O Uirapuru e a Lua Grande-Parte III

Um cafezinho? ...Se aceitamos um cafezinho? Claro...! Claro, Dona Maroca! Pode ir fazendo o café enquanto eu explico umas coisas aqui para o “seu” Delegado... Não faça cerimônia, “seu” Delegado, puxe um tamborete e sente-se, a casa da Dona Maroca é como se fosse a minha casa... Ela é minha Madrinha de Fogueira de São João! Então, Doutor, como eu lhe disse, e claro, me parece que o senhor ainda não entendeu coisa com coisa... O Curupira castigou o gringo Klauss, com dois “esses”, transformando-o em cateto, ao mesmo tempo em que acabou com o castigo do outro gringo fazendo o infeliz voltar a ser gente...

E onde está o outro gringo? E por que é que eu insisto em dizer que o nome do gringo é Klauss, com dois “esses”?

Ora “seu” Delegado, é por que na verdade, existem dois gringos com o mesmo nome de Klauss... Um gringo tem o nome de Klauss, com dois “esses”, e o outro tem o nome de Klaus com um “esse” no final... Sei lá por que...

Delegado, não vá “pirar o cabeção” como gosta de dizer o meu sobrinho-neto Tuquinha...

Calma, “seu” Delegado! Não tive a menor intenção de ofender o senhor! Vou tentar explicar toda a confusão para o senhor enquanto a gente toma um café e come uns pedaços de macaxeira cozida... A madrinha Maroca faz uma macaxeira cozida coberta de manteiga derretida e café... Olhe, “seu” Delegado...! Vou lhe contar... É pra comer de joelhos e rezando...

Delegado, o senhor não vai comer os seus pedaços de macaxeira não? Vai tomar só o café? O senhor é que sabe! Eu, por exemplo, vou comer tudinho, a minha parte e a sua...

Toda essa história, Delegado, começou tem mais de trinta anos... Mais ou menos uns trinta e cinco anos ou mais... Eu lembro que sempre que eu estava de férias aqui pelo seringal... Isso na época em que eu estava fazendo o curso de Sociologia e o de Direito, aparecia sempre por aqui um gringo vermelhão e com o cabelo mais louro que “boneca” de espiga de milho amadurando... Nesse tempo o meu amigo Joca ainda não era nem nascido, eu andava por essas matas todas acompanhado pelo pai dele, também meu amigão do peito, infelizmente morreu cedo, uma canguçu o matou...

Pois é! Esse gringo, depois eu soube que ele era alemão, ficava por aqui e por ali, andando de um lado para outro, sempre perguntando sobre coisas da região... Como é o nome daquele pé-de-pau ali? E o nome daquele passarinho de cores vivas? E daquele bicho ali, como é nome? Os ribeirinhos e os seringueiros achavam graça da ignorância sobre as coisas da floresta que o gringo com cabelo cor de palha de milho possuía... Respondiam às perguntas do gringo e iam cuidar dos seus afazeres...

Eu ficava por aí, pescando, caçando e andando por essas matas e rios... Lembro que de vez quanto, Doutor, eu cruzava com esse gringo de nome Klaus, com um “esse”, metendo o nariz vermelho dele em tudo o que era canto, em todo lugar... Um dia, também na boca do Igarapé Taquara, igualzinho esse gringo Klauss, com dois “esses”, fez com o meu amigo Joca, o tarzinho do gringo Klaus, com um “esse”, fez comigo... Também esse gringo, o primeiro, estava me esperando na embocadura do Igarapé Taquara... Para meu espanto, encontrei aquele gringo curioso e abelhudo, parado, fazendo sei lá o quê na margem do igarapé... O gringo pediu carona e eu dei... Veja bem, Doutor, foi o primeiro gringo, o antigo... Lembre que o fato ocorreu tem mais de trinta anos atrás... E, ele também me pediu para leva-lo até a clareira atrás da Sede do Seringal... No mesmo lugar onde estão as árvores que o Joca me falou e que eu falei para o senhor... Lembra...? Do nome das árvores? Quariquara? Castanheira? Ipê? Jatobá? Pois é! Foi a mesma clareira.

O quê? O senhor acha que eu também fiquei igualzinho ao Joca, ao lado do gringo, esperando o Uirapuru Branco aparecer para cantar?

Negativo, “seu” Delegado!

Deixei o doido do gringo na clareira e fui cuidar das minhas coisas, das minhas obrigações... Por esse tempo, nas horas vagas, eu já catalogava a localização das árvores de Andiroba, Copaíba e da palmeira Patauá, também para extração do óleo... Como o senhor pode ver Doutor, desde muito novo eu já procurava viver do que a floresta podia me dar... Por falar em óleo, o senhor sabe como é que se extrai óleo de Copaíba? Sabe?

Não? Quem sabe outra hora? Mas é tão fácil extrair óleo de Copaíba que eu vou lhe dizer assim mesmo... Mesmo o senhor não querendo saber! Para tirar o óleo do Patauá e da Andiroba é mais complicado para falar agora, por isso, se o senhor quiser eu digo depois...

Pois então, Doutor! Para tirar o óleo da Copaíba o “mateiro” só tem que pegar uma ‘broca’ ou um trado, o que estiver mais a mão e fazer um furo no caule da árvore e, através de uma mangueira, deixar o óleo escorrer para um recipiente e pronto... Depois da coleta a gente veda bem vedado o furo com um pedaço de madeira, de preferência um pequeno galho da própria árvore, corta esse pedaço rente à superfície do tronco e espera a árvore se recuperar para nova coleta... Viu? Simples assim!

O quê, Doutor? Se o gringo, o primeiro, ficou sozinho na clareira? Ficou...! Claro que ficou...! Pelo menos eu acho que ficou! Afinal, eu o deixei lá e nunca mais eu vi a fuça dele nesses trinta e cacetada de anos... Até o dia em que o segundo gringo sumiu e ele reapareceu do nada... Assim...!!! Pluft! Como passe de mágica... Eu falei para o senhor que na floresta acontecem coisas muito estranhas... Eu falei...!!!

Sabe de uma coisa, Doutor! Esse segundo gringo, o tal de Klauss, com dois “esses”... Esse também é ou era... Vai saber onde esse sujeito anda... Esse também é ou era muito curioso, muito abelhudo... Sempre andando por essas matas, fuçando, espionando, perguntando, catando folhas, bosta de bicho, fotografando e gravando tudo... Ficava por horas, dentro de uma barraca que ele armou no terreiro da Sede do Seringal... Nessa barraca ele ficava um tempão folheando uns papeis amarelados, escutando umas gravações de um antigo gravador com fitas cassete... Esse gringo Klauss, com dois “esses” é ou era muito esquisito... O povo daqui ria muito da ignorância do gringo sobre as coisas da floresta, mas sabe como é que é, né Doutor! O povo ria, mas, pela esquisitice do gringo, o matuto estava sempre com um pé atrás com o alemão do nariz vermelho... Sabe por que o Quati é difícil de ser capturado, Doutor? Não? É por que o Quati é um bichinho desconfiado pra dedéu, Doutor! Igualzinho o povo daqui, “seu” Delegado...

Então o senhor acha que eu, com toda essa conversa fiada, estou enrolando o senhor para livrar a cara do meu amigo Joca... Livrar a cara do Joca de quê, Doutor, se o meu amigo não tem nada a ver com o sumiço do alemão esquisito?

Sim? Claro! Claro! Perfeitamente! Vou mostrar para o senhor a prova que eu falei para o senhor... Dona Maroca! Ô Dona Maroca! MADRIIIIINHA...!!!

Oi, Madrinha! Desculpe os gritos, é que o Doutor aqui está querendo ver umas coisas... Quero dizer... Os documentos e os “trecos” que estão naquela sacola de couro que o Joca deu para a senhora guardar antes dele sumir na mata a procura daquele gringo que sumiu... A senhora lembra onde a sacola está? Não se preocupe, Madrinha! Esse moço é Delegado de Polícia e, certamente, o Joca também entregaria a sacola e tudo o que tem dentro para ele...

O quê, Madrinha! Fale mais alto, por favor! O Joca, além da sacola, também deixou um bilhete? Tudo bem, Madrinha! Pode entregar tudo para mim que eu repasso para o Delegado.

‘Taí, “seu” Delegado! Dentro desta sacola estão os documentos que foram encontrados na barraca do gringo Klauss, com dois “esses”, uma caixa lacrada que é claro, nem o Joca e nem eu abrimos...

Delegado, tem mais essa pequena mochila que o gringo deixou na clareira quando sumiu...

Madrinha, se me faz o favor, pegue aquele envelope amarelo que eu pedi para a senhora guardar... Lembra? Aquele envelope grande, meio manchado de café...

Obrigado, Madrinha! Sim! Sim! Aceito mais um pouquinho de café... E o senhor, “seu” Delegado, aceita? Não? Tudo bem, Madrinha, pode ir cuidar das suas coisas... Eu me entendo aqui com o Delegado...

O quê, Madrinha? Sobre aquele outro assunto? Certo! Certo! Pode deixar! Na hora certa eu falo para o Delegado... Não! Não, “seu” Delegado, pode deixar “seu” Delegado, assim que o senhor terminar de examinar todo o conteúdo da sacola de couro e da mochila, eu vou dividir com o senhor, o teor do que está escrito aqui neste envelope... Aqui, “seu” Delegado, neste envelope, tem uma tradução do alemão para o português de algumas páginas do Diário do alemão Klauss, com dois “esses”...

Veja bem, Doutor! Está tudo aí nessa sacola de couro... As anotações do gringo Klaus, com um “esse”, mais o gravador com fita cassete dele... Antigo esse “treco” desse gravador, hem? Faz tempo que eu não via um “bicho” antigo desse... Tem até um rolo de filme “Super 8”, porém, não sei nada sobre o conteúdo da fita... Calculo que seja sobre passarinhos... Pelo menos na etiqueta está escrito “Jungle birds Guaporé”... A tradução que fiz está correta, não está Doutor? De “birds”? Passarinhos? Certo! Eu sabia que essa palavra em inglês significava passarinho... Doutor, por que será que o gringo não escreveu em alemão, a língua dele? Tudo bem... Tudo bem, Doutor! O senhor tem razão, isso não vem ao caso agora...

Olhe só, Doutor! Perceba que as coisas, os “trecos” que estão dentro da sacola de couro têm o aspecto de coisa antiga, enquanto que os outros “trecos” que estão na mochila são mais novos... Percebeu?

Certo! O senhor tem toda a razão... Melhor eu não me meter... Mas como que eu não vou me meter nesse assunto, Doutor? Se até o senhor chegar aqui fazendo um monte de perguntas, os “trecos” dos alemães estavam comigo e com o Joca?

O senhor quer saber se nós mexemos nessas coisas? É claro, Doutor, que nós reviramos e olhamos todos os pertences dos alemães. Como não haveríamos de dar uma olhada...? Afinal, estava tudo dentro da barraca do outro alemão... O que sumiu por último... E, Delegado, veja bem, a barraca estava aí, ao tempo, pegando sol e chuva... Abandonada... O senhor queria o quê?

Doutor! Já terminou de examinar as tranqueiras do gringo Klaus, com um “esse”? Não? É para eu esperar o senhor examinar e catalogar todo o conteúdo da sacola? Tudo bem, Doutor, o senhor é quem manda... Doutor, o senhor fica aqui, na boa, que eu vou ajudar a Madrinha preparar umas “ventrecha” de Pirarucu para o nosso almoço...

O Doutor alguma vez já comeu uma “ventrecha” de Pirarucu assada? Não? O doutor nunca ouviu falar dessa tal de “ventrecha”? Pois então fique tranquilo, Doutor... Depois que o senhor comer uma “ventrecha” preparada pela Madrinha, o senhor, quando acabar de comer, vai lamber os beijos, Doutor.

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Tudo bem, Doutor, voltei só para trazer um recado da Madrinha para o senhor... Ela mandou dizer que o senhor vai comer uma iguaria que é a especialidade dela... Doutor, a Madrinha vai servir para o senhor um prato tão bom, mas tão bom, que a gente come de joelhos e rezando... A Madrinha vai fazer “ventrecha” de Pirarucu assada acompanhada de “chibé” de farinha d’água com bastante pimenta “murupi” macetada no molho de “tucupi”... Mãe do Céu! Chega eu fiquei com a boca cheia d’água!

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Vixe, Doutor, nunca pensei que o senhor fosse comer tanto assim! Minha Mãe do Céu! O senhor gostou mesmo das “ventrecha” não é mesmo? Ave Maria, Delegado, esse olhos vermelhos são por causa da pimenta murupi, é? Não se apoquente não, Doutor, a pimenta murupi dá gosto ao peixe, arde, mas depois passa e deixa a gente com gosto de quero mais... De qualquer forma, Doutor, se o ardor continuar forte, o senhor pode ir até o quintal e comer uns bagos de bacuri... Esse bacurizeiro da Madrinha dá uns bacuris tão doces que até parecem feitos de açúcar.

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Como é que é Doutor? Agora o senhor quer saber mais é sobre o primeiro alemão? O gringo Klaus, com um “esse”? Sim Doutor??? Sobre o segundo alemão, o gringo Klauss, com dois “esses”, a gente fala depois? Beleza! Doutor? Será que o Doutor não quer dar uma descansadinha aí na rede do alpendre da casa? Quer não? E um cigarrinho de palha? Aceita um? Não? Não quer nada, nada? Nadica de nada?

Certo! Certo! Como o senhor quiser, Doutor!

Tudo bem então, Doutor! Vou pedir para a Madrinha ir buscar o gringo Klaus, com um “esse”, para o senhor conversar com ele, embora eu ache que não vá adiantar muito não, Doutor... O gringo não fala coisa com coisa... Fala pouco, e o que fala é “inteiriço” que nem cantiga de grilo... O gringo fica repetindo o tempo inteiro: “MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON”... “MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON”...

O gringo, Doutor, só fala isso: “MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON”... “MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON”... O tempo inteiro.

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Então, Doutor, quando o Padre Rolf, lá de Guajará-Mirim, passou por aqui, eu perguntei para ele o que significa essa cantilena do gringo de ficar repetindo o tempo inteiro: “MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON”... E o padre que tem parentesco com alemão - ele é lá de Santa Catarina e é vermelho que nem um tomate - me explicou tudinho o que o gringo quer dizer com “MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON”... O Padre Rolf me disse que o que o gringo quer dizer com “MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON” é, olhe só aqui neste papel que o Padre me deu... Está vendo, Delegado, está escrito aí, ó... “Mein Gott! Ein Elf Amazon!”... E isso aí que está escrito é na língua dele, é alemão.

E aí, Doutor, eu perguntei para o Padre Rolf o que significa, em brasileiro, as palavras “MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON”, e aí, Delegado, ele me disse que é a mesma coisa que “MEU DEUS! DUENDE DA AMAZÔNIA” ou “MEU DEUS! UM DUENDE AMAZÔNICO!” ou ainda, o mesmo que “MEU DEUS! UM ENCANTADO DA FLORESTA!”, só que das florestas da Alemanha... Esse tal de “NÉLFE” é um encantado das matas da Alemanha... Vai que significa uma “Matinta Pereira”, um “Curupira”, um “Boto” ou até um “Mapinguari”, lá da terra dele. Pode um negócio desses, Doutor?

Entendeu a semelhança, Doutor? A ligação dos nomes... Desse tal de “NÉLFE” e os nossos ENCANTADOS? Os nossos “Entes da Floresta”?

Não entendeu não? Não atinou com a ligação dos significados? Não tem importância, continue lendo e examinando os papéis dos gringos que no final o senhor vai entender... Eu também custei um tempão pra ligar as coisas, Doutor! Pra dar liga nos entendimentos!

Pronto, “seu” Delegado, minha Madrinha chegou com o gringo! Está vendo, Doutor, como parece cantiga de grilo? O sacana do gringo fica repetindo a mesma coisa, o tempo inteiro, escute só: "MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON".

Doutor, o senhor quer saber? Na minha modesta opinião, eu acho que esse gringo bateu a biela do juízo, ou seja, ficou doido varrido... Abestalhado de vez!

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Como o senhor pode ver e ouvir, Delegado, estamos aqui a mais de uma hora, parados, com o senhor fazendo mil e uma perguntas para o gringo e ele só faz repetir para o senhor o que ele fala para mundo aqui pelo seringal: "MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON".

“Seu” Delegado, o senhor me dá licença por alguns minutos que eu vou ter que ir até a Sede do Seringal para pegar uns papéis que, na verdade, são a tradução literal de todos os documentos que foram encontrados na barraca do segundo gringo, o de nome Klauss, com dois “esses”... Essa tradução foi feita pelo Padre Rolf com a condição de que no dia em que a polícia ou os parentes do gringo Klaus, com um “esse”, aparecessem por aqui, era para que eu entregasse para um dos dois ou o que aparecesse primeiro, e, nesse caso, o senhor chegou primeiro, o que, obviamente, além da primazia, tem o privilégio de ser da polícia.

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Doutor, como o senhor pode ver e ler aí nessas folhas traduzidas do Diário do gringo Klaus, com dois “esses”, o gringo Klaus, com um “esse”, na verdade, é o pai do segundo gringo, o Klauss com dois “esses”... Será esse o motivo, Doutor, para a diferença de “esses” no final de cada nome? Arre égua! Esses gringos são muito doidos... É uma pena que eu tenha me esquecido de fazer essa pergunta para o Padre Rolf... Tomara que quando o Padre passar novamente por aqui eu me lembre de fazer essa pergunta... Não vai servir para nada, mas é só para matar a curiosidade. Mania de matuto mesmo... O senhor entende né, Doutor?

Está escrito aí também, Doutor, no diário do primeiro gringo, o pai, que ele na verdade, andava por estas matas com a intenção de capturar um Uirapuru Branco... O dissimulado do gringo pai queria mesmo era levar o passarinho mágico daqui da floresta, igualzinho o gringo filho tentou fazer na noite da Lua Grande que aconteceu recentemente...

Diz aí também, Doutor, que o gringo pai já havia mandado vários exemplares de mudas de plantas e sementes para a Alemanha e que, o troféu maior ele estava esperando capturar na noite do dia em que eu o deixei lá na clareira... Doutor, o gringo pai tinha tudo pensado e planejado, inclusive a desculpa da carona que o filho-da-puta pediu quando eu passava pelo Igarapé...

Doutor, o sorrateiro do gringo pai já sabia da minha rotina, ele já sabia que eu passaria pelo Igarapé para fazer o meu serviço de catalogar a localização das árvores de copaíbas, andirobas e palmeiras de patauá... Doutor, esse gringo pai que está abestado aí, ao seu lado, é um tremendo de um “fio-de-uma-puta”, Doutor...

E o filho dele, Doutor, puxou o pai... Doutor, o filho dele é cuspido e cagado o pai... O gringo filho, Doutor, não puxou o pai dele não, ele herdou a safadeza do gringo velho.

O senhor duvida Doutor? Então continue lendo os papeis do gringo filho, ou melhor, deixe-me adiantar alguma coisa para o senhor...

Doutor, pelo que eu pude entender quando li a tradução do Padre Rolf, o gringo Klauss com dois “esses”, o filho, veio ao Brasil e consequentemente ao Vale do Guaporé para seguir os rastros do pai desaparecido e, pelo jeito, continuar o trabalho que o pai fazia há mais de trinta anos atrás, ou seja, contrabandear animais e plantas para a terra dele, a Alemanha... Gringos safados!

O gringo pai, Doutor, quando veio ao Brasil, já veio de caso pensado... O sacana já sabia tudo sobre o Uirapuru Branco e seu canto divino... Ele só não sabia nadica de nada era sobre o Curupira... E aí, Doutor, o senhor se pergunta como é que esse “beradeiro” metido a doutor sabre sobre tudo isso? Simples, Doutor! Lendo a tradução do Diário do gringo! Está tudo lá... Toda a história... Até o Padre Rolf ficou assombrado com a ousadia do gringo.

Olhe só como a Mãe Floresta sabe das coisas, Doutor... Como o mundo é pequeno e, como um pião, dá voltas e mais voltas no mesmo lugar fazendo acontecer coisas bem estranhas e, às vezes, até bem previsíveis... Duvida? Então veja só:

O gringo Klaus, com um “esse”, veio ao Vale do Guaporé para contrabandear espécimes da nossa fauna e flora... Certo?

Como é que é, Doutor? Como é que eu sei que o gringo só queria contrabandear os bichos e as plantas? Doutor...! Desculpa aê, Doutor, mas o senhor é muito ingênuo para um policial... Vôte!

Que é isso, Doutor? Ficou arreliado por quê? Fiz só uma observação... Mas é que às vezes o senhor me dá a impressão de ser muito tolinho para um Delegado... Desculpa! Desculpa! Desculpe aê, Delegado...! Eu não tive a intenção de ofender... “Por supuesto” como dizem os bolivianos...

Doutor...! Acompanhe meu pensamento... Se o gringo não tinha nenhuma intenção de fazer contrabando, por que então, o gringo não pediu permissão para os órgãos competentes? Tanto o pai quanto o filho? O pai não pedir permissão ainda vá lá... Há trinta ou quarenta anos atrás pouco se ouvia falar em biopirataria... Mas o filho...? Poxa...! Atualmente, o que mais se ouve falar é em biopirataria... Contrabando e roubo de fauna e flora, inclusive sangue de índios... Por que o gringo filho, o Klauss, com dois “esses”, não entrou em contato com a UNIR, a Universidade Federal de Rondônia ou com a UFAM, a Universidade Federal do Amazonas ou mesmo uma Fundação ou uma dessas ONGs fajutas que existem aos montes espalhadas por toda a Amazônia e se credenciou? Por que, hem?

Mas não! O gringo filho entrou sorrateiro em Rondônia, no Brasil... Por onde? Por onde, hem? O gringo filho entrou pela Bolívia, que faz fronteira com o Estado, igualzinho ao pai... Seguindo os passos dele... Eu olhei o passaporte dele, do gringo filho, e o passaporte do gringo pai que o filho encontrou escondido nas raízes da Sapopemba lá da clareira que já lhe falei... O gringo pai, na época em que esteve aqui, pouco antes de sumir, de caso pensado, mandou uma carta para o filho informando onde ele encontraria as tralhas do pai, caso lhe acontecesse alguma coisa... Está tudo aí, no Diário do gringo filho que o Padre Rolf traduziu para mim... Pode ler aí, Doutor!

Doutor...! Tenho ou não tenho razão de, de vez em quando, ficar sacaneando esses gringos... Chamando-os de filhos-da-puta e tudo o mais?

Nesse Diário aí que o senhor tem nas mãos, Doutor, diz também que o gringo pai fez diversas caminhadas com um caboclo daqui da região...

Doutor, eu lhe dou um doce para o senhor adivinhar o nome do caboclo de trinta e poucos atrás...

Isso mesmo, Doutor! O nome do caboclo era Joca Aruanã, pai do jovem caboclo que o senhor está procurando... Meu amigo Joca que está embrenhado na mata à procura do gringo filho, o tal de Klauss com dois “esses”... Quem diria, hem Doutor? Essa vida dá voltas e voltas, “nénão”?

Doutor, eu não fiquei nem um pouco admirado com o interesse do gringo filho pelo meu amigo Joca... O sacana do gringo, de certo, percebeu a coincidência de nome e a semelhança física dos dois Jocas...

Como é que é? O senhor quer saber como é que eu sei que o gringo filho sabia da semelhança física dos dois Jocas? Simples! Por que o gringo filho tem uma fotografia aí no meio das tralhas dele onde aparecem os dois pais, o dele e o do Joca... Pode procurar aí, Doutor, deve estar dentro desse envelope amarelo desbotado... Achou? Então...! Veja só o caboclo aí ao lado do gringo pai... Veja que o primeiro Joca está em pé em uma canoa, sorrindo e segurando um enorme Tucunaré, e ao lado dele está o gringo pai sentado no banco do piloto e segurando um remo... Doutor, preste atenção aí, na pá do remo... Está vendo um peixe pintado? Pois é! Esse peixe aí é um Aruanã... Peixe que deu origem ao apelido dos dois caboclos, o pai e o filho... Viu? Ou o senhor ainda precisa de prova maior?

Sim Madrinha...!!! Se a gente quer mais café? Eu aceito sim, Madrinha! E o senhor, aceita, Doutor? Não? Tudo bem, Madrinha, traga somente para mim, “brigado”!

Doutor, depois que o Padre Rolf traduziu os diários dos dois gringos - as traduções, como eu já lhe falei, estão dentro desses envelopes pardos aí, aos seus pés – eu fiquei um tempão lendo, examinando e refazendo os passos do gringo pai e do gringo filho, e então eu cheguei a uma conclusão que, eu acho que o senhor também, no tempo certo, vai chegar...

Acompanhe o meu raciocínio comigo, Doutor... Pelo que eu entendi, o gringo pai fez exatamente a mesma cagada que o filho dele fez trinta e poucos anos depois, ou seja, tentou capturar o Uirapuru Branco, no mesmo lugar, na mesma hora, e do mesmo jeito estabanado que o pai... E aconteceu o quê, Doutor?

Aconteceu que o Curupira encantou o gringo Klaus, com um “esse”, o gringo pai, e o transformou em Caititu Chefe para servir de montaria na direção do bando de cateto, do mesmo jeito que castigou o gringo filho, o tal de Klauss, com dois “esses”... ‘Tá comigo no raciocínio ou não, Doutor?

Não, Doutor? O senhor acha que eu estou fantasiando? Que eu estou imaginando coisas? Que são minhocas da minha cabeça?

Tudo bem, Doutor...!!! Então o senhor me explica o seguinte: “Como é que um gringo desaparece, assim... Do nada...! E o outro desaparecido há mais trinta anos, aparece, assim... Do nada”?

Tem outra coisa, Doutor! Como é que o senhor me explica que as tralhas do gringo pai, com datas de trinta e poucos anos atrás, - pode olhar aí na tradução do diário do primeiro gringo – estão de posse do gringo atual, do filho? Como é que o filho sabia a exata localização da bolsa do pai?

E tem mais... Doutor! Explique-me por que esse gringo abestalhado fica repetindo, sem parar, "MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON", cuja tradução livre é: “MEU DEUS! UM ENCANTADO DA FLORESTA”!

O sacana fica repetindo essa cantilena, dia e noite, parecendo cantiga de grilo... Arf! A mim me parece de uma clareza cristalina... O gringo fica repetindo "MÁINE GÓTI! ÉNI NÉLFE ÉMAZON" somente por que ele viu alguma coisa extraordinariamente inusitada... Dizendo melhor ou falando a língua do povo aqui do Rio e das Florestas: “Esse gringo deve ter visto o diabo chupando manga” ou então “Esse gringo viu uma coisa tão maluca, mas tão maluca que tirou o juízo dele”.

Doutor, não tem outra explicação... Foi isso que aconteceu...

Resumindo, “seu”Delegado! O gringo pai quando mexeu com o passarinho mágico do Pai da Floresta, dizendo melhor, quando tentou roubar o Uirapuru Branco do Curupira, como castigo, foi transformado em Caititu Montaria do Deus da Floresta e ficou todos esses anos vivendo na floresta como porco do mato, CATETO... A mesma coisa aconteceu com o filho dele décadas depois, e tem mais, Doutor, o gringo filho vai ficar como montaria do Curupira até ser substituído por outro alesado igual a ele que cometer outra besteira semelhante... ‘Taí a história do Joca Aruanã, meu amigo, filho do velho Joca que também foi meu amigo para confirmar.

Como é que é, Doutor? O senhor não acredita nessas fantasias? Que isso é crendice de “beradeiro”? Então tá! Fica o dito pelo não dito!

Doutor, além das tralhas dos gringos, o senhor vai precisar de mais alguma coisa? De mais algum detalhe? Não? Por enquanto não? O senhor tem tudo gravado aí, né? Então está bem! Já está anoitecendo e daqui a pouco a Lua vai sair e, não sei se o senhor lembra, - eu já lhe falei - mas aqui na floresta, em noite de Lua Cheia, acontecem coisas muito estranhas... Por isso acho melhor a gente ir andando de volta para a Sede do Seringal...

Como é que é Doutor? Não preciso me preocupar? O senhor quer voltar sozinho...!?

De jeito nenhum! Nananinanão! De jeito nenhum que eu vou deixar o senhor ficar andando sozinho pela floresta... Doutor, eu sei que o senhor não sabe, mas é exatamente nessas horas do lusco-fusco, na transição entre o dia e a noite que os espíritos da floresta mais se agitam...

Como é? Para eu deixar de crendices, Doutor? Delegado, não são crendices, são fatos corriqueiros das matas e dos rios... Quem tem juízo, aqui na mata, evita perambular entre o fim do dia e o início da noite, assim como no fim da noite e início do dia, ou seja, no lusco-fusco da madrugada ou da tarde... Delegado, essas horas são horas mágicas nas florestas e nos rios... São horas do embate entre as forças das Entidades Diurnas e Entidades Noturnas... São horas em que as Luzes e as Trevas brigam pela supremacia no Vale do Guaporé... Deu para entender, Doutor? Não? O senhor não acredita nesse tipo de coisa? Por mim tudo bem! Quem puxa a tarrafa é quem jogou...

Então o senhor faz questão de voltar sozinho? O senhor não acredita em crendices e não vai se deixar influenciar por bobagens de ribeirinhos, ainda que letrados, mas mesmo assim, ribeirinhos supersticiosos... Beleza então! Se o senhor quer assim... Se o senhor faz questão, não sou eu quem vai dizer que não!

Uma última coisa, Doutor! O senhor pelo menos tem uma lanterna? Está com a sua arma?

O quê? Não tem lanterna, mas está armado... Doutor, infelizmente nem eu e nem a Madrinha temos lanternas, mas temos “porongas” sobrando aqui no tapiri... Se o senhor quiser, pode levar...

Madrinha, por favor, coloque querosene e pavio novo naquela “poronga” grande que era do Padrinho e entregue para o Delegado... Madrinha, não se esqueça de dar para ele uma caixa de fósforos também.

O que é o quê, Delegado? “Poronga”? Bem...! “Poronga” é uma espécie de lamparina ou candeia com um suporte na base para fixar na cabeça... Como se fosse um chapéu... Serve para iluminar os caminhos pela mata... É a lanterna do caboclo...

A “poronga” é utilizada por “mateiros” em suas caçadas noturnas e pelos seringueiros nas madrugadas de trabalho quando estão extraindo o leite da seringa... É uma ferramenta de trabalho dos seringueiros que andam nas madrugadas pelas matas e dos ribeirinhos que navegam à noite pelos rios, igarapés e lagos facheando traíras, jatuaranas ou mesmo tucunarés...

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Pronto, “seu”Delegado, aqui está a “poronga”... O senhor acende o pavio, encaixa esse suporte na cabeça... Assim... E pronto! É só caminhar que a candeia ilumina o caminho... Viu como é fácil? Essa folha de flandre aqui, por detrás da candeia, fica direcionada para a nuca, enquanto que a lamparina fica direcionada para a testa... Assim...! Viu?

“Seu” Delegado, me diga uma coisa... Como é que o senhor, sozinho, vai fazer para levar as “tralhas” dos gringos e mais o Klaus, com um esse, esse abestado? Ahm! Não vai levar o gringo agora, não? Vai deixa-lo aqui e vem amanhã com mais gente e cavalos para levar tudo? Ah! Vai deixar as “tralhas” também? Vai tudo amanhã, com o gringo? Agora, só vai levar o diário do gringo? Qual deles? Deles como, “seu” Delegado? Os diários, ora! Vai levar os dois diários? O do pai e o do filho? Ahm...! Vai levar os dois? Beleza então!

Já vai andando, Doutor? Então tá... Até logo e tome muito cuidado com as cobras pelo caminho. Onças, não precisa se preocupar... Por essas horas, entre o dia e a noite elas estão pelas beiras dos rios, igarapés e lagos... Estão indo beber água... Então tá! Tchau!

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Madrinha...! Madrinha...! Ô Madrinha...! ‘Tá me ouvindo? O Delegado já foi embora... É outro abestado também... O sujeito é metido a valente... Ele acha que uma pistola, um revólver vai resolver qualquer problema dele aqui na mata... Vai pensando, Delegado! Enfim, sua cabeça, sua sentença!

Madrinha, por favor, bote o gringo lá quartinho dos fundos e tranque a porta... Enquanto isso eu vou lá para os fundos arrebanhar os catetos... Num vê que a Lua não tarda e já, já, aparece aí por cima das copas das árvores... Hoje é dia de visitar o Lago do Espelho... Aqueles pescadores que estão usando bombas para pescar bem que estão merecendo a minha visita... Eles não perdem por esperar, né não, Madrinha?

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Vamos lá, gringo Klaus, com dois esses... Acho que você já está bem descansado para uma boa galopada... Fica tranquilo, “fio-da-puta”, dependendo do resultado da minha visita, lá no Lago do Espelho, quem sabe até eu te liberto...

Madrinha, quando a senhora passar pelo Delegado, não se esqueça de ficar protegida pelas copas das árvores... Lembre que o abestado está armado... Dê somente uns dois ou três gritos bem sinistros da Matinta e depois voe para o Lago do Espelho, se demorar, demoro só um instantinho e em pouco tempo eu chego por lá...

O quê, Madrinha? O que é que eu vou fazer agora? Bem, eu vou montar no gringo e vou galopar o safado, junto com os outros caititus até o Lago... Mas antes eu vou arrebanhar todos os catetos e faze-los bater os dentes e grunhirem um bom tempo ao redor desse Delegado abestado... Quero ver se ele “tiene cojones” mesmo, ou é só garganta... Ainda mais depois que a senhora arrepiar os cabelos dele com os gritos da Matinta Pereira...

João Pessoa-PB

abr/2013.