Papel Social

A noite estava quente, úmida e abafada. Eu estava sentado em uma cadeira de plástico, em uma quadra poliesportiva, coberta, que foi usada para um evento escolar, uma apresentação de todas as turmas daquela escola de ensino médio e fundamental. As crianças dançavam as músicas típicas de diversas regiões do Brasil, trajadas de acordo, algumas com saias coloridas, outras com chapéu de palha e camisas quadriculadas.

A escola era uma daquelas onde nem todas as crianças podem estudar, particular, mensalidades caras e, de acordo com a propaganda, educação de qualidade que, convenhamos, no Brasil, nem mesmo as particulares conseguem dar conta do recado.

A noite poderia ter sido simples, passado sem ficar nada frisado na memória além do péssimo aparelho de som que tornava cada fala da apresentadora um zumbido regurgitado de algum canto do inferno.

Não, o que realmente se manteve na lembrança foi um lapso que tive ao me distrair e sentir minha consciência deslizar para outras vibrações.

Durante uma apresentação, as crianças de não mais de 8 anos de idade, rodopiavam e giravam, coreografadas e guiadas por uma mulher que dançava em frente ao circulo feito de cadeiras, mesas e principalmente, pais com suas câmeras profissionais de luxo e seus iPads enormes, filmando e tirando fotos das crianças que faziam ali, o sonho dos pais. E foi então que bateu, a ficha caiu.

Flutuando sobre as crianças eu via figuras amorfas, com nuvens grandes e gordas, suadas em seus ternos e vestidos caros, grudados e apertados onde a gordura vazava pelos botões e fendas dos vestidos. Seus rostos eram de seus pais, deformados em um sorriso de alegria e olhares tristes e acorrentados. Flutuavam deitados pois não conseguiam ficar de pé e em suas mãos, seguravam cruzetas com fios que desciam até as mãos, pés e pescoço das crianças, e com movimentos desengonçados, as faziam dançar e sorrir para as câmeras.

Eu já havia sentido sensação semelhante assistindo àqueles programas onde as mães, gordas e frustradas ou lésbicas magricelas, colocavam suas filhas para dançar em vestidos coloridos, realizando o sonho implantado e forçado pela mãe.

Foi então que me dei conta que havia fios também amarrados àquelas figuras amorfas e horrendas, fios sebosos e brilhantes, que se erguiam além do teto daquela quadra. Meus olhos acompanhavam o dançar frouxo das linhas, mas não conseguia encontrar as cruzetas e as mãos que os faziam flutuar e guiar as crianças.

Por um momento senti raiva dos pais, depois pena dos mesmos. Estavam apenas fazendo seu papel social, replicando comportamentos e padrões aceitáveis por aqueles que buscam um convívio civilizado e, além, o poder e o status de estar ali, ver sua cria dançar e rodopiar aos olhos invejosos de outros pais, mostrando sua superioridade através de câmeras fotográficas tão grandes que pareciam ventiladores de mesa, e tablets que mais pareciam laptops, e é claro, a joia rara que seus filhos eram, e a capacidade de rodopiar a mais que o filho do casal ao lado.

Passei as duas mãos no rosto, tentei voltar para a frequência terrena, mas quando olhei para as minhas próprias mãos, notei que elas também estavam amarradas e, ao olhar para cima, vi o fio seboso e úmido que alcançava os céus. Amarrados com uma falsa firmeza, tão efêmera como macarrão cozido por tempo demais. Mas ainda assim, estavam lá, amarradas em meus pulsos, pernas e pescoço.

Que prazer foi ver que acima de mim, ao menos, não havia qualquer figura gorda e esquisita. Mas isso me fez pensar...

Seria eu uma dessas figuras feias e deformadas que flutuavam ali?

É fácil dizer a mim mesmo, “certamente que não”. Mas a certeza da minha visão é diferente da certeza de outro olhar.

Esfreguei as mãos e picotei as cordas, que sumiam como vapor. Quando cruzei os braços, elas reapareceram, descendo e se enrolando sem vontade. Me senti vencido naquele momento e compreendi.

Também estava eu, ali, fazendo meu papel social.