A Senhora e o Tempo (EC)

  9 h.

- Estou morrendo?

A enfermeira não responde.

- Me diz de uma vez!

- Fizemos de tudo.

Ela olha para o chão. O piso quadriculado parece não ter fim.

- Quer que eu chame seu filho?

O som do relógio, cada vez mais forte, rompe um silêncio ensurdecedor.

- Senhora?

O quarto está cada vez menor.

- Vou deixá-la sozinha. Se precisar de ajuda me chame.

 

10 h.

Ela sai da cama e anda pelo tabuleiro. Não há rumo, nem tempo, apenas o fim.

- Não sei jogar...

O piso gelado.

- Posso sentir. Ainda estou viva.

Não por muito tempo – as batidas do relógio são rápidas, mais concisas e vivazes que sua respiração.

 

11 h.

- Pé esquerdo no preto, direito no branco.

Tenta virar a ampulheta, ser criança novamente e aprender a andar.

Desmorona.

Arrasta-se na tentativa de alcançar o que perdeu.

- Agora respira, respira fundo.

Parede. Não há saída, apenas o fim. O chão, antes infinito, acaba em precipício.

 

12 h.

Tem que sair dali. Corre em desespero até a sacada.

A poluição no horizonte vela um sol que teima em surgir os carros buzinam vem e vão numa velocidade alucinadora os semáforos tentam dar limites ao incontrolável as pessoas andam param choram gritam beijam vivem tudo era um ritual uma dança frenética aos berros do sino da igreja... 

O relógio dispara.

- Relógio maldito! Para! Para!

Estava ali, e sempre esteve - intacto, imutável. Bate à sua cabeça e lhe invade em forma de calafrios, sopra-lhe palavras que ela finge não entender, beija-lhe a face revelando a traição.

Aquela senhora e o tempo caminharam juntos um dia, numa época em que a eternidade se fazia presente; contudo ela não o via - ele não estava ali, não podia estar, não podia chegar. Ela, na sua juventude ingênua; ele, sempre apático, exato, simétrico, pontualmente cruel.

Agora aquela senhora é supérflua, inútil, descartável, como tantas outras, porque enquanto pura era orgânica, era tola, era sinuosa, porque simplesmente era. Ele continuará público, mas de ninguém, para sempre. Continuará caminhando e deixando para trás alguém que um dia teve nome, como tantas outras. E tantas outras virão e deixarão suas pegadas num deserto em constante movimento; e tantas outras terão seu nome, seu lugar, seu tempo.

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Leia também a resenha da canção Resposta ao Tempo, tema de abertura da minissérie Hilda Furação, que serviu de inspiração para este conto.

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Márcia Jordana
Enviado por Márcia Jordana em 02/09/2013
Código do texto: T4463053
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