A CONGREGAÇÃO

A CONGREGAÇÃO

Foi no ano de mil novecentos e oitenta que eu vi, e nunca esqueci que Deus ama o homem de verdade. Eu estava no Recife, uma cidade que na época, me dava arrepios e arroubos de alegria. Certo dia um pastor alto, forte e velho se aproxima de um jovem mancebo e lhe diz: “Você tem dois anos de curso; ora muito, e é fiel ao Senhor; quer trabalhar comigo? Pago o salário mínimo”. O jovem esfregou os dedos nos olhos como sempre fez em momentos de dúvida e respondeu: “Por que não?” Aquele rapaz era filho de família nobre de Arco Verde, seu pai, o coronel Tibúrcio lhe dera a mais rigorosa educação presbiteriana: “Meu filho, um homem de Deus deve viver sem ter que se envergonhar de nada”. O jovem seminarista Messias nunca se esqueceu das palavras de seu velho pai fundamentalista.

- Olha Messias, a igreja é pequena, mas, Deus ama esse rebanho cuide dele com muito amor.

- Sim pastor. Serei zeloso com a casa do Senhor.

Messias pegou o ônibus elétrico até o centro e seguiu a linha do Rio Capibaribe até as proximidades de uma fabrica de margarina. Do lado esquerdo do rio onde este faz uma curva estava sobre sua maré a favela “Dois Coelhos”. O rapaz olhou a entrada da favela, parou um pouco, fez uma oração mental dizendo: “Senhor em tuas mãos eu me entrego”. A favela Dois Coelhos era uma das mais perigosas do Recife, na verdade, era uma latrina bem no meio do centro da cidade. Quando chovia, as fezes passeavam por baixo das tábuas que serviam de calçadas improvisadas para as pessoas andarem. Era um lugar de muita pobreza. Acompanhei o rapaz em sua aventura até o dia em que o Todo Poderoso o tirou de lá e para onde o levou não sei.

- Maria Samuel este é o nosso pregador. Disse com muita alegria a irmã Maria de Lurdes.

- Este menino? Messias sorriu e disse com gentileza: “Sou, sim, irmã”.

As seis pessoas que formavam a direção da congregação receberam o seminarista com muito amor, exceto, o irmão Zé do Peixe. Esse cidadão vendia peixe na feira, por isso, ficou conhecido como Zé do Peixe. O homem era quase analfabeto, contudo, queria dirigir a congregação composta, na sua maioria, por mulheres e crianças.

- Isso num vai dar certo! Um rapaz solteiro!

- Deixe de ser falador Zé! É só um rapaz que veio aprender, depois ele vai embora e você fica!

- Mas, a vontade de Deus é que um pai de família assuma o rebanho.

- Zé, Zé! Olha essa língua!

Os primeiros dias na congregação foram difíceis para o jovem Messias. A cada palavra dada por ele, Zé do Peixe o interrompia para acrescentar alguma coisa. Com essa conduta de seu Zé do Peixe, a congregação se dividiu. De um lado estava o grupo de Zé e do outro, o grupo de Messias.

O jovem seminarista foi procurar apoio no pastor que o convidara; contou os fatos e disse: “Lamento, mas, não posso”. O velho pastor Pinto o exortou dizendo: “Você está com medo da cruz só de olhar para ela?” Messias voltou para o seminário com essas palavras martelando em sua cabeça. “Só de olhar para ela?” Messias foi orar a Deus. Quando todos dormiam, o jovem foi ao quarto de oração pôs o rosto em terra e chorou angustiosamente perante o seu Criador: “Meu Deus aceitei, por certo, por vaidade esse fardo, e agora?” Ele repetiu isso por várias vezes em sua prece ao Todo Poderoso. O sol nascia irritado na maravilhosa cidade do Recife quando o jovem se retirou do quarto de oração. Seu coração estava quieto finalmente.

“Irmãos, orei a Deus e o que sinto na alma é dedicarmos nosso tempo a oração. A igreja fechará as portas ao público; teremos apenas cultos de oração somente para os crentes até que Deus expresse a sua vontade”. Zé do Peixe pulou do banco e se pôs em pé: “Isso é um absurdo, onde já se viu fechar uma igreja!” O tumulto foi grande aquela noite. Zé do Peixe fulminava o jovem seminarista com palavras e olhares que mais pareciam setas envenenadas. Mas, o mancebo havia falado com Deus, e eu estava lá quando o Senhor o tocou.

A primeira semana de oração foi muito pesada. Não havia comunhão entre os grupos, além do mais seu Zé do Peixe dava sempre um jeitinho de criar uma contradição. Às vezes ele pedia para cantar um hino do hinário oficial, Messias era péssimo nessas coisas, e com isso se sentia desconfortável diante do povo. “Um pastor que não sabe o hinário pentecostal?” A irmã Maria Samuel, uma noite teve um sonho que o seminarista Messias ganharia almas em Dois Coelhos. A oposição disse que o sonho era coisa da carne, o pequeno grupo de Messias cria que era o Senhor. A segunda semana, as partes não haviam ainda se entendido, mas, Maria das Dores a diaconisa que apoiava Zé do Peixe externou muita simpatia ao irmão Messias: “O senhor estava inspirado hoje!” Messias não se deixava levar por nenhum dos grupos. O mancebo havia aprendido em Provérbios que “Maldito é aquele que confia no homem”. Parece mesmo que esse animal amado por Deus faz muita confusão. Zé do Peixe solicitou a presença do pastor presidente para esclarecimentos.

- Antes, eu quero saudar a amada igreja com a paz do Senhor. Essas foram as palavras iniciais de Zé do Peixe depois que lera o salmo 147 e tentara explicar cada versículo. A igreja com paciência ouvia a Zé do Peixe até que educadamente o pastor Pinto toma a palavra.

- Não vejo o porquê dessa reunião. Depois da chegada do irmão Messias a igreja parece mais bonita, mais animada.

- É porque o pastor num tá aqui todo dia. Messias fechou a igreja. Acusou Zé do Peixe o seminarista.

- Mas se ele achou ser importante, então, obedeçam ao rapaz; tenho muitas esperanças nele, e muito mais no Senhor. A reunião terminou sem condenarem o pobre Messias. Zé do Peixe voltou para casa a conversar com sua esposa.

- Mulher! Vou sair dessa igreja. Agora, num posso nem mais dar uma saudação. Esse rapaz é todo metido, Deus me perdoe!

- Homem tenha paciência, o rapaz só tá querendo arrumar as coisas do jeito dele, depois, chega sua vez. Mas, Zé do Peixe não se conformava. Passou a terceira semana, a mesma coisa, a quarta, tudo do mesmo jeito. Até que uma noite algo muito especial aconteceu na congregação. As noites de oração eram longas; Messias melava as calças do terno com a lama do chão de cimento úmido por causa da maré que passava por baixo das tabuas, a igreja era toda feita de palafita. Por causa disso, a irmã Maria Samuel fez uma almofada de tricô para os joelhos de Messias. Isso causou fúria em Zé do Peixe que o atacou com piadas. Entretanto, o seminarista Messias nada dizia; nada respondia. O rapaz orava todos os dias três vezes, e quando ia dormir encomendava a alma ao seu Deus. Já perto do final da oração ouve-se o barulho de pessoas na porta da igreja. Era um senhor de pele parda, baixinho, sem camisas e sem dentes que pedia ajuda. Seu filho havia levado um tiro. “O que eu posso fazer?” pensou Messias. A igreja ficou em oração enquanto Messias, Zé do Peixe e Maria de Lurdes vão até a casa do rapaz. A família chorava, e o rapaz agonizava. Na favela Dois Coelhos ninguém entrava. Ao ver o estado do moço, e certo de sua morte, Messias prega sobre a morte e a ressurreição em Cristo. O apelo foi feito, o moribundo hemorrágico não faleceu, a divina providência providenciou um transporte. O rapaz foi a primeira alma de Messias. Depois dele, as outras foram chegando.

Zé do Peixe inconformado com o sucesso de seu adversário resolveu pedir à igreja que orasse pelo seminarista, pois, o mesmo precisava de uma auxiliadora. “Pastor de rebanho solteiro num presta”. Messias não estava interessado nessas coisas; a única coisa que ele queria era terminar o curso e voltar para Arco Verde. O fermento vingou, as mulheres começaram a fazer planos para e com o pobre Messias. “É mesmo, um rapaz tão simpático, sozinho aqui!” Esse sentimento fez uma moça distinta se aproximar do seminarista.

“Desculpe Darelucia, mas, eu tenho planos de fazer missões internacionais”. Essa foi a primeira desculpa de Messias.

“Desculpe Sebastiana, mas, pretendo estudar Hebraico em Israel”. Essa foi a segunda desculpa do seminarista. O rapaz nunca fornicou em toda a sua vida. Zé do Peixe, então, como num passe de mágica deduz: “O seminarista é gay!”

A princípio o povo não acreditou; depois, as conversas começaram a aparecer: “Vi Messias a conversar com um rapaz descrente em plena Praça Castro Alves”. Outro disse: “Vi uma pessoa muito parecida com Messias assistindo filme pornô” A imagem do jovem obreiro estava ameaçada. Messias resolve chamar o Pastor Pinto. Sem muito embaraço, Messias vai direto ao ponto: “Nobre colega, Pastor Pinto; o motivo de sua presença aqui são as calúnias levantadas contra mim; acredito ter o direito a defesa, principalmente diante do chefe maior de nossa denominação”. Pinto recebe a palavra, explica algumas coisas e depois diz: “Apresentem as provas!” O silêncio foi imenso no recinto. Mais uma vez Messias derrotara Zé do Peixe. Todavia o Poderoso Deus tinha algo muito especial naquela noite. A filha de Maria Samuel foi batizada no Espirito Santo e falava em línguas estranhas. A comoção tomou conta de todos; até Zé Pinto chorou de alegria em ver a primeira ovelha da congregação cheia do Espírito do Santo.

- Mulher, aquilo era língua da carne. A menina na verdade falou aquilo para desviar a atenção de Messias.

- Homem de Deus! Cuidado com a mão do Senhor!

Finalmente os dois grupos se uniram e a congregação começou a andar. O que mais me chamou a atenção no ministério de Messias foram os funerais. Nos três anos vividos com a congregação não havia um mês sem um culto fúnebre. Dois Coelhos era uma chaga social bem no meio do Recife. A pobreza e a miséria não só tirava o brilho das pessoas, mas, também a dignidade e a honra. A lei em Dois Coelhos era a do mais forte. Isso, talvez explicasse a morte precoce de tanta gente. Um dia, após a realização de um funeral, Messias medita sobre o que ele estava aprendendo ali: “Senhor, pra que minha pessoa aqui?” “Eles se contentariam mesmo com Zé do Peixe”. O jovem retornou ao seminário sem uma palavra.

A congregação passou a ser igreja, e de igreja, uma igreja grande; Messias estava muito alegre com o Senhor. Zé do Peixe, por outro lado, continuava do mesmo jeito. Ou como dizia sua mulher: “O homem arruinou de vez”

Zé do Peixe decidiu dizer a Messias tudo que pensava dele: “Primeiro, você ainda não foi ordenado pastor; segundo, você fala e ninguém entende; terceiro, seu terno é o mesmo todo culto; você num sabe, mas o povo daqui te chama de azulão”. Messias ouviu com paciência seu opositor irmão. Tentou se aproximar dele dizendo-lhe: “Somos filhos do mesmo Deus”. Zé do Peixe, então cometeu seu último desatino ao dizer assim: “O mesmo Deus não”. A igreja continuou andando; Zé do Peixe sumira aos poucos o povo começou a fazer perguntas: “Será que Zé do Peixe é doido?” “Será que ele foi para outra igreja?” As perguntas eram muitas, mas, nada do homem. Sua mulher decide chamar a polícia. “Chamei a polícia e nada dela aparecer”. Messias convoca a igreja para fazer um clamor em favor de Zé do Peixe. Os irmãos começaram a oras as nove da manhã de Sábado; às dez da noite do mesmo dia houve um tiroteio bem na porta da igreja um rapaz cai baleado e antes de falecer diz sussurrando: “Zé do Peixe está morto”. A igreja caiu em profunda tristeza; toda a congregação estava inconformada. Messias vai orar a Deus. Após a oração contrita ele tem a intuição de, embora tarde e perigoso, caminhar ao longo da calçada do Rio Capibaribe. “Messias num vá não!” Disse a nova convertida Maria das Flores. Mesmo após fervorosos apelos, Messias segue o curso do rio até ver um homem trajado de roupa rota, barba por fazer, e um fedor insuportável. Messias tenta passar sem ser percebido, mas:

- Quer dizer que você é o pastor azulão de Dois Coelhos? Perguntou o estranho.

- Sim, senhor. Respondeu Messias tremendo de medo.

- Tenha medo não! Aqui você está seguro. O bafo de bebida azeda, e a silhueta de uma arma de fogo aumentaram ainda mais o medo do seminarista.

- O que o amigo quer comigo?

- Quero te contar uma história. O homem tomou quarenta minutos do pregador contando-lhe de sua conversão e queda. O final de sua história era que ele estava ali pra terminar de vez com sua vida: “Irmão, não tenho mais esperança!” Messias ora pelo cidadão, logo em seguida, o homem desaparece na neblina da noite, contudo o seu chapéu ficou no banco. Messias não sabia mais do paradeiro do homem; resolveu, então, examiná-lo; em seu interior estava escrito: “Zé do Peixe”.

O corpo de Zé do peixe foi encontrado muitos dias depois. Os siris e os caranguejos prestigiaram muito a carne do crente. O irmão se meteu num briga de terceiros e levou a pior, uma morte banal, sem sentido. Messias terminou seu tempo em Dois Coelhos e foi para outro lugar. Dizem que ele aceitou um convite para Sergipe. Minha humilde pessoa nunca mais viu ou ouviu o pregador de Dois Coelhos.

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 04/06/2013
Reeditado em 21/12/2019
Código do texto: T4325709
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