Habeas Corpus parte II

HABEAS CORPUS

Parte II

Abriu o pequeno caderno com pressa, tamanha a sua ansiedade. Sequer notou que um pedaço de papel dobrado lhe escapava, deslizava pelo assoalho, indo parar finalmente num pequeno espaço, abaixo da velha poltrona...

Eram páginas amareladas, já desgastadas pelo tempo. As primeiras linhas compunham os versos de um pequeno bilhete, cuidadosamente fixado à página inicial. Sabia que nada daquilo lhe dizia respeito, mas... diabos! Havia um homem morto há meses, e jazia estranhamente, no seu sofá! Precisava saber o que de fato ocorrera... Es que ao ler os primeiros versos, fora tomado por uma surpresa cuja proporção não poderia ser expressa de outra forma:

CARALHO! QUE PORRA É ESSA AGORA?! - esbravejou, logo ao perceber quão familiar se tornava o conteúdo existente às primeiras linhas do bendito manuscrito.

Ao ler o resto do bilhete, olhou fixamente em direção à pequena janela que dava para os fundos do cemitério, observando a imagem distante de uma árvore morta, já sem folhas. Em seguida, voltou-se novamente para o defunto:

- Quer me enlouquecer mesmo, né, ô, morto filho da puta?!- balbuciou em tom áspero, num semblante sombrio de ódio e profunda tristeza. As lembranças de um coveiro casmurro, por tanto tempo aglutinadas no passado vieram à tona naquele instante, distorcidas, sim, com todas as palavras difíceis que ele mal conseguia pronunciar, porem, verdadeiras em sua mais pura essência. Entretanto, como foram parar ali, presas no diário de um cadáver, um corpo decomposto de um sujeito que ele mal conhecia?! Olhou novamente àquela imagem solitária, a árvore morta, ao longe, como uma gravura antiga a preencher um pequeno espaço na janela aberta. Em seguida, por alguns minutos, desandou a chorar feito uma criança - Deparar-se com um corpo podre em sua própria casa, abandonado, sabe-se lá por quem, na velha poltrona da qual tanto gostava, levava-o a um flashback embaçado de uma memória a qual, finalmente, após tantos anos, com estrema dificuldade, conseguira dissolver em seu peito...- Enquanto tentava enxugar as lágrimas, uma estranha tontura o fez cambalear para os lados como um bêbado. Sentiu aos poucos o suor frio transitando-lhe a pele, esta cada vez mais pálida, arrepiava-lhe o corpo. Nesse momento esbarrou por acidente sobre uma garrafa de amaciante líquido, um dos produtos de limpeza colhidos na cozinha, cuja queda fez escorrer, no mesmo assoalho, uma grande poça avermelhada, deixando exalar por toda a casa um forte cheiro de perfume. Ao tentar reerguer o recipiente, outra estranha coincidência, ironicamente descrita sob a marca no rótulo da embalagem, àquela altura, já quase sem nenhuma gota:

“FLORA – Amaciante liquido, perfumado com a mais pura essência da maçã.”

Ao olhar novamente para o corpo, prestes a lançar-lhe novas pragas por todo o inferno que, de certa forma, o obrigava a reviver, outra desagradável surpresa! Estava o que lhe restou dos olhos também marejados de lágrimas, escorrendo-lhe à face horrivelmente deformada! Porem, na medida em que desciam, eram aos poucos diluídas numa gosma mais escura e viscosa, surgindo entre a rachaduras causadas pelo processo de ressequimento da pele podre. A maquiagem da morte...

Sabe-se lá Deus por quanto tempo esteve imóvel desde aquele instante. Paralisado e confuso, demorou até perceber o barulho incessante da campanhinha, já tocada pela quinta vez! Atenderia somente após o oitavo toque...

***

Diabos! Es aqui, uma prova cabal de que os mortos também erram: Confesso que não pretendia revelar-lhe bilhete algum! Ao menos, não tão cedo... Pelas vermes do meu corpo! Poderia eu jurar de pés juntos, ter fixado aquele bilhete em qualquer outro canto, menos na primeira página... Bem! O que está feito, está feito... Contudo, caro amigo, temo que as boas lembranças, descritas sob tanto zelo, não mais sejam lidas naquele diário, de modo que terei de arriscar-me num breve e sucinto resumo do que realmente se passou. Além disso, acredito serem aqueles, os homens que insistem à cigarra, os mesmos cujo o propósito é o de levar-me embora! Com isso pouco me importo. No entanto, antes da despedida, faz-se necessário que me apresse, enquanto ainda restam língua, lábios e cordas vocais para contar a história. Quanto às lágrimas, queira perdoar-me, mas, se até os mortos erram, porque também não haveriam de chorar? Meu choro não é nada mais que fruto do meu erro e se quiseres dar outro sentido a este pranto, ora bolas, dei-me um lenço, ou então ressucite-me de vez! No entanto asseguro-lhe ter, de sobra, motivos, tanto quanto meu ilustre anfitrião. Ou melhor, tenho, para chorar, os mesmos que tem o furioso soterrador de covas... Mas Deixemos de lado a prosopopéia flácida para acalentar bovinos. Neste momento, com o pouco tempo que me resta, cuidarei de tornar a antiga fonte um tanto mais cristalina:

Ainda me lembro do primeiro dia, como se fosse ontem...

Conheceram-se aqui, no cemitério mesmo, durante o enterro do pai da moça, no qual apenas auxiliava, pois na época, não passava de um mero aprendiz daquele ofício. Algumas semanas pós-luto, num de seus primeiros encontros, tendo ele utilizado como instrumento de galanteio uma maçã vermelha, fruta da qual ela mais gostava, começaram a namorar - Quem, depois disso, poderá dizer-me que a morte não é capaz de nos levar a um fenômeno ainda mais nobre? - Pois bem! O fato é que os anos se passaram, o amor surgiu, eles noivaram, casaram-se e vieram viver juntos aqui mesmo, nesta casa. Três meses mais tarde, no mesmo dia em que fora nomeado o mais novo coveiro de Santa Paz, o único cemitério da cidade, a encontrou morta, sobre sua poltrona, com os pulsos cortados. No assoalho da sala, uma enorme poça de sangue e um pequeno bilhete escrito à mão:

“Querido Denis,

Saiba que há muito já não nutro esperanças por teu amor,

de modo que, sem ele, a razão de viver se perde em minha alma,

como o desmantelar das árvores, aos traços vazios do inverno mais rigoroso. Que o púrpuro do meu sangue a escorrer neste assoalho, represente, para ti, muito além de uma simples poça, o testemunho de alguém em busca de paz, com um coração já cansado de esperar. Em testamento, deixo-te apenas meu pedido de desculpas, a garantia do meu amor por ti e a certeza de uma partida sem mágoas...

Um adeus, para sempre,

Ass: Flora

PS:. Como último desejo, peço-te que continue a cuidar da macieira que plantamos juntos, nos fundos do cemitério..."

CONTINUA...

FCunha
Enviado por FCunha em 28/02/2013
Reeditado em 28/02/2013
Código do texto: T4165149
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