Sonhador

Aquele pesadelo o perseguia há muito tempo. Pode-se dizer que tomou conta dele.

Ainda criança sonhou um dia com uma quadra de basquete. Lembra-se das marcações da quadra, e que ia andando sobre a linha lateral batendo a bola em linha reta. A bola ia e voltava, seus olhos buscavam a cesta. Logo, parou e arremessou. A bola foi em uma trajetória quase perfeita, bateu na tabela, rodou no aro e caiu dentro da cesta.

Pedro, assustado, olhou para os próprios pés, não conseguia mexe-los. Forçou um pouco e conseguiu soltar-se e correr em direção à bola. Enquanto corria olhava para a linha lateral da qual saíra, ainda tentando entender o motivo de ter ficado colado. Nessa hora sentiu os pés afundarem.

Ao virar, viu que não era mera impressão, a quadra toda estava se movendo como se fosse uma grande gelatina. O rapaz fixou os pés e com movimentos dos braços buscava o equilíbrio. Olhava desesperado para os lados, mas estava sozinho na quadra. Viu que a arquibancada não se mexia, pensou e logo foi se movendo para lá. Com dificuldade chegou até o ferro de proteção que separava a arquibancada da quadra. Segurou-o e pulou, passando as duas pernas de uma vez sobre o ferro. Sentiu um alivio ao ver-se seguro. Porém, ao virar-se novamente para a quadra tremeu. As ondas haviam se juntado em apenas uma, que vinha para seu lado. Subiu, sem esperanças, a arquibancada. Sentia a onda se aproximando. Seu coração batia cada vez mais acelerado até que tudo parou.

Acordou, então, suado. Apesar de que se podia dizer que tinha usado a cama como jangada, tamanha a quantidade de suor que a cobria. Seu coração estava acelerado. Assustado ainda olhou para a mão e viu que seu pai a segurava. Aos poucos começou a ouvi-lo:

- Calma filhão, calma. O que aconteceu? Foi um pesadelo?

- Foi – ainda ofegante respondeu.

- Calma, calma. Respira devagar – e o pai apertou o garoto contra o peito.

O menino já havia estudado que duas coisas acontecem quando se abraça alguém, primeiro o corpo de quem está nervoso ou muito emocionado começa a se equilibrar com o outro, até que a respiração e batimentos cardíacos fiquem no mesmo ritmo, ou bem próximo disso. Depois, é gerado o calor entre os corpos que estão juntos. Com essas duas mudanças a calma chega.

Pouco tempo depois já estava calmo. Contou o que tinha acontecido para o pai. Estava com medo de voltar a dormir. O pai, então disse:

- Pedrinho, cada um tem um jeito de lidar com seus pesadelos. Uns não ligam, já outros ficam preocupados. Bom mesmo seria se pudéssemos criar uma máquina que impedisse sua existência. Mas enquanto não existe a tal máquina, vou dizer como eu faço. Quem sabe te ajuda – o menino olhava o pai com um olhar esperançoso.

- Eu acordo – quando o pai o disse apenas isso o menino ficou confuso.

- Não precisa ficar com essa cara – o pai sorriu – A questão toda está em saber que você está sonhando.

- Mas pai, não tinha ninguém no sonho, como eu ia pedir para alguém me beliscar?

- O beliscão não prova nada. O que ocorre é o seguinte. Quando se está sonhando o seu foco está em um só lugar. Como posso explicar… Ah, sabe quando você está jogando videogame, sua mãe o chama, você não responde, e ela vem gritando? Aí você diz que não ouviu ela te chamando da primeira vez? Então, nessa hora você está tão focado que deixa de ver e ouvir o que ocorre à sua volta. É normal acontecer com homens e as mulheres odeiam, por sinal. No sonho nós apenas vemos pelo foco. Não existe visão lateral ou sons diferentes do que você quer ouvir. Cada fato é isolado, e você não vê nada que não seja importante para a conclusão do sonho.

O pai olhou atentamente para o filho. Não achava que estava se fazendo entender. Pensou em deixar mais fácil para o menino de doze anos.

- Do que você lembra no sonho, no começo dele?

- Lembro que estava andando na linha da quadra, batendo a bola.

- Você se lembra de ter ouvido algum som, ou de ter alguém próximo, ou se estava de dia ou de noite?

- Não. Mas sei que não tinha ninguém, porque quando procurei não vi ninguém.

- Pois é. Você não se lembra, porque não faria diferença. Seu foco estava na bola e no quicar dela.

- Não entendo. Eu sempre to prestando atenção em alguma coisa. Como vou saber que é um sonho?

- Vamos ver. Feche os olhos.

Assim que o menino fechou os olhos o pai se levantou, olhou ao redor e perguntou. Para qual lado tinha ido. O menino atento sabia que o pai estava agora perto da porta. Também ouviu o bater de dedos no batente da porta, assim como o gato da vizinha que berrava de cima do telhado.

- Você está perto da porta, e está batendo nela.

- E você ouviu mais alguma coisa?

- O gato da dona Geralda.

- Exato. Pode abrir os olhos. Em um sonho você pode usar essa técnica, feche os olhos. Quando o fizer, tente ouvir tudo a sua volta. Se você ouvir apenas o som da coisa que quer te pegar, ou não ouvir nada, você estará sonhando. Sempre existem outros sons, outras imagens, outras pessoas, etc. Quando você descobrir que está sonhando, basta acordar.

O pai beijou o filho na testa e saiu do quarto após desejar bons sonhos. O menino não dormiu naquela noite, estava ainda muito assustado. Ficou apenas pensando como seria em seu próximo pesadelo. Não demorou muito para descobrir.

Estava na mesma quadra, batendo a bola de basquete sobre a linha, mirando a cesta de basquete. Teve a impressão de já ter visto aquela cena. Todavia, a cesta que era o centro de suas atenções. Parou, apertou a bola com as duas mãos, elevou-a tomando cuidado para que o cotovelo direito ficasse apontando em linha vertical para o chão, por baixo da bola, enquanto regulava cuidadosamente a trajetória com a mão esquerda ao lado da bola. Flexionou os joelhos e arremessou. A bola bateu na tabela, caiu no aro, ele sabia que ia acertar antes dela finalmente cair.

No mesmo momento, olhou para os pés. Sabia também que estariam presos. E eles estavam. Puxou com força primeiramente o pé direito que se soltou, correu para pegar a bola. Não a pegou. Olhava para a linha da qual tinha saído e para a quadra, como se esperasse que ela começasse a se mover. Olhou para a arquibancada e para lá correu diretamente, deixando a bola. Ao chegar à arquibancada sentiu a sensação nas costa que a quadra começava a se mexer. A movimentação da quadra foi aumentando. Procurava mas não via ninguém. Não entendia como já poderia ter visto aquilo. Então, se lembrou do pai.

Olhou para os lados e não via nada. Procurou a bola e ela já não estava na quadra. A onda seguia em sua direção e iria quebrar sobre ele. Fechou os olhos e não ouvia nada. Logo, pensou que se tudo aquilo era um sonho, era também um sonho dele, que era o único ali presente. Abriu os olhos, mais confiante, e uma barreira de metal se levantou da arquibancada. Ali a onda bateu e se diluiu, voltando ao formato original da quadra.

Tinha resolvido o problema, mas ainda tinha medo de pisar na quadra e precisava ainda sair dali. Acordar. Seu pai não tinha falado como fazer aquilo. Fechou os olhos e tentou ouvir algo. Focou no pensamento “acorda Pedro”, “Acorda Pedro”.

- Acorda Pedro! – um menino de uniforme, com aproximadamente 16 anos, gritava ao seu ouvido.

- Estou acordado, Junior.

- Ah, pensei que você tinha se empolgado com aquela sexta de três que você fez. Como você conseguiu fazer? Foi lindo, cara.

- Sexta de três?

- É, do canto da quadra. Um dia ainda vou treinar pra fazer igual.

Pedro olhou ao redor, a quadra estava lotada de jogadores, assim como a arquibancada. Ele mesmo vestia o uniforme do time da escola do rapaz que o acordara. Eles tinham a mesma idade. Parece que tinha dormido ali e sonhado novamente com o sonho de infância.

Tinha suas lembranças, mas algo o dizia que jamais teria acordado desde a noite que o pai o havia acordado. Não sabia mais o que tinha sido sonho, nem sabia se agora o que vivia era real. Tamanho distúrbio mental o fez ser internado em uma casa de amparo. O seu lazer era jogar basquete na quadra do instituto, que por acaso conhecia.