O monstro

Havia tempos que eu estava mal. Mas naquele dia tudo parecia pior. Tudo estava agravado. Minha alma estava abatida e meu espírito não conseguia rir. Meu corpo estava doente e minha mente, perturbada. Meus sentidos não existiam. Eu estava com a cabeça jogada sobre o mármore da mesa da cozinha e nem percebia o quão gelada a pedra estava; isso só me veio à consciência quando um arrepio percorreu minhas costas e meus sentidos voltaram; não que teve alguma relação direta, mas acredito que o arrepio deva ter influenciado em algum nível a reabilitação do meu corpo. Reabilitação apenas dos sentidos, o resto do mal continuou o mesmo.

Eu então consegui um pouco de força e tomei pé. Estiquei os músculos. Andei alguns passos e preparei um café tão forte quanto preto. Não me dei ao trabalho de colocá-lo na garrafa; deixei-o no bule e apenas peguei um copo. Entornei o líquido escuro e sentei-me à mesa.

Mas não consegui beber o café. Aquele líquido preto, tão preto quanto forte, arrancou-me uma lágrima sem nenhuma dificuldade. Por um segundo havia visto o café como se fosse a minha própria alma e espírito. Sim, eu sentia minha alma e espírito escuros dentro de mim. E além de escuros, também os sentia pútridos. A sensação era estranha.

Como que desistindo daquele momento, pousei a testa nos últimos centímetros de mesa e mirei o chão. Nesse instante outro arrepio me sobreveio. E uma voz surgiu:

– O que há com você?

Levantei a cabeça rapidamente e arrumei o corpo. Era um monstro quem estava à minha frente, do outro lado da mesa.

– O que há comigo? Não sei, não sei.

E de fato eu não sabia, pelo menos, não explicar, apenas me sentia mal. Sentia-me, ao mesmo tempo, como o mais pesado dos pesos e a mais leve das plumas. Era como se o mundo dentro de mim se anulasse com o mundo de fora e eu não existisse. Assim eu me sentia, e era muito confuso.

O monstro permanecia com os braços pendurados cada um em seu respectivo lado e mantinha os olhos fixos em mim o tempo todo. De repente ele disse, depois de ver o rastro de uma lágrima:

– Você sabe, pelo menos, por que chorou?

– Não. E também não sei qual o meu nome, qual a cor do céu, o que é esquerda e direita, o que é prazer e dor. O que sei é que se eu caísse agora dessa cadeira, ficaria no chão até morrer.

– E o que te manteve firme até agora?

Não respondi de imediato.

– Talvez, simplesmente o equilíbrio que temos mesmo sem querer tê-lo, o maldito equilíbrio.

– Maldito? Você queria ter caído?

– Sim. Na verdade, torço para que eu caia a qualquer momento, torço que aconteça naturalmente, porque não quero me ver como um desistente. Eu quero simplesmente acabar…Mas o maldito equilíbrio…

O monstro se levantou e deu a volta na mesa. Puxou uma cadeira vazia e sentou-se ao meu lado. Mirou o café.

– Não vai beber?

Eu simplesmente balancei a cabeça, dizendo que não.

– Deixe que eu o jogue fora.

O monstro foi até à pia e voltou rapidamente. Dessa vez não se sentou. Ficou parado à minha frente.

– Não faz sentido uma pessoa querer cair para não se levantar mais. É o peso? O que está pesado?

Eu queria dizer algo a ele, mas, como eu poderia, se nem a mim mesmo eu conseguia responder? Fiquei calado. O monstro então fitou o fundo dos meus olhos.

– Mas…se você quiser eu te conduzo – Sua voz fora suave, pareceu um sopro.

– Eu não entendi – Olhei bem o rosto do monstro. Ele era duas vezes feio; duas ou três.

– Eu posso te ajudar a se deitar, se você quiser. E fico aqui com você, no chão.

Um sorriso singelo e indecifrável apareceu no meu rosto; e uma lágrima também.

– Não chore – Disse-me o monstro. – Não chore – E passou levemente o dedo debaixo dos meus olhos, limpando a lágrima – Vamos?

Eu estendi um braço e ele e ele o firmou contra o seu corpo. Eu consegui ficar de pé. Demos, então, dois passos para a direita e ele me perguntou se eu queria que fosso ali mesmo, no centro da cozinha. Eu balancei a cabeça e cuidadosamente o monstro foi apoiando a minha descida até ao chão. O piso estava também gelado.

– Você quer olhar para o teto ou para o chão?

– É indiferente, vou fechar os olhos.

O monstro me deitou de costas e depois esticou e uniu as minhas pernas. Por fim deitou-se ao meu lado, bem perto de mim.

– Você acha que ficaremos aqui por muito tempo até que aconteça? – Meu companheiro perguntou.

– Sinceramente, não sei. Mas você não precisa ficar…

– Não diga nada, por favor.

Eu e o monstro então fechamos nossos olhos. Ficamos deitados ali por muito, muito tempo, até que por fim acabamos.

Mais tarde nos encontramos num lugar diferente, bem diferente. E foi o monstro quem me ajudou a escrever.

Hugo LC
Enviado por Hugo LC em 24/05/2014
Reeditado em 24/05/2014
Código do texto: T4818277
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