Conversas com a Morte - Parte 4

Fim de mais um dia, acabo de chegar de minha aula e já quase que espero meu inconveniente visitante. Pra falar a verdade, acho que já estou até acostumado com a presença dele. Abro a porta de meu quarto... Havia alguém lá dentro, mas não quem eu esperava. Era uma mulher, de uns vinte e poucos anos, pele clara, cabelos brancos, trajando um longo vestido negro. O que mais me assustava nela eram seus olhos. Não havia cores, eram somente brancos, vidrados... Não havia vida em seus olhos. Ela estava sentada a frente de uma pequena mesa com um jogo de xadrez armado em cima dela. Quando me viu, ela abriu um sorriso que era um tanto quanto perturbador. Antes que eu tivesse qualquer chance de perguntar alguma coisa, ela falou com uma voz extremamente mansa, e surpreendentemente doce.

– Finalmente você chegou. Estava te esperando.

– Desculpe-me moça, nos conhecemos?

– Claro que sim. Acho que sou a pessoa que mais te conhece neste mundo. Você só não está me reconhecendo, mas não se preocupe isso é algo natural, afinal resolvi vir hoje com uma roupa diferente do que você está habituado.

O jeito de falar, a maneira arrogante com que ela me olhava, se é que olhava, até mesmo o sorriso, um misto de ameaça e cinismo. Não havia dúvidas, aquela mulher era meu companheiro, mesmo que fosse difícil acreditar.

– Vejo que já me reconheceu... Isso é bom. Agora por que não se senta, e joga comigo? Aliás bonita roupa, perfeita para a ocasião.

Mais uma de suas gracinhas. Desta vez ela havia mudado minhas roupas, só não sei como. Se antes eu estava com minhas roupas normais, agora eu vestia um fraque, eu acho, branco como o restante do traje. Em nenhum ponto que pude ver havia qualquer sujeira, por menor que seja.

– Meio cedo para o ano novo, não acha?

Meu comentário à fez rir.

– É talvez. Sei que não faz bem o seu estilo, mas achei que a ocasião pedia algo mais formal. Além disso, você fica extremamente elegante assim.

– Que seja.

– Bem, por que você não se senta? As peças brancas são suas, o movimento inicial é seu.

Calmamente me sentei em meu lugar e fiz meu primeiro movimento.

– Jogar xadrez com a morte, isso não é meio clichê?

– Um pouquinho, mas pra dizer a verdade, eu até gosto de clichês. São saídas bem convenientes para determinadas situações.

– Entendo, mas devo advertir que este vai ser um jogo extremamente entediante para você, não sou muito bom nisso.

– Ora, mas não é você que se orgulha tanto em seu um grande estrategista? Achei que jogasse divinamente. Aliás, acaba de perder seu bispo.

– E você sua torre – Continuamos conversando enquanto jogávamos. Acho que nunca me interessei muito em xadrez.

– Entendo.

– Importa-se de me dizer o significado de tudo isso?

– Por que acha que há um significado?

– Ora, as roupas, o jogo, as peças... Meio óbvio não acha? Além disso, com você nada é por acaso, tudo acontece de um modo especifico por conta do teu querer.

Novamente ela riu. A essa altura, eu já havia capturado um bispo e um cavalo, em contrapartida, já havia perdido os dois cavalos.

– Talvez você tenha razão. Lembra que eu disse que gosto de clichês? Pense bem, não há nada mais clichê que este jogo. O bondoso e nobre cavaleiro branco mede forças contra o terrível demônio negro e suas artimanhas. Não consigo pensar em nada mais hollywoodiano que isso. Uma batalha do bem contra o mal.

– Nunca olhei pra você como uma representação do mal.

– Sei que não. Mas não me referia a sua compreensão, me refiro à compreensão geral, a das pessoas a sua volta. Veja, desde que nasceu você foi criado para ser mais um. Para pensar do mesmo jeito, para falar do mesmo jeito, para agir do mesmo jeito. Mas você sempre foi mais rebelde, mais questionador... E por quê? Por minha causa. Por causa da minha consciência que sempre esteve em você, crescendo, se desenvolvendo. Até que um dia eu apareci, e te ajudei a quebrar seus grilhões, te tirei do cabresto. Eu te fiz querer sair da mesmice. Sair do caminho do gado. Aos olhos da sociedade, eu te denegri, eu sujei o branco de suas roupas. Não importa o que você pensa sobre mim, aos olhos de todos, eu sou o mal. Xeque.

Meu rei era ameaçado pela torre dela, não havia muito que fazer. Não podia mexê-lo sem levar o mate. Fiz a única coisa que podia, coloquei minha dama à frente ao rei. Ao sacrifica-la, salvei o rei e o jogo, e ainda havia capturado sua torre. Estava sem nenhuma peça, a ela sobrava à dama.

– Vejo que você não pode mais vencer.

– É o que parece. Talvez ainda me reste o empate. Estranho, achei que o bem sempre vencia o mal.

– Não desta vez criança. Xeque-mate.

Olhei o tabuleiro. Sua dama estava ao lado do meu rei, qualquer movimento que fizesse, significava a sua captura, assim como se eu passasse. Se eu comesse a dama, seria capturado pela torre, não havia o que fazer, já tinha perdido. Espere um momento... Algo estava definitivamente errado, não havia como ela fazer aquela jogada.

– Você não tinha mais peças, eu já havia capturado suas duas torres, só restava a dama.

– De fato.

– Você trapaceou então.

– E qual é problema disso? Regras são feitas para ser quebradas. Você não entende não é mesmo? Esse era um jogo que você não poderia vencer porque você ainda segue as mesmas regras empoeiradas, ditadas por tolos. Mesmo tendo perdido o cabresto, você ainda segue o gado. Mesmo sem os grilhões, você ainda age como um escravo. Mesmo sem a venda, você mantém os olhos fechados.

Não pude responder. No fundo eu sabia que nada em minhas atitudes havia mudado. No fundo eu sabia que ela tinha razão.

– Não se preocupe criança, isso leva tempo. Tenho fé em você. Diga-me uma coisa, quem é seu rei?

– Meu rei?

– Sim, veja as peças de seu jogo. Todas elas se sacrificaram por seu rei. Seus cavalos, suas torres, seus bispos, seus peões. Todos capturados a fim de assegurar a vitória do rei. Até mesmo a dama, a mais forte das peças, teve um fim deprimente e patético. Tudo pelo rei. Pelo que você se sacrificaria criança? Qual é seu rei?

Sem dúvida aquela não era uma pergunta fácil. Como saber pelo que me sacrificaria. Pelo que entregaria minha vida. Não, eu estava errado, não era tão difícil assim responder.

– Meu rei são as pessoas que amo e as ideias em que acredito. Por elas daria minha vida.

– Boa resposta criança. Por isso acredito tanto em você.

Ela se levantou e se reclinou levemente em minha direção, beijando meu rosto. Quando se levantou estava em sua face um sorriso doce. Ela estava preste a ir embora, e desta vez eu tinha a impressão que aquela seria a última vez que veria minha visitante... Não, não apenas minha visitante, minha amiga.

– Antes de você ir embora, gostaria de saber uma coisa. Qual é o seu rei?

Ela desaparecia no ar como fumaça. Eu já estava vestido novamente com minhas roupas e o sol já nascia. Perdi totalmente a noção de tempo. Ela sorriu.

– Você é meu rei criança...

Não esperava aquela resposta. Mas até que era compatível com ela. Imprevisível como sempre. Acho que já era hora de dormir. Em minha cama um rei preto. Tudo que sobrou daquela noite. Acho que vou guarda-lo... Como recordação.