O CARROCEIRO DA LAGOA REDONDA

O CARROCEIRO DA LAGOA REDONDA

Vespasiano era um homem rude, ignorante e iletrado. Trabalhava em uma carroça fazendo frete. O homem carregava entulho de construção; mato de quintal, e qualquer tralha velha que alguém não quisesse mais. Muitas foram as ocasiões em que Vespasiano encontrava moedas, notas de dinheiro e pedaços de papel com escritos. Como ele não sabia ler os jogava fora. Vespasiano tinha cinco filhos: Chico era o mais velho, depois a fila decrescente, Maria, Lurdes - a caolha, Bernardo, e Toinho - o caçula. Este último era gago, todavia, o mais sabido de todos. Lia e escrevia; Toinho habituou-se a ler jornais velhos. O rapaz não podia ver um pedaço de papel escrito que ele não se interessasse e lesse.

As pessoas de bem gostavam muito de Vespasiano. Ele quebrava o galho de muita gente. Quando uma fossa entupia, ou vazava alguém dizia, “Chame Vespasiano!” O homem era disposto e muito trabalhador. Contudo os poucos recursos e uma alimentação inadequada estava enfraquecendo o pobre homem. Um dia ele sentiu uma pontada nas costas, caiu pálido no calçamento da Rua da Tripa, no povoado Lagoa Redonda, próximo a Tobias Barreto. O levaram para o Hospital de Caridade do Tobias. Uma multidão de curiosos foi ver o que ocorreu com o carroceiro Vespasiano Filho.

- O caso do paciente é tuberculose. Disse o Dr. Eduardo em um tom muito sério. As radiografias diziam que o tecido pulmonar estava em adiantado estado de infecção.

- E agora Dr. Eduardo?

- Aqui num tem recurso; ele precisa de uma UTI.

- UTI? Exclamou Germana vendedora de fato de bode no mercado municipal – o melhor fato da região.

- Então, ele vai morrer inté que chegue um carro home vai tá duro! Continuou a vendedora de fato.

Naquela época a Casa de Caridade de Tobias Barreto ficava onde hoje é o Convento das Vicentinas. Em seu leito Vespasiano agonizava de febre com fortes dores em todo o corpo. Uma enfermeira miúda, de rosto arredondado, de pele branca, com um lenço na cabeça se aproxima do moribundo.

- Oi Vespasiano! Tá melhor? Vou te aplicar um sedativo. O homem não conseguia falar. Quando sua veia foi picada pelo líquido da seringa, o pobre homem revirou os olhos, o lado branco de seus olhos toma a frente em sua face, em seguida, Vespasiano ver o arco terrestre azul, tão azul que dava gosto de ver. Ao seu lado, um homem sério, calado, vestido de branco o acompanha em uma viagem pelo astral. A escuridão do cosmos vai cedendo lugar a uma cor lilás; aquele era um lugar que não se pode descrever. Os dois chegam ao novo orbe. Sem abrir a boca, o homem de branco diz ao moribundo da Lagoa Redonda: “Ande e veja o que puder!”

O planeta lilás tinha muitas casas, elas eram feitas de um material que o carroceiro não conhecia. “Aqui, o entulho vem da mente das pessoas”. Disse o viajante misterioso. A massa mental do planeta era proporcional à população terrestre. Ali havia todo tipo de pensamento, muitos conhecidos na terra, outros jamais revelados, foram embora com seus donos. Vespasiano inicia a exploração do lugar, algo que ele sabia fazer muito bem; por décadas, o rapaz revirou entulhos, quintais, lixeiras, etc. O homem de branco diz com voz forte: “Entre naquele prédio!” “Que prédio?” Perguntou o ex - morador da Lagoa Redonda. “Aquele!” Apontou o homem com seu braço esquerdo.

O prédio tinha a forma de uma pirâmide, contudo, seu vértice superior estava voltado para o chão, era, então, uma pirâmide invertida. “Que prédio esquisito!” pensou consigo Vespasiano. A porta do mesmo era muito estreita, um homem gordo não entraria ali. Vespasiano se ajoelhou, e com dificuldade, introduziu a cabeça no interior da pirâmide, depois os ombros, e em seguida, o resto do corpo. O homem, finalmente percebeu que as dores cessaram e que sua antiga força havia voltado.

A base da pirâmide invertida tinha uma escada helicoidal que levava progressivamente aos compartimentos superiores; cada um era maior que o outro; sete eram os compartimentos ou salas. Vespasiano entra no primeiro, ou, na primeira sala. Esta era cheia de espelhos. Não havia luz, mas tudo podia ser visto muito bem. Todos os espelhos refletiam a imagem de um menino de oito anos. Vespasiano olha com atenção e senta numa cadeira de vidro apoiada por quatro diamantes de forma piramidal. “Não entendo nada”. Pensou o homem tuberculoso. “Veja!” Disse a voz de seu acompanhante.

A criança lentamente se tornava mais nova até chegar a forma de um feto de sete ou oito centímetros. O pequeno feto estava mergulhado numa bolsa de água; seu pequeno coração batia forte e rápido. Subitamente se ouve vozes e uma tesoura retira o pequeno ser, em seguida uma mão com luva de borracha retira a placenta. Vespasiano ver quando o feto é jogado num vaso com formol. O homem pensa sobre quem seria aquela criança. As lágrimas lhe esquentam a face. Vespasiano chorou muito com a cena horrenda.

- Vespasiano, não chore!

- Como não? Eu vi o coração dele bater, senti seu sangue fluindo e dando forma a ele!

- Isso acontece todos os dias na terra. Concluiu o homem de branco.

Vespasiano foi para o segundo pavimento. Nele havia mesas e pessoas espalhadas por todos os cantos. Um cheiro de tabaco e álcool enchia o ambiente. Todos riam e se divertiam. As mulheres, e os homens se davam a todas as formas de desejo. O sexo, o vício, e tudo que as pessoas condenavam na terra estavam ali. O lugar era dominado por um senhor muito idoso, seu falo arrastava no chão como se fosse uma serpente rosada. Quando o falo serpente se enrijecia, as mulheres serpenteavam dando gemidos de gozo. Seu nome era Eronildo, popularmente conhecido no lugar como “Senhor Eros”. Sobre a cabeça das pessoas, como em revista em quadrinhos estavam as legendas mentais de cada um. Um rapaz franzino de semblante sulista americano dizia em sua legenda: “I am gonna fuck that whore. She’s quite a piece of hell!” Sobre a cabeça de uma moça nordestina como Vespasiano estava a lembrança da caatinga e o desejo de ser degustada, saboreada. “Eu quero ser a mais gostosa dentre todas”. Sua vagina escorria um líquido amarelado gonorreico. Vespasiano vomita ao sentir o cheiro da menina.

No terceiro pavimento havia homens de terno, todos eram respeitados no lugar. Ali se discutia o futuro, no entanto, as decisões só contemplavam o presente. Um senhor loiro que usava uma cartola preta na cabeça e nesta o símbolo de cifras monetárias tomou a palavra:

- The world needs to change economy. We must make more profit and that’ll come from the Third world. Um homem bomba explode no meio da sala, seus intestinos vão com os estilhaços e espalham fezes para todos os lados. Alguns asiáticos disseram que o contrabando e a pirataria não podiam cessar: “Sem pirataria o pobre não vive”. Os antigos piratas do mar protestaram dizendo que isso era injusto. Os palestinos bradaram em alto e bom som: “Quem são vocês para falarem de justiça?” Os israelitas tentaram calar a boca dos seus vizinhos dando-lhes conselhos baseados na lei de Moisés. A confusão tomou conta da sala. Palestinos e judeus começaram a se destruírem – o carroceiro arregalou os olhos e chorou sem entender nada. A confusão continuou indiferente aos berros do tuberculoso. Os negros da África pediram para falar, mas, ninguém os ouvia. Um Zulu muito irritado pegou um facão e cortou o próprio braço – a sala calou:

- Nosso sangue é igual ao de vocês, todavia, recebemos apenas o esquecimento e o banimento de vossa sociedade eurocêntrica. O mundo sem a África não sobrevive. Mas, vocês só pensam em nossas riquezas e nada deixam para nossos filhos e ainda nos chamam de preguiçosos e insolentes. Uma mulher um tanto forte sentiu um calor intenso no busto quando o negão tirou a camisa para mostrar as marcas das chibatas.

- Isso é coisa do passado. Disse um senhor ibérico com um pedaço de queijo na mão. O queijo foi distribuído para todos com todo o amor lusitano para mostrar que os povos podem se irmanarem. Com o queijo consumido veio uma diarreia coletiva. Todos os presentes foram acometidos de cólicas intestinais e defecavam sem parar. O nível das fezes chegou à altura do teto da sala. Todos ficaram boiando na merda. Uma baiana de Salvador vendedora de acarajé que representava o Brasil se irritou e gritou desesperada: “O que foi que vocês fizeram?” “Estregaram o meu acarajé!” “Agora está tudo cagado!” “Quem vai pagar a conta?” Não houve uma alma que dissesse algo coerente sobre o assunto. As decisões foram deixadas para outro dia.

O quarto pavimento era muito escuro; nele havia uma nuvem fria e cinzenta. Vespasiano se queixou do frio ao seu protetor. O anjo disse que ele tinha que entrar lá e não temesse. Todos os moradores do quarto estavam de costas para o seu próximo. Cada um tinha uma língua semelhante à de um sapo. Quando alguém pensava alguma coisa, a língua era acionada, dessa forma, os moradores do quarto consumiam o que a mente do outro produzia. Essas pessoas não sabiam falar nada, e quando alguém ousava dizer alguma coisa, todos, ao mesmo tempo, repetiam a coisa que fora dita.

Vespasiano entrou no quinto quarto. Era uma sala muito bem iluminada; o lugar estava repleto de pessoas de todas as idades, sexo e raças. Muitos idiomas podiam ser ouvidos. As pessoas não se comunicavam umas com as outras por meio do contato direto. Elas estavam conectadas a telas e máquinas que faziam quase tudo. Um operador não dirigia sua palavra ao seu colega; o contato físico não era mais usado. Os ratos se amontoavam no lugar. As criaturas roedoras comiam as sobras dos lanches e refeições que eram feitas ali mesmo, pois, ninguém queria sair da sala um segundo apenas. Vespasiano sentiu náuseas novamente e pediu ao homem de branco para descansar um pouco. O anjo negou o pedido dizendo-lhe que o tempo estava acabando.

O sexto quarto tinha janelas. De cada uma podia-se ver a terra – o planeta azul. Vespasiano viu as queimadas, as lavouras que se espalhavam por todo o planeta, no entanto, a fome e a dor era rotina naquele lugar. Da janela ocidental do quarto, Vespasiano viu os esgotos que enchiam o mar de dejetos. Os rios estavam poluídos, as lagoas também. Os manguezais aterrados e as florestas eram agora um deserto erodido pela chuva – uma chuva ácida cujos pingos causavam úlceras na pele das pessoas. Vespasiano viu que a vida era insustentável naquelas condições. Mesmo assim, as pessoas acreditavam num mundo melhor.

- Seu moço de branco! Oh, seu moço!

- Sim, amigo Vespasiano.

- Eu morri?

- Não. Você está em coma.

- O que é coma?

- É um estado de consciência próximo da morte.

- Então quer dizer que vou morrer?

- Possivelmente. Vespasiano caminhou na direção do outro quarto. Este era o último. O carroceiro, finalmente, se interessou pela viagem e pelo sétimo quarto. O último quarto da pirâmide invertida era o mais espaçoso. Nele havia sacerdotes e fieis de todos os credos da terra. A discussão entre eles era muito apaixonada. Cada um dizia segundo sua paixão. Na testa de cada pregador havia uma marca em forma de um nome, e o nome era: “Verdade”. O anjo disse: “Na terra as religiões se multiplicam; elas ditam a moral, as regras; elas constituem a base do psiquismo terrestre. As religiões servem muito bem ao propósito dos que lucram com a destruição do orbe terrestre. Em alguns casos, elas legitimam aquilo que condenam em seus credos. As religiões nunca desaparecerão enquanto o homem existir. Elas mudam de forma; se adaptam ao meio, e formam um novo modelo de criatura”.

- Seu anjo, eu não entendo nada disso. Sou católico, mas, nem sei se essa história de Cristo é verdade mesmo. Tudo isso está complicado para mim. O anjo passou a mão direita nos olhos de Vespasiano dizendo as seguintes palavras: “Vespasiano acorde!”

Vespasiano acordou no quarto da Casa de Caridade na antiga Vila de Campos, hoje, conhecida como Tobias Barreto. As pessoas estavam perplexas com a cura do homem. Naquela época a tuberculose era uma doença sem esperança. O moço se levantou; caminhou pelo corredor formado pelos curiosos que vieram ver o milagre; saiu do hospital e foi para casa. Sua mulher o recebeu com alegria.

- Anagilda, eu vi Deus.

- Como?

- Vi Deus! Sim, eu vi Deus!

- A mulher olhou desconfiada para seu marido e o abraçou.

- Mulher, o mundo vai acabar e essa história de religião é tudo invenção do povo.

- Lá em cima tem cidades; está povoado de vida. Vespasiano tentava contar o que viu para sua mulher, mas, foi em vão. Sua mulher foi procurar o padre e contou tudo para ele. O padre Martins prescreveu 30 Pais Nossos e 30 Ave Marias. Vespasiano não parou de falar, com isso, o povo se afastou dele. Até seus filhos o abandonaram. Anabatista, o pastor local, garantiu que curaria o coitado do Vespasiano. A família se animou. Após a oração poderosa, Vespasiano não parou de pensar no que vira. Levaram Vespasiano para o sanatório em Aracaju. O tempo passou; ninguém mais se lembrava de Vespasiano. Numa sexta feira de noitinha, uma senhora visita o carroceiro. A mulher era corcunda e trajava um vestido todo preto. Trouxeram o louco Vespasiano para ver sua visita.

- Lembra se de mim?

- Não!

- Eu sou a mulher que te aplicou a injeção no braço.

- E o que foi aquilo que me aconteceu?

- O que? A mulher estendeu a mão para ele e lhe passou uma pedra de diamante no formato de uma pirâmide. Em seguida, ela sumiu de suas vistas como um vulto do outro mundo. Vespasiano se calou para sempre, nunca mais contou sua história. Vendeu a pedra em Salvador, e iniciou seu negócio de transporte de cargas entre Sergipe e Bahia. Em pouco tempo, sua família e amigos estavam de volta. O velho Vespasiano morreu cercado de amigos em avançada idade...

- Vespasiano!

- Sim!

- O mundo já acabou?

- Num sei não.

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 07/01/2013
Reeditado em 03/02/2016
Código do texto: T4072072
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