COLISÃO FRONTAL

COLISÃO FRONTAL

Victor e eu nos conhecíamos dos tempos do colégio. Nossa deficiência para o esporte , seja ele vólei , futebol ou boxa , acabou por nos aproximar . Fazíamos pouco para atividades atléticas , o que acabava por afastar as tietes dos garotos do time de futebol e aproximava as nerds e tímidas . No final das contas , acabávamos sempre cercados de meninas de aparelhos nos dentes e óculos de armação preta muito grande . Mas estava tudo certo . Com esse tipo de garota você pode conversar sobre assuntos mais interessantes , e a cada palavrão que sai da boca dessas jovens ovelhas negras é uma nova surpresa . Você nunca esta preparado para ''um puta' que pariu ''ou ''vai se foder piranha'' , saindo da boca de alguém de aparência frágil e educada . Então a gente se dava bem , embora elas me achassem um pouco marginal , por assim dizer. Eu , um jovem de treze anos fumante que escreve poesias e desenha índios sendo decapitados na contra capa do caderno . E talvez , quem sabe , não seja por isso que elas gostavam de mim . Eu , em minha atitude anti social me mantendo sempre as beiradas dos relacionamentos pessoais , era o tipo mais mal encarado que elas um dia conheceriam . E seguimos dessa forma , os anos passaram , a escola ficou pra trás , nos afastamos e nas lembranças de cada um levamos os rostos borrados e traços imaginários da face de cada uma daquelas pessoas .

Victor e eu estávamos sentados no seu estúdio . Ele um pintor agora . Gozava de certo respeito , tinha uma duzia de quadros espalhados pela por ai em exposições e alguns o elevavam a gênio da arte . Eu não achava grande coisa naqueles borrões de tinta que pintava , e seu sentimentos com relação ao meu material publicado na Open Night era o mesmo . Dividíamos uma garrafa de vinho sentados de frente para uma tela branca de um metro . Estava se queixando que seu dom o havia abandonado . O pobre diabo , com seus cabelos louros caindo sobre o rosto e unhas encardidas e coloridas fumava seu cachimbo e cuspia a fumaça na tela . Sugeri a ele pontar a lua , quem sabe algumas estrelas ; qualquer coisa , até mesmo a barata que nos vigiava do canto próxima a lixeira repleta de latas de energético , mas nada disso parecia bom o suficiente para ele . Se queixava de que tudo já havia sido feito , que a melhor época foram os anos cinquenta , os anos sessenta , os setenta , quando ainda se havia muita coisa para ser feita . Quando boas ideias passeavam soltas por ai , e você só tinha que escolher uma e laça la .

- Hoje , meu chapa , o pouco que sobra para ser feito esta muito bem guardado num cofre , e só os bons ladrões são capazes de arrombar esse cofre e tirar vantagem do seu conteúdo .

- Tudo besteira – eu disse a ele . - Não existe cofre algum . Você só precisa se esforçar mais , quem sabe dar o sangue .

Victor então balançou a cabeça em discordância . Para ele , era o fim .

- Eu desisto , Oliver . Não consigo mais pintar . Esta tudo acabado para mim .

- Se você esta dizendo , cara . Mas nunca vi nenhum jogador , um viciado nas apostas largar tudo assim de uma hora para outra .

Victor ficou me olhando , esperando que eu dissesse algo mais , mas não o fiz . Simplesmente me ajeitei na cadeira dando sinal de algum desconforto , como se ela fosse dura demais . Depois dei um peido silencioso que esquentou minha bunda.

- Vai te foder , Oliver ! Esta poluindo meu local de trabalho , meu ganha pão , minha cozinha !

Me levantei , tomei a garrafa de sua mão e dei um trago , em seguida acendi um cigarro . O lugar era quente , mesmo sendo noite , e não tinha janelas . Na verdade existiam duas , pintadas de preto .

- Sabe de uma coisa ? Talvez deva arranjar um emprego , trabalhar num escritório ou pintando paredes . Um emprego de verdade , que lhe de alguns calos nas mãos , o tipo de emprego que seu pai sempre sonhou pra ti . Afinal de contas , artistas são todos gays ou drogados . Aceite os termos se quiser continuar . Não conheço um artista que nunca sofrera . A depressão é um estado quase permanente para os grandes mestres . Eles vivem num mundo a parte, no lodo , sobre um barril de pólvora com um isqueiro nas mãos . Seu problema atual , é que você sabia disso , mas agora esqueceu . Ficou encantado com o mundo das celebridades , com as entrevistas , com as belas mulheres , com as exposições e mimos nos camarins dos programas de TV . Um dia teve tudo isso , e agora que esta por baixo nenhuma ligação . No final das contas voltou a ser o zé ninguém que sempre foi , Victor . Lembra se nos tempos de colégio ? Você e eu , dois qualquer , fodidos , nem muitos espertos nem muito burros . Não havia pressão ou expectativa sobre nos , mas agora que se tornou uma estrela , todos exigem muito de ti , exigem porque pensam que pode dar mais , o fato é que sempre soube que não poderia .

Meu rápido e curto monólogo - eu meio bêbado de vinho – parece ter despertado algo em meu amigo , que se levantou , apanhou a tela em branco e a botou debaixo do braço . Disse que tinha um plano e precisava de minha ajuda .

- Preciso que dirija para mim – foi o que falou .

Não relutei . Era sábado a noite e eu não tinha nada para fazer . Victor me passou as chaves do seu carro japonês e deixamos sua casa no condomínio . O porteiro com seu sorriso simpático nos deixou passar e desejou boa noite . Agradeci com um joinha .

- E então , pra onde vamos ? -perguntei .

Victor ajeitava a tela no para-brisa do carro . Insinuou alguma cabeçadas ali , bem no centro dela . Esta louco , foi o que pensei . E depois que me disse o que pretendia , tive certeza .

- Oliver , que bata esse carro .

- Como ?

- Tem um poste logo mais a frente . Quero que acelere o máximo que puder . Não se preocupe , o seu lado tem air-bag .

Botei o cinto e percebi que meu amigo não fazia o mesmo . Pareceu ficar um pouco surpreso quando não o questionei .

- Bom … tudo bem para vocÊ ?

- Ta legal , cara . Você quer que eu enfie esse carro naquele poste – apontei para adiante .

- Exatamente .

Continuava arrumando a tela em branco no para-brisa .

- É pelo dinheiro do seguro ? - Perguntei .

- Eu não havia pensado nisso antes , sabe.

- Que seja .

Aquele era o momento . Eu já havia revelado meu segredo algumas vezes . Victor bem sabia que uma colisão frontal sempre esteve nos meus planos , e aquele era o momento . Quando em sã consciência alguém me deixaria bater seu carro novo com baixa quilometragem e seguro com air-bag num poste a cem quilômetros por hora ? liguei o radio ,Paul Maccartney cantava Live and Let Die :

''O que é problema pra você

Quando você tem um trabalho para fazer, tem que fazer bem feito

Você tem que mandar os outros pro inferno''

Testei a aceleração afundando o pé e soltando a embreagem . O carro saltou e queimou asfalto . Pelo retrovisor vi quando o porteiro deixou sua guarita e fez menção em se aproximar do carro . Fechei as janelas e tranquei as portas , O cinto estava bem justo . Ao meu lado Victor já havia terminado de posicionar a tela quando os quase duzentos cavalos bebedores de gasolina começaram a urrar . Foi como uma manada rompendo em direção a liberdade . O farol aceso ia clareando nosso caminho . Não haviam mais carros pela rua , a lua estava a observar tudo de camarote . Lembro me de ter passado por cima de alguma coisa , talvez um gato ou uma tartaruga que serve para dividir a pista . Perto dos oitenta e na terceira marcha , meu coração começou a pulsar mais forte . Foi como um flash , minha cabeça chicoteou e acertou a bexiga branca do air-bag . Quando abri os olhos estava com o rosto enterrado em borracha branca , o retrovisor trincado , minhas mãos ainda seguravam o volante . Havia fumaça , mas não fogo . Ao meu lado Victor tinha a cabeça colada na tela branca . Meu pescoço doía . Botei minha mão no ombro de Victor , imaginei que estivesse morto . Ele estremeceu e aos poucos ergueu a cabeça a afastando da tela , chamei por seu nome quando correu a mão pelo rosto de onde vertia sangue . Ficou por um tempo a observar a tela presa ao para-brisa antes de se virar e sorrir . A boca sem dentes , seus fios louros escorrendo pelo rosto ensanguentado . Na tela um borrão vermelho . Com o dedo assinou aquela coisa , fez a mesma assinatura que punha em seus quadros , nos seus bons tempos , molhou a ponta do indicador numa bolha de sangue e riscou . Sua inspiração havia voltado.

Live and Let Die ( Paul Maccartney )

Quando você era jovem

E seu coração era um livro aberto

Você costumava dizer "Viva e deixe viver"

Você sabe que dizia

Mas se este mundo sempre em mutação

No qual vivemos

Faz você se render e chorar

Diga "Viva e deixe morrer"

"Viva e deixe morrer"

O que é problema pra você

Quando você tem um trabalho para fazer, tem que fazer bem feito

Você tem que mandar os outros pro inferno

Você costumava dizer "Viva e deixe viver"

Você sabe que dizia

Mas se este mundo sempre em mutação

No qual vivemos

Faz você se render e chorar

Diga "Viva e deixe morrer"

"Viva e deixe morrer"

02/12/2014

08h36m

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 02/12/2014
Código do texto: T5055901
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