Sombra a Luz de Velas

Um garçom formidável , rodopiava entre as mesas com uma bandeja de drink's , desviando de cotovelos duros e joelhos traiçoeiros . Por vezes recebia uma palpada nas nádegas , mãos masculinas e femininas , tarados e taradas realizando parte de suas fantasias proibidas . Louise Bar não era lugar para um artista como eu , mas as contas chegavam e como um cão eu era acoado para esse perdigueiro em busca de migalhas deixadas pelos clientes . Não haviam momentos para descanso , o gerente do lugar , um cavalo transvestido de humano com sua camisa vermelha e cabelos empapados com mousse , dedicava sua vida no restaurante a me importunar .

- O banheiro , quero que o lave antes de ir embora , Oliver , alguém manchou os ladrilhos e isso não pega bem .

- Diabos , esse não é meu trabalho , Senhor …

- Seu trabalho ? Então esta dizendo que não sei qual é meu trabalho ? Meu trabalho é lhe dar trabalho , logo obedeça se quiser continuar recebendo seus salários .

- Claro ..

- Sorte sua que hoje estou de bom humor , rapaz .

- Obrigado senhor .

Eu jogava seu jogo . O fazia pensar que estava no controle , até mesmo eu acreditava que ele estava no controle as vezes. Mas sabia que em algum lugar nesse jogo tinha uma lacuna bem gorda por onde minha gloria um dia passaria e viria de encontro a mim . Não me importava muito limpar os banheiros masculinos , sabia o que encontraria neles . Urina , merda na porcelana , cheiro de peido , drogas , vomito e recados eróticos nas portas . Já os banheiros femininos , Jesus , eram assombrosos . Você não imagina que uma coisa tão linda com cara de modelo é capaz de tal desgraça . Absorventes eram deixados boiando no vazo , sangue de menstruação respingado no chão , calcinhas ejaculadas , cílios postiços na pia , unhas postiças , longos tuchos de cabelos que se desprendiam do mega hair ...algumas mulheres se desmontam enquanto dão uma cagada . Limpar a tinta que usam para ter a pele bronzeada da pia era um saco . Ainda sim , todas as noites , de terça a domingo , lá estava eu , tão branco quanto o uniforme de garçom de terceira mão pode estar , um sorriso para cada insulto , para cada promessa de acusação. Assim como Jack eu morria todas as noites e ressurgia pelas manhas quando me via livre de tudo aquilo . E foi numa dessas manhas , me vendo refletido no vidro polido aprova de balas de uma concessionaria que conheci Marta . Senti seu halito esquentar minha nuca e seu rosto pálido surgir como um fantasma no vidro .

- Isso não faz de você mais homem , só te deixa mais sexy.

- Com um carro desses eu entraria em qualquer festa sem ser convidado .

Respondi . Me virei , e em seu peito preso num uniforme de enfermeira estava esse nome : Marta . Seus cabelos negros eram como o de uma boneca esfarrapada ; aparência sintética , dois olhos de botão , tão escuros que chegaram a assustar . Estendeu sua mão sem dizer nada , num cumprimento mudo e quando a agarrei senti que era fria e eu quente .

- Que tal um café quente .

Ofereceu ela , sorrindo e mostrando os dentes amarelos .

Seguimos na direção da padaria chinesa a duas quadras , passamos pelo farol , sentimos o cheiro da fumaça dos escapamentos em nossos pulmões e o abraço terno dos primeiros raios de sol . O cinza dos prédios , o preto do asfalto , o verde das arvores injetadas no concreto das calçadas , um quadro de poucas cores , sem moldura …

- ...mas ainda sim lindo a sua maneira , adoramos tudo isso , tão sem ordem ou com uma ordem confusa .

O primeiro gole do café foi amargo , sem açúcar , Marta não fez questão de adoça- lo .

- Olhe só aqueles tês discutindo no meio da rua – disse ela , apontando com os olhos - um deles pede calma ,o mesmo que grita e gesticula , pede calma para o outro que ri , ele ri para não avançar como um cão . Não há ordem alguma .

O terceiro simplesmente não existe , disse ela , respondendo a uma pergunta que ainda não fiz .

- Somos adoradores do homem e da besta . Somos tão egocêntricos que criamos a ideia que Deus nos fez a sua semelhança . Tudo isso porque não ouvimos , somos surdos com o vocabulário extenso . A ordem só existe para contrapor o caos , e nesse jogo somos uma mosca em meio a guerra , sobrevivendo , não vivendo .

Marta expressava suas ideias sem se importar com a garota do balcão , com a caixa , com os clientes , ninguém queria ouvir , apenas eu , e era como se sua voz viesse de dentro de mim .

- Preciso ir ao banheiro – falei , foi tudo o que disse , até aquele momento era apenas um ouvinte – termine seu café .

O banheiro minusculo cheirava a desinfetante , o sabonetinho azul preso a privada por um gancho para dar cheiro estava novo , me sentei no vaso com a tampa fechada e enchi meus pulmões , os inflei e segurei até começar a ver bolinhas , pequenas explosões, a vista começara a fechar . O sabor do café na boca , o cheiro do desinfetante , o sono , as explosões , e quando achei que nada poderia me tirar daquele estado bateram na porta .

- Oliver . Oliver . Preciso ir , estou sem minha bolsa , você paga a conta . Peguei também um maço de cigarros .

- Ok , tá legal .

Ouvi seus passos se afastando . Eram seis da manha .

Nove Horas . Os primeiros clientes se amontoam nas mesas próximas a janela . De onde estão da para ver a lua roubando a luz do sol e dividindo-a com os apaixonados . A mesa pede chopp , pedem do mais caro , fazem contas com a mente , calculam quanto poderão beber se continuarem gastando desse jeito . Whisky , tequila , agora chopp . Peço a bebida para o cara do bar , que enche o canecão de dois litros com o logotipo estrelado da marca cara com uma bebida barata , serve bem gelada , levo tudo numa bandeja , copos recém tirados do freezer e uma porção de salame apimentado e limão . A diferença entre o que pediram e receberam ninguém percebe , o salame chamou mais a atenção . As onze o lugar esta apinhado , traço rotas imaginarias entre as mesas , corredores que não existem , cheiro forte de desodorante se mistura ao de fritura . Ternos de segunda e gravatas frouxas , gente soberba de meias furadas . Tem uma pequena fila de espera na porta , aguardando mesas , estão parados a uma hora no mesmo lugar , perdendo a noite de sexta , poderiam beber e comer numa lanchonete a duas quadras gastando um terço do que vão gastar aqui . E de relance , quando corro os olhos na direção da mesa que chama , vejo Marta aguardando na fila , parada na porta . Veste um vestido negro de noite , os cabelos continuam desgrenhados como se tivessem sidos colados a sua cabeça em chumaços . A mesa pede vodka com soda , querem uma garrafa fechada . São cinco homens de meia idade , dois deles já calvos , usando jeans e polo , rostos engordurados do azeite da pizza de mussarela .

- Já trago as bebidas - digo - mais alguma coisa ?- Pergunto .

- Nada , mais nada .

Quando me viro recebo uma palpada , sinto o dedo médio , sinto os outros quatro dedos, todos eles dando cobertura para o médio que avança no seu ato obsceno , sigo em frente e ouço risadas , gente caçoando de mim , da minha bunda flácida , da minha falta de reação . Faço o jogo deles , imagino que pensem estar ganhando , os deixo pensar que são melhores . Peço para o cara do bar as bebidas , o ventilador de mesa refresca o bar , os ventiladores do teto arejam as mesas . Estou fervendo por dentro e decido que é hora de uma pausa ,hora do cigarro . Meu chefe , se ele sente cheiro de fumaça no velho uniforme ele me faz lavar todo o salão . Saio pela porta dos fundos , pela saída da cozinha , dou no beco que fica entre o maldito bar e a loja de animais .

- É aqui que consegue a carne para o strogonoff ?

É Marta em seu vestido de noite . Ela me pede um cigarro , os pés calçam um velho tênis de corrida branco . As pernas finas estão enterrados neles como duas vassouras . A pele de papel do seu rosto estala quando sorri .

- Deveria parar de fumar , onde esta o maço que lhe paguei essa manha ?

Digo lhe esticando um cigarro e a caixa de fósforos .

- Este aqui é um belo lugar para passar os melhores dias de sua vida , Oliver . Da para ver que essa gente te adora .

Sarcasmo . Solta a fumaça no meu rosto e enfia os fósforos na bolsa de couro sintético . A única luz do beco é a que fica em cima da porta atrás de nos , bem em cima da placa verde escrito ' saída ' .

- Porque não entra e com umas azinhas de frango .

- Parece que o lugar esta lotado . Todos vieram te ver essa noite , Oliver .

Seus olhos escuros brilham com a luz , neles vejo meu rosto refletido , magro , grandes olheiras pesadas abaixo de dois buracos vazios .

- Porque não entra comigo . Minha convidada . Entramos pela cozinha mesmo , você pode provar direto das panelas , quando a comida ainda é limpa .

- Então vai ser hoje , o grande show .

- Acho que essa gente nunca provou disso , sabe .

- Ouvi dizer que vem direto das glândulas supra-renais de um ser humano vivo .

- É só lenda .

Marta passou despercebida pelo cozinheiro , pelo cara da chapa , pela balconista , pelo rapaz do bar , pelo meu chefe ; ninguém se deu ao trabalho de repreende-la quando enfiou o dedo no pote de sorvete , quando acendeou outro cigarro em meio aos clientes enquanto eu servia camarão empanado para uma mesa só de mulheres empapadas em bronzeador artificial . Era como se desviasse da luz , a minha sombra , e quando voltamos a cozinha despejou um pó escuro sem que ninguém percebesse nas frigideiras e sobre hambúrgueres

Ela , Marta . Me disse que ninguém sentiria a diferença . Segundo ela , o que acabara de despejar na comida e agora na batida de maracujá com tequila , é inodoro e sem sabor .

- O plano – falou – não tem como falhar .

Pediu outro cigarro .

- Onde esta o maço que lhe comprei , esta acabando com os meus .

- Olhe no bolso esquerdo , Oliver .

No bolso encontrei um maço fechado , filtro vermelho .

- Claro – falei – no meu bolso . E a caixa de fósforos que enfiou na sua bolsa ?

- No seu jeans .

Com o cigarro nos lábios finos e vermelhos acendeu um fósforo . A fumaça tomou seus pulmões , estávamos na dispensa . Latas , garrafas , copos e pratos . O ar quente , a fumaça nauseante travou sua garganta ,

- Cof cof cof cof...

- Deveria parar de fumar , Oliver .

- Deveríamos , mas sabemos que não e assim tão fácil , não é ?

A porta da dispensa abriu , as paredes tremeram , as latas chacoalharam nas prateleiras . Era meu chefe , ele avançou e tirou o cigarro da minha boca .

- Temos mesas esperando , rapaz , e você aqui fumando , essa porcaria esta impregnada no seu uniforme .

Marta riu , deu outra longa tragada . Da bolsa tirou o que restava do pó preto e me mostrou .

- Porque esta olhando para as latas de sardinha , o que tá escondendo ali ?

Meu chefe avançou na direção de Marta , com dois passos ela saiu de seu caminho , atrás de si as latas de sardinha que meu patrão revirou em busca de alguma coisa .

- Diga a ele , Oliver . Diga que esta sera uma noite inesquecível .Vamos , conte tudo …

- Conte o que ? O que esta tramando , rapaz ?

Fiquei em silencio . Marta saiu pela porta com o frasco em mãos deixando eu e meu chefe as sós .

- Já estou ficando de saco cheio das tuas loucuras , Oliver . Anda por ai , falando sozinho , fumando escondido ….

Me virei e o deixei falando sozinho .Atravessei todo o salão, esbarrei em cotovelos e joelhos , não me dei o trabalho de desviar ou pedir desculpas . Um segurança segurava as pessoas do lado de fora , na fila , trinta ou quarenta pessoas esperando para entrar e participar do show. Passei por elas pensando quem as serviria naquela noite . A lua era um grande olho suspenso no céu , marta me esperava no final da fila com seu vestido de festa negro . Me mostrou o frasco já vazio , e da bolsa tirou uma garrafinha de tequila , tomou um trago e sentiu o suco arder seu estomago . Eu deveria parar de beber , ela me disse .

04/02/2014

15h32m

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 04/02/2014
Código do texto: T4677981
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