a sua vida desde então estava pautada na promoção e no iminente sucesso que sua carreira alcançaria. Só uma pessoa parece não se importar com isso, exatamente a que ele esperava que se ajoelhasse aos seus pés, se preciso fosse, para voltar. Ao invés disso, recebeu uma carta de fim de relacionamento. Não pareceu muito triste, sua cabeça agora estava circulando em outras órbitas. Pensou: “Ela é quem está perdendo mais. Estou A quatro anos namorando uma moça que, na primeira adversidade me abandona. Quem sabe o destino não me oportuniza ser um homem livre?”

Estava cada dia mais poderoso; à medida que ia ocupando de vez sua posição na empresa. Seu salário triplicara e não precisava mais trabalhar tanto quanto antes. Notava que as pessoas o respeitavam com uma pitada de medo, por causa do poder adquirido pelo dinheiro e isso lhe massageava o ego; e era um elemento transformador em seu caráter.

Tinha, por ser inteligente, a consciência plena de que, uma vez aumentado o poder de um indivíduo, a ele não mais era atribuído importância para seus eventuais desvios. Pois eles não podem mais ser considerados tão subversivos e perigosos para a existência de toda a sociedade organizada; pois é ela quem necessita dele e de suas influências para manter-se em equilíbrio. Esse fator fez com que perdesse muito do que a educação cristã lhe proporcionara.

Comprou um apartamento no centro da cidade, colocou-se dentro do mais luxuoso ambiente que suas posses lhe permitiam; sempre se vestira muito bem; agora então... E foi, paulatinamente, se separando da família e dos amigos mais simples.

Porém, nunca se esqueceu do cantor que mais admirava. O Belchior. A sua nova condição financeira lhe aproximava ainda mais da cultura, objeto de sua quase adoração. Na correria da vida, sem tempo para ouvir boa música, ir ao teatro, cinema, tentava suprir essa deficiência cantarolando. Porém já há muito tinha esquecido uma parte de sua música predileta e forçava a mente de vez em quando para lembrar: “Era feito aquela gente honesta, boa e comovida, que tem no fim da tarde e sensação da missão cumprida”. “Mas não é isso, tem outra parte, um dia me lembro”. Porém, a si mesmo não mais considerava personagem ideal para o enredo da música que tanto gostava, algo se perdera na jornada.

Absorto em sua nova e abastada vida, nem percebeu que estava só, o assédio das mulheres era tão intenso que contratara uma pessoa só para agendar os seus namoros. O tempo era cronometrado e não tinha nenhum para perder.

Porém havia uma mulher em especial, uma que talvez a arrebatasse para sempre; ele não a via há muito tempo, mas ela jamais o perdera de vista, também pensava muito em arrebatá-lo para si definitivamente, era quase uma paixão obsessiva, paranóica e, subliminarmente correspondida.

Aquele moço inteligente tímido, cheio de amigos, já não era mais o mesmo. Ainda tinha apenas 28 anos e já conseguira um sucesso que muitos levam a vida toda e ainda assim não conseguem. Porém, muito se perdeu para chegar até esse estágio. Agora não se parecia mais com nada a não ser consigo mesmo. Tinha uma espécie de orgulhosa consciência do que foi finalmente por ele conquistado e, encarnado em seu espírito, uma verdadeira consciência de liberdade e poder que suplantava todos os sentimentos mais nobres que até ali o conduziram.

Havia em seu coração um sentimento ainda maior que todos os outros; a orgulhosa consciência do extraordinário privilégio de ter poder sobre si mesmo e sobre o destino de muitas pessoas. Esse sentimento desceu até as mais profundas habitações de seu espírito, tornando-se, dessa maneira, um fator dominante e irreversivelmente autoritário; transformando-se em uma espécie de instinto adquirido se isso fosse possível.

Na realidade houve um tipo de apodrecimento dos antigos valores e a ascensão de novos; o que é inevitável e compreensível com o passar do tempo. O próprio Belchior diz na música “Como nossos pais”, que “o novo sempre vem”. Veio. Não da forma ideal, mas veio.

Como era muito estudioso, tinha plena consciência da sua atual condição; não conseguia definir se era feliz ou não. Não dava tréguas ao remorso ou devaneio de sofredores. Buscava alívio no trabalho, que trazia em sua rabeira, arrastados a ferro ou fogo, pelo menos resultados materiais que o enriqueciam cada vez mais. Tentava aconselhar-se nos filósofos e psicólogos famosos através da leitura. Lembrava-se que tinha lido algo que definia a sua atual condição. Não lembrava se era de Lacan, Freud ou Nietzsche:

“O alívio consiste em que o interresse do sofredor é inteiramente desviado do sofrimento – em que a consciência é permanentemente tomada por um afazer seguido de outro e, em consequencia, resta pouco espaço para o sofrimento: pois ela é pequena, esta câmara, a consciência humana!A atividade maquinal é o que dela é próprio.” Ah, Genealogia a moral. Seguia à risca.

Como seria esperar, depois de tudo o que aconteceu, que as relações contratuais morais feitas com a sociedade (família, religião, trabalho, lazer) e, só por ele assinado e validado, não exercessem influência em seu atual estado de espírito? Bem ou mal estavam ali. Uma somatória de tudo, uma razão, um produto interno tão bruto, frio e calculista que chegava ao extremo de apagar as boas memórias vividas em remotos tempos de simplicidade. Entretanto, pelos resquícios de educação cristã, elas, como diria Raimundo Fagner: “ Sentimento ilhado, morto e amordaçado, volta a incomodar”, voltavam.

“Era feito aquela gente honesta, boa e comovida, que tem, no fim da tarde, a sensação de missão cumprida”.

Esse trecho da música do seu cantor preferido há muito já não o representava como protagonista, como no passado acontecia; não se sentia nem figurante entre as personagens do enredo, tal era o desprezo que tinha pelas coisas que não lhe rendiam dinheiro ou posição social. Isso começou a incomodá-lo. Precisava lembrar-se da outra parte da música, mas deixava para depois. Estava sempre muito ocupado para perder ou ganhar tempo com isso.

Sofrera uma espécie de dano que, por não ser imediato, por ser lento e gradual, não deixa o seu eu subversivo em alerta; não consegue ver-se como um infrator, alguém que quebra a palavra e o contrato com o todo; mesmo porque é um drogado às avessas; é tudo mascarado pelos benefícios e comodidades que lhe são proporcionados.

Pensava muito na distância que os separava das pessoas que o tinham por mais querido; “quanto vale um homem que alcança esse patamar?” Teria que ter trazido consigo, junto a essa nova condição de moço rico, os valores fundamentais que a educação familiar o tinha outorgado. Meditava no que disse Maquiavel:

“Aqueles que se tornam príncipes somente por fortuna, pouco trabalho tem para isso; é claro, mas se mantém muito penosamente. Não têm muito trabalho para alcançar o posto, porque para aí voam. Surge, porém, toda sorte de dificuldade depois da chegada.” Sentia que estava em inadimplência com os seus, no entanto não sabia o que fazer. Havia subvertido as regras, rompido os tratados, traído os ritos.

O subversivo é também um devedor, que não apenas deixa de pagar os proveitos, como também atenta contra o seu credor que, no caso específico é, principalmente a família e os amigos que se doaram para vê-lo feliz e não foram ressarcidos. Ele negligenciou a felicidade dos simples. A real e plena felicidade está na simplicidade, onde pouco se tem para ser tomado nas adversidades das horas cruciais.

No estado de pleno e constante esvaziamento em que se encontrava, meditava em sua vida atual como uma espécie de punição. Pensava: “Agora estou sentido o quanto dói a ira dos credores e quanto valem todos esses benefícios; A comunidade me devolveu ao estado selvagem de fora-da-lei. Fui até então protegido. Quanta hostilidade poderá se abater sobre mim sem que ninguém note a não ser eu mesmo? Porque não é uma questão material, é de ordem espiritual e psicológica; sou simplesmente uma cópia fajuta de mim mesmo; estou sozinho, odiado e desarmado, prostrado perante a um inimigo que na verdade me ama; perdi, não só o direito à proteção, como qualquer esperança de graça. Se fossem verdadeiros inimigos eu teria pelo menos o direito da guerra”.

O rapaz, tal qual Alexandre, “O grande”, sente que conquistara tudo o que o dinheiro poderia lhe proporcionar naquele estágio da vida. Entretanto, sente um enorme e profundo vazio existencial. Resolve viajar no fim de semana: “Vou para qualquer lugar, pensar um pouco, sair da cidade, talvez encontrar-me comigo mesmo, por mais redundante que isso possa parecer”.

Na rodovia deserta, quase sem veículos, seu espírito ganha um ar de alívio; começa a pensar mais tranqüilo, o contínuo ronco do motor, a solidão do asfalto, oferece-lhe, como um presente, a paz que a muito queria sentir.

De repente uma felicidade singular lhe invade a alma. Começa a gritar como se fosse uma criança: “Me lembrei! Lembrei-me! Não falei que viajar me faria bem! Lembrei-me da parte da música que não conseguia cantar nunca! E começa a cantar como um alucinado: “Era feito aquela gente honesta, boa e comovida! Que tem no fim da tarde a sensação da missão cumprida! Era feito aquela gente honesta, boa e comovida! Que caminha para a morte pensando em vencer na vida!”

No redemoinho desse afã, tira por alguns instantes os olhos da estrada e abaixa a cabeça para ver se, num lance de sorte, não teria ali no console um disco do Belchior. Num piscar de olhos tudo fica turvo e estranho; ouve um som parecido com música indiana; abre os olhos por um fugaz instante, tempo suficiente para ver, além de algumas sombras, nitidamente, a mulher fascinante, agora de vestido vermelho e gorro de lã da mesma cor; com a boca quase a lhe tocar os lábios. Porém ela se retira, era fim de tarde e nos olhos dela pode se notar resplandecendo algo parecido com a “sensação de missão cumprida.” Ainda teve tempo de pensar: “Não, justo agora...”

carlinhos matogrosso
Enviado por carlinhos matogrosso em 31/12/2012
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