Conversas com a Morte - Final

Sou obrigado a admitir que tenho achado os últimos dias particularmente entediantes. Dia após dia, semana após semana, mês após mês... Tudo muito igual, tudo muito chato. As pessoas já tem notado minha mudança, alguns dizem que estou ficando louco... Talvez elas estejam certas. Mas acho que isso não importa, sempre vi a sanidade como algo muito entediante, muito previsível, mas acho que isso não tem importância.

Acabo de chegar a minha casa e já vou em direção ao quarto. Ele me parece sombrio, escuro. De fato não consigo enxergar absolutamente nada, apenas distinguir as silhuetas das coisas no meio da sombra. Tento acender as luzes e nada. Era só o que me faltava, as luzes queimaram. De repente vejo em um dos cantos uma pequena chama, acendendo o que me parece ser um cigarro ou algo do tipo.

– Então é você... Achei que não o veria mais.

– Que não me veria? Até onde eu me lembre, essa é a primeira vez que nos encontramos. É a primeira vez que você permite que eu me apresente a você.

A voz dele era estranhamente... Familiar. Algo estava errado, aquele não era meu companheiro habitual. Bem, ele poderia apenas ter mudado sua forma. Talvez aquilo tudo fosse apenas mais um de seus jogos. Dirigi-me até a janela e abri as persianas. A lua estava cheia e sua luz banhou todo meu quarto, inclusive o meu visitante, deixando visível todo o seu corpo, com exceção do rosto. Suas roupas eram surpreendentemente casuais, muito parecidas com as minhas para dizer a verdade. Não, não eram apenas parecidas, aquelas eram as minhas roupas, as mesmas que eu estava vestido naquela hora.

– Quem é você?

Ele riu.

– Quem sou eu? Imaginei que você saberia quem sou no momento em que você me visse.

– Se eu conseguisse ver você.

– De fato, peço perdão. Talvez isto deixe as coisas mais claras.

Ele deu um passo em minha direção, deixando que a luz da lua iluminasse seu rosto. Por alguns segundos, que naquele momento pareceram longas horas, fiquei atônito, sem nenhuma reação. Aquele homem era idêntico a mim, em tudo. O rosto, o corpo, até mesmo a postura. Tudo era idêntico. Mas, ao mesmo tempo algo estava estranho, algo não se encaixava. Não digo apenas pelo fato daquele espectro estar fumando, coisa que jamais fiz em toda a minha vida, me refiro a algo mais subjetivo. Seus gestos e expressões estavam muito severas, isso sem falar nos seus olhos que refletiam um ódio doentio. Mesmo sendo idêntico a mim, eu estava amedrontado em sua presença, amedrontado como nunca estivera antes.

– Agora você me vê – Ele disse enquanto sorria cinicamente. Já sabe quem eu sou?

Juntei nesta hora o pouco de coragem que ainda me restava. Aquilo não era real, ele não era real, era apenas uma peça que minha mente me pregava.

– Você não é nada. É apenas uma ilusão.

– Péssima resposta, muito comum, muito usual. Aliás, eu tenho a impressão que você já respondeu algo assim pra alguém – Lembrei-me de minha primeira conversa com meu convidado habitual – Mas isso não importa, eu não esperava mesmo que você descobrisse quem eu sou.

– Então por que você não me diz?

– Não é obvio? Eu sou você.

Não contive meu riso. Aquela, sem dúvidas, era a coisa mais estúpida que já tinha ouvido em toda a minha vida. Apenas mais uma brincadeira de meu companheiro.

– Brincadeira? Não meu caro, eu posso lhe garantir que eu sou bem real.

Ele... Ele tinha acabado de... Ele adivinhou o que eu estava pensando? Mas como?

– Na verdade é bem simples. Nós somos a mesma pessoa, seus pensamentos são os meus pensamentos. Pra mim, o que você pensa é tão claro que é como se você estivesse gritando a todos os pulmões cada palavra do que passa pela sua cabeça.

Neste momento eu congelei. Não havia mais nada o que eu pudesse falar ou pensar, estava sem nenhuma reação. Por fim consegui formular a única pergunta que passou pela minha mente naquele instante.

– Como?

– Como? Isso importa? Você sequer entende quem eu sou e já está ai paralisado, como um cão medroso, e ainda assim tem a audácia de me faz perguntas estúpidas como esta? Você me dá nojo.

Neste momento ele veio rapidamente em minha direção, me arremessando. Nunca vi ninguém tão forte. Eu simplesmente voei para trás com o golpe, me chocando com violência contra a parede, caindo no chão logo em seguida. Eu estava acabado. A dor era insuportável, mas ele sequer parecia ter se esforçado para me fazer aquele dano. Enquanto eu estava no chão, ele andava calmamente ao meu redor, ecoando por todo o quarto sua risada macabra.

– Ah perdão, eu te machuquei? Não foi minha intenção, acho que não tenho muita noção da minha própria força. Ce la vite. Mas não se preocupe – Ele se abaixou, socando violentamente uma de minhas costelas fazendo-a quebrar, a dor me fez soltar um grito desesperado – Feridas se curam meu amigo.

– O que foi eu te fiz?

– Nada. Absolutamente nada.

– Então por que...

– Por que eu estou fazendo isso? Sei lá, to entediado. Você não tem ideia de como isso é divertido.

Dizendo isso ele me chutou violentamente na barriga. Com a força do chute, cheguei a sentir o gosto de sangue subir em minha boca. Eu estava cada vez mais perto do meu fim, e nem entendia por que. Ele novamente se agachou, desta vez a minha frente, chegando-se a meu ouvido.

– Sabe, eu não sou uma boa pessoa. Mas acho que isso você já sabe. O que eu não compreendo, é como você, um ser tão insignificante, inútil e sem talento algum, conseguiu me manter preso por tanto tempo.

De que ele estava falando? Tudo era muito confuso. E a dor... mal conseguia respirar, ainda mais pensar em tudo aquilo.

– Pr... Preso?

– Sim, preso. Você ainda não entendeu, não é mesmo? Eu não falei exatamente a verdade quando disse que eu sou você. Pra ser mais especifico, eu sou uma parte sua. Uma parte que você tem mantida presa por todos esses anos. Pense bem, eu sou um psicopata, sádico e cruel… Isso me lembra um pouco você, não acha? Eu sei que você não vai admitir, mas toda essa maldade é uma característica bem particular sua. Eu sou o teu ódio, tua ira, teu rancor, tua magoa. Todas as vezes que você quis fazer algo de ruim com alguém, era a minha voz te guiando. Todas as vezes que você quis esmurrar a cara de algum imbecil, era a minha mão que estava fechando. Todas as dores que te causaram, todas as vezes que te rejeitaram aquilo apenas me alimentava. Mas você sempre me reprimiu, sempre me aprisionou. Eu sou todos os teus defeitos, eu sou a parte negra da tua alma.

– E... Por que... Agora...

– Eu estou aqui? Por que nos últimos tempos, você tem tentado limpar teu interior de todo, digamos, lixo inútil. Você achou que poderia se livrar de mim, mas eu também sou o que ajuda a te definir. Nem ser humano é perfeito, nem nunca será. Todos nós temos erros e falhas que tentamos esquecer, que tentamos esconder. Quer conhecer a suas?

Ele me pegou pelo pescoço, me levantou e me pressionou contra a parede. Nessa hora ele apertou meu pescoço com mais força, e com uma única mão me suspendeu. Enquanto eu sufocava, comecei a ver cada gesto errado que já tive, cada ato abominável que havia cometido, cada pessoa que tinha passado pela minha vida e eu tinha magoado. Ao fim desta sessão, eu sentia repulso e nojo de mim mesmo. Mais que qualquer coisa eu desejava a morte, eu merecia a morte.

– Todos erram, alguns mais outros menos, mais todos o fazem. Mas você é um homem bom... Eu sei disso, eu acredito nisso. Você é o mestre de teu destino, não ele.

Quem disse isso? Não foi meu agressor, ele estava ocupado demais rindo de minha morte. Então quem foi. Voz de mulher, mas que mulher? O que importa? Ela estava certa, eu não sou perfeito, mas também não sou um monstro, eu sou um homem bom. Eu aceito meus erros. Eu aceito meus defeitos.

– Eu... aceito meus... defeitos...

– Você me aceita? Não me faça rir mais do que já estou rindo.

Com meus últimos resquícios de força, agarrei o punho dele. De repente, me senti incrivelmente revitalizado, toda dor, toda angustia, todo sofrimento haviam sumido e dado lugar a uma força que não sabia que eu tinha. Rapidamente me desvencilhei de sua mão que ainda tentava me estrangular. Agora estávamos os dois, em iguais condições, nos encarando. Eu não tinha mais medo.

– Impossível, eu sou mais forte... Eu sempre serei mais forte.

– Não, você está errado. Você é parte de mim, apenas uma pequena parte. Você não é mais forte, nem nunca será.

Dito isto, ele se desfragmentou em uma espécie de fuligem e começou a se fundir com meu próprio corpo. Novamente éramos um.

– Por um instante, achei que você não conseguiria.

Aquela voz, a mesma voz feminina. Era ela então. Eu devia ter me lembrado, mas afinal, já fazia um tempo desde nosso último encontro.

– Então tudo isso não passou de uma artimanha sua. Olha, isso foi cruel até pra você.

– Criança, você tem minha palavra que não tive nada haver com aquilo. Por mais de uma vez quis lhe ajudar, mas não podia. Peço perdão.

– Não peça, é graças a você que ainda estou aqui.

– Não criança. Tudo o que eu fiz foi te lembrar o que você é. Você é mais forte. Sempre será mais forte. Acho que não tenho pra te ensinar.

Havia tristeza em seus olhos. Tristeza como aquela vista em quem se despede de um amigo, ou de um amante. Eu sorri.

– Sempre terei o que aprender com você.

Neste momento toquei sua face, por onde escorria uma lágrima, e beijando seus lábios me despedi de minha melhor amiga e maior professora. Ao abrir os olhos, estava sozinho. O sol já nascia e eu entendia um pouco mais sobre mim. Apesar do peso de saber que eu não a encontraria mais, restava-me ainda tudo o que ela havia me ensinado, e tudo o que ainda vou aprender.