ODE AO CAOS

Inspirado no espetáculo “Perch – Uma celebração de voos e quedas”

Há quem diga que eles vieram porque o lugar fora abandonado. O antigo Centro, sitiado por prédios que se perdem à vista, escalando aquele vasto céu cinza onde estrelas já não moram, foi aos poucos deixado de canto, largado à própria sorte, até que vida humana alguma lá existisse ao cair da noite.

Nos longínquos bairros, nada se ouve. Ao vigésimo quarto badalar, só mesmo os transeuntes, bêbados e mendigos que habitam as ruas contíguas ao Centro, toda a escória que dos bairros fora excluída, arriscam-se a imaginar, pelos sons que escapam aos arranha-céus, o que são os gritos e ganidos que lá de dentro surgem. Mesmo o vigésimo quarto badalar, pensam eles, de onde vem? A velha igreja ali se encontra, bem no âmago do fuzuê, mas habitada já não é, de modo que não podem eles definir se só se ouve aquele badalar, polêmico badalar, por ser ele o mais forte, ou por ser ele, de fato, o único, ignorando todos os vinte e três anteriores.

Em todo caso, existe um homem, um velho homem que hoje mora no campo, em um sítio imundo e dominado por tralhas, onde uma já carcomida cadeira de balanço gane por toda a eternidade, ao lado do velho cachorro sem raça ou nome, que, como a cadeira e o velho, se recusa a morrer por ser parte da história. E é o tal velho, contam alguns, que foi e voltou daquele Centro de sombras, e hoje relata com a mesma emoção do dia seguinte ao espetáculo inconcebível que existe por lá.

Naquele mesmo bairro que abriga, durante o dia, gente de terno e gravata, andando de um lado para o outro, simulando uma importância que a eles não foi dada, à noite, ao término do expediente, toda e qualquer luz se esvai, e das janelas que de dia servem de vitrine do mundo lá fora para aqueles engravatados sem vida, de noite brotam criaturas penosas, em um malabarismo que cruza os céus, de prédio em prédio, ganhando mais e mais adeptos das mais variadas cores e formas, de bicos longos e curtos, com garras ou pés humanos, seres antropomórficos que dominam as praças e avenidas, num escarcel de asas e ganidos que, em uma dança sem ritmo ou sincronia, preenche aquele velho bairro largado às traças. E no meio desse espetáculo, diz o velho, onde os olhos se assombram, a alma petrifica, mas não se pode parar de mirar, a música surge ecoando pelos becos, ricocheteando nas paredes pichadas dos prédios que outrora foram belos, vinda de lugar nenhum, tocada por nenhuma orquestra, composta tampouco por alguém, mas ainda assim tão viva e nítida, quase tangível, em uma harmonia que rasga o céu a cada voo ao som de clarinetes, a cada pouso amparada por oboés, e que tem cada decolagem mais leve graças ao órgão ao fundo. E conforme a orquestra que lá não existe se anima, conforme os compassos aceleram e a música ressoa e ressoa, tocando a mente com a ponta de seus dedos penosos, mais e mais criaturas surgem, em um embate alado e terrestre, em forros e praças, árvores e bancas de jornal, preenchendo os corredores de mármore do antigo Fórum de caos, enchendo de vida aquele lugar tão morto e assombroso durante o dia, em sua ausência de causa tão grande que somente humanos, os engravatados e importantes humanos, não sentem o peso da atmosfera lúgubre, já em putrefação.

“A noite vem para salvá-los de vós mesmos.” É o que diz o velho. “Em vosso limitado entendimento da vida, não compreendeis que ordem e máscaras, que sincronismo e ensaio, destoam demais de vida e verdade.” E o velho balança e balança, em sua cadeira velha que não para de ganir; e o cachorro late e corre, por entre as tralhas de todo tipo que tomam conta do terreno; e a velha vitrola toca em uma sinfonia eterna, embalando o tempo que carcome os objetos, que envelhece o velho e debilita o cachorro, porém que lá permanecem para sempre, a despeito de física, tempo e tudo o mais, naquele balanço suave que nada mais é senão o resultado do homem – hoje velho – que não atura mais aquele ar fétido e lúgubre daquilo a que se dá o nome humanidade, justamente por ter vislumbrado a vida apenas no caos desumano. E lá fica, encarcerado entre seu não pertencimento às criaturas e suas sombras caóticas, e ao seu não sentimento de humanidade e sua organização sombria. Ele, o sítio, o cachorro e a cadeira, a balançar e balançar, por toda a eternidade.

Juliano Guillen Pupo
Enviado por Juliano Guillen Pupo em 23/07/2014
Reeditado em 18/02/2016
Código do texto: T4893408
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